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Touca: o seringueiro que se tornou o maior atacante do futebol do Acre

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Filho dos migrantes cearenses Gonçalo Moreira Boaventura e Raimunda Olímpio Boaventura, que vieram para o Acre nos primeiros anos do século XX, época do 1º ciclo da borracha, o funcionário público federal aposentado Clóter Olímpio Boaventura foi mais um dos muitos acreanos a nascer numa casa extremamente humilde no meio da floresta amazônica.


Sétimo de uma família composta por nove irmãos, seis dos quais já falecidos, Clóter nasceu no dia 19 de outubro de 1929, no seringal Campo Esperança, pertencente a um senhor conhecido pelo nome de “Velho Araújo”, localidade aonde somente se chegava caminhando durante dois dias, em “marcha acelerada”, por varadouros estreitos e sinuosos.

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Ainda menino, entretanto, mais precisamente em 1937, prestes a completar 8 anos, Clóter e a família mudaram-se para a capital, Rio Branco, uma vez que o velho Gonçalo Moreira Boaventura, já cansado dos muitos anos de lida na selva, e pretendendo que os filhos cursassem a escola regular, conseguiu um lugar como funcionário do Poder Judiciário.


Na adolescência, estudando no Colégio Acreano e batendo todas as peladas que podia, tanto faz se em quadras de cimento ou em campinhos de terra batida, começou a sair de cena o menino seringueiro e surgir o maior atacante do futebol acreano de todos os tempos (praticante, igualmente destacado, de salto em distância e corrida de 100 e 200 metros). E aquele que fora batizado Clóter virou Touca (ele não sabe a origem do apelido).


Nas linhas seguintes, o resumo de uma conversa que eu tive com esse lendário jogador do futebol acreano chamado Touca, numa manhã quente de agosto de 2012, na varanda da sua casa, no Conjunto Bela Vista, dois meses antes do seu aniversário de 83 anos, tendo como testemunhas trinta e dois canários, cinco curiós e um cachorro, todos criados por ele.


Primeiro, eu gostaria que você falasse da sua juventude, de como foi que o esporte entrou na sua vida?


Touca – O meu tempo de jovem foi como o de qualquer outro daquela geração. Eu era um menino caseiro, totalmente obediente às ordens tanto paternas quanto maternas. E quanto ao esporte, também como qualquer garoto da minha época, comecei batendo bola no terreiro de casa, o que me levou a entrar num time formado por um vizinho. Daí fui tomando gosto e um dia fui ao estádio José de Melo e comecei a treinar por conta própria. Às vezes até na parte da noite, escondido, que o presidente do Rio Branco, o major Izidoro, não gostava que a gente invadisse o campo, porque ele achava que estragava o gramado. Por essa época apareceu um time de um senhor chamado Possidônio, que morava ali onde hoje é a Vila Ivonete, e eu acabei indo pra lá. E fora isso, eu jogava também no time do Colégio Acreano, que era formado a partir das aulas de educação física. Aliás, aproveitando o tema, eu que durante muitos anos fui professor de educação física, quero dizer que lamento a forma como hoje a disciplina é ministrada nas escolas, isso em nível de Brasil, que não mais privilegia a iniciação de atletas para futuras competições de alto rendimento. O fiasco recente nos Jogos Olímpicos é prova disso!


Quanto a sua trajetória enquanto jogador de time “federado” mesmo, disputando campeonatos estaduais, como é que foi?


Touca – Eu posso dizer que durante a maior parte da minha carreira eu joguei no Rio Branco. Mas antes do Rio Branco eu fui para o Independência quando da fundação do clube, levado pelo meu cunhado Gilmar, pai do Bico-Bico. Mas eu fiquei pouco tempo por lá. Logo eu mudei para o Rio Branco, para fazer parte do que naquele tempo a gente chamava de “segundo quadro” [aspirantes]. Eu era visto pelos dirigentes do Rio Branco como um garoto promissor, mas como lá tinha uma equipe muito boa, em princípio eu fiquei mesmo no “segundo quadro”. Só que eu não demorei muito nessa condição, ganhando uma vaga nos titulares no lugar de um jogador chamado Zé Arigó, que faleceu em decorrência de complicações por excesso de bebida alcoólica. Isso, mais ou menos, se não me falha a memória, no ano de 1949. Acabei ficando no clube por dezoito anos. Nesse tempo, é certo, joguei por breves períodos em outros times, mas sempre acabava voltando para o Rio Branco. Já quase em fim de carreira, é bom que se registre, em 1966, também joguei um período pelo Juventus. Mas depois que eu tinha parado, já com 42 anos, ainda voltei e fiz uns jogos pelo Andirá, atendendo a um apelo de um amigo, o técnico Olavo Pontes.


Como era o futebol acreano do seu tempo?


Touca – Olha, por incrível que pareça eu entendo que era um futebol muito mais responsável do que o que eu vejo hoje em dia. Isso porque o camarada jogava por amor à camisa. Os jogadores davam tudo de si para fazer com que o seu time ganhasse. No regime profissional, que é o que prevalece atualmente, todo mundo só quer saber de dinheiro, parece que ninguém mais se identifica com as cores do seu time. Se alguém oferece mais, o sujeito não pensa duas vezes e se muda correndo para o concorrente. Não existe mais amor à camisa, como nos idos de antigamente.


Sobre os técnicos com os quais você conviveu. Fale deles, por favor.


Touca – Eu fui dirigido por vários técnicos, mas o que eu mais me lembro é do tenente Ruy Azevedo. Depois teve um senhor que era professor de educação física, chamado Romeu. Esses foram os dois técnicos que mais me marcaram, pela maneira inteligente com que eles armavam as suas equipes. Esses dois eu considero acima de todos os outros. Eles tinham controle sobre os grupos que dirigiam e faziam questão de orientar a conduta dos jogadores tanto dentro quanto fora de campo. Coisa que a gente não vê mais hoje. O caso do Neymar, do Santos, por exemplo. Excelente jogador, mas, no meu entender, tem um código de vida, de exibição, que absolutamente não condiz com o de um jogador de futebol profissional. Para mim isso é falta de orientação. Eu acho que o Neymar tem potencial para ser um dos maiores craques do mundo, em todos os tempos, mas, para isso precisa de orientação, que é para fazer umas coisas e deixar de fazer outras.


Dirigentes… No seu entender, quais os melhores e quais os piores do futebol acreano?


Touca – Eu tive grandes dirigentes, assim como existiram alguns que deixaram muito a desejar. Para mim, o maior dirigente do futebol acreano foi o doutor Ary Rodrigues, que tanto foi presidente do Rio Branco quanto da federação. Ele era mais do que um presidente. Ele era um amigo dos jogadores. Ele dava assistência total aos jogadores. Aliás, não somente como dirigente esportivo, mas também na sua profissão de médico, o doutor Ary Rodrigues foi um homem excepcional. E no que diz respeito à parte financeira, outro grande dirigente também foi o Alberto Felício, que era dono da Casa Natal. Quando ele assumiu o Rio Branco, o clube tinha certa dívida na praça e ele pagou tudinho. E fora isso, ainda, foi na gestão dele no Rio Branco que começou a construção daquela galeria de lojas, na frente do estádio José de Melo, hoje uma das principais fontes de recursos do clube. Sem esquecer aquele outro grande presidente, que foi quem terminou a construção das lojas. No caso, o Sebastião Alencar. Esse foi outro dirigente de muita competência. Mas eu posso citar, ainda, além desses, o capitão Braga Rola, fundador da Federação Acreana de Desportos e de um time chamado Fortaleza, o Luís Erich, o Raimundo Teixeira e a Dona Inglesinha, ligada ao América. Sobre maus dirigentes, pra ser sincero [gargalhando], eu prefiro não falar de coisa ruim.

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Os grandes jogadores do futebol acreano… Quem você destacaria?


Touca – O maior jogador do futebol acreano, pra mim, foi um zagueiro chamado Curica, natural da cidade de Xapuri. Eu acho que atualmente o Curica poderia jogar em qualquer time do Brasil, sem favor nenhum. Lamentavelmente, ele teve problemas na sua vida privada e acabou não chegando praticamente a lugar algum. Mas, como jogador mesmo, do ponto de vista técnico, que a vida particular dele não me diz respeito, ele era fantástico. Foi o maior jogador que eu vi no futebol acreano. E ele não era do meu tempo. Ele jogou um pouco depois de mim. Agora, entre os cobras do meu tempo eu posso citar Carrion, Fued, Hugo, Pedro Feitosa, esse um grande lançador… Teve o Boá… Eu posso até te dizer que uma seleção que nós fizemos aqui no ano de 1957, essa não tinha pra ninguém não. Aquela década ali foi privilegiada em termos de bons jogadores locais.


Quando você jogava, a única maneira de fazer algum intercâmbio com equipes de outros estados era trazê-las aqui ou ir até lá, né mesmo? Como era isso?


Touca – Não tinha muito intercâmbio não. Mas nós fizemos algumas excursões. As mais vitoriosas foram as de uma seleção acreana, justamente neste ano de 1957, que eu falei há pouco. Uma para Riberalta [Bolívia] e outra para Manaus. Tanto num lugar quanto no outro nós demos um verdadeiro show. Em Riberalta nós ganhamos todas. Já em Manaus, nos ganhamos os quatro jogos que fomos, inicialmente, contratados para fazer e depois perdemos um quinto, que eles inventaram para, digamos, lavar a honra do futebol amazonense. Ressalte-se que nesta quinta partida, esta que nós perdemos, não jogou nem eu nem o zagueiro Antônio Leó. Fomos punidos pelo técnico Té porque tínhamos saído do hotel na nossa hora de folga, quando nem sabíamos que ia ter a tal quinta partida. Todos os jogadores saíram. Ao sermos chamados a atenção, quase todo mundo se desculpou. Menos eu e o Leó, porque entendíamos que não tínhamos feito nada errado. Aí não jogamos e a seleção acreana perdeu. Mas em Manaus, o negócio foi tão bom, nós jogamos tão bem que ao final da excursão o governador de lá do Amazonas foi falar comigo para eu ficar no time dele, que era o Nacional. Eu agradeci, mas acabei não ficando. Preferi vir embora com a delegação.


Muita gente que viu você jogar diz que você foi o melhor de todos os jogadores acreanos. Você já disse que o Curica estava acima de qualquer um. Mas tem também o Dadão, considerado por quase todo mundo como o maior dos craques locais. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre isso. A sua percepção sobre você mesmo em comparação com outros igualmente festejados.


Touca – O Dadão, inegavelmente, foi um grande jogador. Ótimo, aliás. Se tiver um superlativo além desses, eu o uso para qualificar o Dadão. Mas, a posição dele era meio campo, ele era um construtor, um articulador de jogadas… Existiu muita gente boa que jogava como armador e muita gente boa também cuja missão era a de finalizador. Da mesma forma existiam grandes jogadores cujo papel era o de defender. Então, o Dadão não desmerece, em hipótese alguma, o que é dito dele, porque ele foi, de fato, um grande jogador. Da minha parte, eu tinha uma facilidade muito grande em quase todos os fundamentos. Eu chutava com os dois pés, mas com um de cada vez [gargalhando], com a mesma eficiência, eu tinha uma ótima impulsão e fazia muitos gols. Para mim, se diz que um jogador é bom quando ele cumpre as funções que lhe determina a posição. Ou seja, o defensor deve defender com eficiência, o criador de jogadas deve pensar as melhores opções para o jogo, e o atacante deve mandar a bola para as redes. E outra coisa: só é bom o jogador que pensa antes, que antevê o lance. O sujeito tem que pensar as opções antes de a bola vir para ele, pensar em jogadas que possam favorecer o time dele. Agora tem uma coisa que precisa ficar clara: ninguém pode se dizer bom sozinho em se tratando de esporte coletivo. Não existe isso!


Em 2007, quando de uma entrevista que eu fiz com o técnico Walter Félix de Souza, o Té, ele me disse que você, ele, D. Dinah Gadelha, padre Mário e padre Antônio Anelli é quem teriam, de fato, tido a iniciativa de fundar o Juventus e que o professor Elias Mansour só entrou como convidado, um tempo depois? Foram apenas essas pessoas mesmo? Como é que se deu isso?


Touca – Exato. Foram de fato essas pessoas que se reuniram, num primeiro momento, para criar o Juventus. Mas é preciso que se faça algumas ressalvas. A ideia inicial partiu mesmo foi do padre Antônio Anelli. O idealizador foi o padre Antônio. Aliás, ele queria que o nome do time fosse Juventude. Só depois de algumas discussões foi que a gente optou pelo nome Juventus, sugestão minha, aliás. Mas foi o padre Antônio Anelli que iniciou o processo. Eu, o Té, D. Dinah e o padre Mário fomos coadjuvantes. Eu, no caso, fui convidado para fazer parte da criação porque eles me queriam como jogador. A minha importância para aquele momento era somente essa. Ao tempo em que eu ajudava a criar uma equipe, nada mais lógico que me integrasse a ela como seu jogador. A outra ressalva é a de que embora o Elias Mansour tenha chegado num momento imediatamente seguinte, é a ele que o Juventus deve o que é hoje. O Elias incorporou a ideia e fez daquilo praticamente a maior bandeira da sua vida, chegando até a gastar todo o seu salário de professor para ajudar o clube. Quando o padre Antônio foi transferido para uma paróquia de outra cidade, por exemplo, se não fosse o Elias o Juventus talvez tivesse até acabado. Eu chego até a afirmar que todo o patrimônio que o Juventus tem hoje se deve à dedicação do Elias Mansour. Além disso, por conta do seu espírito de liderança, o Elias conseguiu agregar várias pessoas, formando grupos de trabalho voluntário para ajudar no crescimento do clube. É o caso, por exemplo, das “madrinhas”, que era um grupo composto por senhoras da sociedade local… Dona Iolanda, Dona Hilda… Em resumo, não seria exagero dizer que o Elias e o Juventus são partes de uma mesma história.


E ainda sobre o Juventus, dizem que vocês levaram, em 1966, época da fundação do clube, quase todos os jogadores do Rio Branco para jogar no Clube da Águia. Como é que foi isso?


Touca – Não, não, isso é exagero, não foram quase todos não. Alguns jogadores do Rio Branco foram, de fato, para o Juventus, num primeiro momento, mas teve vários outros que só foram muito tempo depois. Vou lhe dar um exemplo de dois que só foram do Rio Branco para o Juventus um tempo depois: o Campos Pereira e o Dadão. O que acontece é que o Juventus, o que me parece muito natural, tentava levar para defender suas cores sempre os melhores jogadores que havia por aqui. Mas quem é que não quer os melhores no seu time? Então é isso. O Juventus queria os melhores e oferecia condições para que estes jogassem na equipe.


Você chegou a ser técnico de futebol?


Touca – Fui, eu cheguei a ser técnico do Independência e do Rio Branco. Eu me lembro até de um caso, quando eu treinava o Rio Branco, da falta do nosso goleiro, num determinado jogo… O nosso goleiro era o Raimundinho Quelé… Daí, num certo dia ele faltou e eu é que fui para o gol. Nesse tempo eu dividia as funções de jogador e técnico, mas só jogava muito raramente. E aí acabei no gol. Mas a minha vida como treinador durou muito pouco. Logo eu precisei fazer muitas viagens a trabalho e ficou impossível conciliar as duas atividades. Ser técnico era mais por paixão ao futebol, não havia profissionalismo e, assim, chegou a hora que eu tive que ir cuidar da vida.


Decepções e alegrias com o futebol… Qual dessas alternativas prevaleceu na sua vida?


Touca – Decepção, grande decepção mesmo, eu não cheguei a ter não. Decepção só quando perdia um jogo para um adversário tradicional ou um daqueles jogos considerados vencidos e que a gente acabava perdendo. Alegria foram as vitórias e os elogios. Eu, por exemplo, em Manaus, quando a seleção acreana fez aquela excursão que eu já falei, em 1957, eu nunca deixei de figurar na seleção da semana. Eu participei de quatro dos cinco jogos que a seleção fez lá. Os jogos eram realizados apenas uma vez por semana. Nas quatro semanas que eu joguei fui escolhido para a seleção. Essa foi uma situação que me deu muita alegria.


Para concluir, eu gostaria que você me falasse o que você fez na sua vida que gostaria de fazer de novo e o que não faria jamais?


Touca – Olha, sinceramente, o que eu gostaria de fazer diferente era adquirir a minha formação universitária mais cedo. Na verdade, na minha época não tinha muito estudo aqui não. Tanto que para não parar de estudar eu fiz o segundo grau duas vezes. Primeiro, o científico, no Colégio Acreano. Depois, o curso de contabilista, na Escola Técnica de Comércio Acreana. Mas se eu tivesse me formado mais cedo, isso teria sido bem melhor para mim. Agora, outra coisa: o que eu gostaria mesmo, se eu pudesse, era voltar no tempo e ficar com trinta anos. Eu não tenho pretensões de ser rico, nada disso. Eu queria voltar a ter trinta anos. Para me arrepender, eu não tenho nada não. Nunca fiz mal a ninguém, nunca causei prejuízo a ninguém. Não me lembro de alguma coisa que eu fiz na vida da qual eu possa olhar para trás hoje e perder o sono, me arrepender. Nada não.


Entrevista feita por : Francisco Dandão
Fonte: http://www.amazonianoesporte.com.br


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