Menu

Pesquisar
Close this search box.

Sammy Barbosa: essa senhora chamada “democracia” (Parte 1)

Receba notícias do Acre gratuitamente no WhatsApp do ac24horas.​

– O Que é Democracia?


No dia 16 de janeiro de 1979, Mohammed Reza Pahlevi, Xá do Irã, título equivalente no Ocidente ao de Imperador, adquirido após um golpe militar coordenado pela CIA, a agência de inteligência norte-americana, deflagrado vinte e cinco anos antes, fugiu do seu país e seguiu rumo ao exílio. Terminava ali o reinado do monarca persa, marcado pelo autoritarismo, a desigualdade social, a corrupção, a violência contra o seu povo e, principalmente, a imposição do seu desejo pessoal de ocidentalização do Irã, que era visto pela maioria da população como uma afronta ao que consideravam princípios do Alcorão, o livro sagrado do islamismo

Anúncios


1.
O país estava em convulsão. O regime, apesar do apoio que detinha dos Estados Unidos, havia ruído. Ocorria a chamada “Revolução Iraniana” ou “Revolução Islâmica”. Foi então que, o Conselho de Regência, liderado pelo ministro Shapour Bakhtiar, que ficou com amissão de “tentar” governar a nação naquelas condições, convidou o líder religioso extremista, Ruhollah Khomeini, o “aiatolá Khomeini”, mais elevado título na hierarquia da corrente xiita do islã, que liderava a oposição ao Xá e a própria revolução do exílio, a retornar ao país e assumir o governo.


Em 1º de fevereiro de 1979, o aitolá Khomeiniretornou ao Irã como líder da revolução vitoriosa. Surgia então a República Islâmica Teocrática do Irã, um dos regimes políticos mais fechados do mundo até os dias atuais. Apenas para citar um exemplo, com o objetivo de agradar os aliados americanos, o Xá Reza Pahlevi, apesar da dureza do seu regime, havia concedido, em fevereiro de 1963, às mulheres iranianas, o direito de votar e de serem eleitas para o Parlamento. Em setembro daquele ano, houve eleições parlamentares, e, pela primeira vez na sua história, seis mulheres foram eleitas para os “Majlis”, o Parlamento iraniano, e duas designadas pelo próprio Xá para o Senado. Na ocasião, o aiatolá Khomeini, o futuro “líder supremo do Irã”, declarou que: “dar às mulheres o direito de voto era equivalente a prostituição”


2.
A maioria da sua população apoiou e aparentemente – apesar dos últimos protestos realizados por conta da execução de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, em 16 de setembro de 2022, pela “polícia da moralidade”, na cidade de Teerã, por supostamente violar as leis que exigem que as mulheres cubram completamente os cabelos com um hijab, conjunto de vestimentas preconizado pela doutrina islâmica – ainda apoia o regime, notadamente sustentados em razões de caráter religioso.


A questão que emerge é se esse apoio da ampla maioria, por si só, é capaz de fazer do Irã uma Democracia.


E a resposta é simples e direta: é óbvio que não! De forma alguma o Irã pode ser considerado uma Democracia.


Não há dúvidas de que, em uma Democracia, por definição, “todo poder” emana do Povo


3.


O próprio termo, utilizado por filósofos como Clístenes e Aristóteles, origina-se, etimologicamente, da junção de doissignos gregos antigos: “Demos”, que significa “Povo” e “Kratos”, que significa “Poder”. O “Poder do Povo”, portanto.


Ocorre que, Democracia requer outros elementos caracterizadores, sem os quais, por definição, não se configura.


Primeiro, nas Democracias, tal como sua origem etimológica preconiza, o poder político tem a sua legitimação na “vontade soberana do Povo” e somente nela. Caso contrário, não será uma Democracia. Historicamente, pelo menos a partir da Revolução Francesa (1789), que marca o início da Era Moderna, isso significou a separação entre Estado e Religião. E, consequentemente, a mudança de qualquer ideia de que o poder político se legitime em outra fonte, como a vontade de alguma divindade, por exemplo.


Durante o “Ancien Régime” (o antigo regime) modificado pela Revolução Francesa, o “Absolutismo Monárquico” em vigor até então, o poder dos Reis e Imperadores era considerado como emanado dos céus, conferido por Deus. Razão pela qual, as coroas eram recebidas pelos monarcas, das mãos do mais elevado sacerdote e o seu poder absoluto era chancelado pela Igreja. Nesse cenário, não havia espaço para qualquer oposição, divergência ou contestação à figura do reinante e suas decisões. Afinal, contestar a decisão de alguém “ungido” por Deus não configurava apenas um crime perante a Lei dos homens, mas, sobretudo, um sacrilégio, perante a Lei de Deus.


Na Monarquia, Deus era, portanto, o grande (e único) eleitor. E a Igreja fazia as vezes de Justiça Eleitoral, a aferir a validade da escolha e empossar, em pompas e circunstâncias, o eleito. A coroa era o símbolo do poder, mas também da escolha divina. Daí a relação estreita entre o Estado e a Religião. Deus era a fonte de onde emanava o poder.


A relação política entre governantes e governados se dava na relação estabelecida entre o Soberano e seus súditos. Ou melhor, na dimensão entre deveres absolutos dos súditos perante os poderes e direitos divinos e absolutos do Soberano. Ou, como seria recentemente definido no Brasil: na ordem de “um manda e o outro obedece. Simples assim”.

Anúncios


Com a Revolução Francesa tudo muda de dimensão. A partir da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, consagrando valores Iluministas e Humanistas, o poder político torna-se secular e provém exclusivamente da vontade dos “cidadãos”, considerado a partir de então, maior título a ser ostentado pelo indivíduo em sociedade, em substituição aos extintostítulos de nobreza hereditários e a nova relação política passa a ser estabelecida agora entre os “direitos” do “cidadão” (Direitos Fundamentais) perante os “deveres e obrigações” do “governante”. Nessa nova relação, o antigo súdito, detentor de todas as obrigações e deveres, transforma-se no cidadão, detentor dos direitos e o antigo Soberano, detentor de poderes absolutos e divinos, transforma-se no “governante”, eleito pelos seus iguais, para um “mandato”, ou seja, uma procuração representativa de poder, por “tempo limitado”, garantida a alternância e não mais a vitaliciedade e a hereditariedade. Norberto Bobbio enxerga aí a grande revolução nas relações políticas4 . Não por acaso, a Democracia é o regime das liberdades e dos direitos.


Pouco tempo antes, outra revolução, movida pelos mesmos ideais, havia ocorrido bem maisperto de nós e também consagraria os valores da democracia5. Em 1776, as treze colônias inglesas na América do Norte levantaram-se contra a Coroa Britânica, declararam a sua independência e, posteriormente, promulgaram um documento jurídico e político a que deram o título de “Constituição”, em 1789. Consagrando a Liberdade como valor central, a República como forma de governo e cumprindo as três tarefas básicas de uma Constituição: assegurando um catálogo de Direitos Fundamentais, limitando o poder do governante e organizando o Estado.


Posteriormente, a partir da luta dos povos, principalmente a partir das lutas e reivindicações empreendidas pelas camadas menos favorecidas e menos aquinhoadas das sociedades, notadamente em razão da sua organização e conscientização, outras nações passaram também a reconhecer e fizeram acrescer nas suas Constituições outras dimensões de direitos, como os direitos políticos e sociais, estabelecendo limites à jornada de trabalho, assegurando o direito a uma remuneração digna, que garantisse o “mínimo existencial”, protegendo as relações trabalhistas, além da manutenção da dignidade na doença e na velhice, tais como o México, em sua Constituição de 1917, já no “breve” Século XX, como o definiu o historiador Eric Hobsbawm6 ; a Alemanha, em sua Constituição de 1919 (Constituição de Weimar) e na Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, da Revolução Russa, de 1918.


Os horrores vivenciados na Segunda Guerra Mundial, no final da primeira metade do Século XX, por outro lado, com as lamentáveis tentativas de despersonalização do Ser Humano, empreendidas por ideologias extremistas como o Nazismo, na Alemanha e o Fascismo, na Itália e os experimentos monstruosos praticados nos Campos de Concentração como de Auschwitz e Subibor, levaram a Humanidade a consagrar, com mais intensidade e veemência, os valores da Democracia e da dignidade humana, consagrando direitos inerentes à própria essência humana e à sua existência digna, independente de qualquer condição, origem, opção, credo e até mesmo de personalidade ou índole: os chamados Direitos Humanos. Inafastáveis à própria condição humana em “qualquer” situação e pressupostos não apenas da Democracia, mas da própria ideia de “Civilização”.


Esse conjunto de experiências históricas, políticas e sociais nos levaram a perceber que Democracia não se confunde, nem pode ser confundida, portanto, com “ditadura da maioria”. Caso contrário, o Irã teria que ser considerado um país democrático, pelo simples apoio da maioria ao seu regime político, mesmo com uma religião hegemônica e obrigatória, imposta pelo Estado, que criminaliza a prática e o credo de qualquer outra religião que não a oficial, que impõe às mulheres uma condição de inferioridade e opressão, que impede e elimina a existência de qualquer oposição, que censura qualquer tipo de manifestação que não esteja conforme a opinião do governo, que adota a tortura e a pena de morte como políticas públicas, que impõe dogmas religiosos medievais como normas jurídicas cogentes, a serem cumpridas, obrigatoriamente, até mesmo por quem não é adepto da religião oficial.


Democracia, portanto, por definição, pressupõe valores como a laicidade do Estado, ou seja, um Estado que não se confunda com qualquer religião, cujo poder emane da vontade do cidadão e não da divindade, e seja exercido em nome de seu povo, em carácter de representatividade, através de um “mandato” com tempo determinado, facultado a qualquer cidadão e corrente política a candidatura e o exercício do poder, desde que inspirado e comprometido com os valores da própria Democracia, que pressupõe ainda a garantia das liberdades, incluída a liberdade religiosa, política, filosófica, sexual e etc, exigindo do Estado e toda sociedade, uma posição de tolerância e respeito à diversidade e à dignidade da pessoa humana.


O regime da Democracia pressupõe, por fim, um Estado que aja, através de sua estrutura e de seus vários órgãos, notadamente aqueles destinados a garantir o Direito Fundamental à Segurança Pública, estritamente dentro dos seus valores consagradores e caracterizadores, que, por sua vez, devem estar positivados nas leis produzidas por seus órgãos legislativos, a partir dos princípios, regras e valores garantidos e emanados da sua Constituição.


Como bem diz o Professor Carlos Ayres Brito: “A Democracia é o princípio continente, do qual todos os demais, inclusive os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, são conteúdos”. A questão que fica para um próximo artigo é: os direitos, aí incluídos aqueles inerentes à liberdade de expressão, garantida constitucionalmente, são absolutos – em uma Democracia eu posso fazer e dizer o que eu quiser? – ou experimentam algum tipo de limite?


*Sammy Barbosa Lopes, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre, Professor de Direito Constitucional e Ciência Política. Mestre e Doutor em Direito.


INSCREVER-SE

Quero receber por e-mail as últimas notícias mais importantes do ac24horas.com.

* Campo requerido