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Há 10 anos, Acre perdia o Festival Varadouro, que movimentava o setor cultural do Estado

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Os mais novos ou dispersos do mundo artístico podem não saber, mas o Acre já teve um lugar cativo no circuito nacional de música autoral. Essa inserção e reconhecimento Brasil afora teve forte contribuição do Festival Varadouro, que reunia bandas e iniciativas independentes em prol de um único objetivo: difundir a arte local/regional e trocar experiências com os demais estados brasileiros e países da América Latina. Em outras palavras, mostrar que o Acre também era a terra do rock, do grafite, da dança, do skate, da fotografia e de tantas outras artes.


Fotos: Renato Reis, Natércia Damasceno, Cinthia Davanzo, Rafael Passos e Coletivo Catraia Comunicação

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Já faz quase 17 anos desde a primeira edição do festival, ocorrida na capital acreana em 2004, quando o evento ainda se chamava ‘Guerrilha Rock Festival’. Apesar do sucesso estrondoso, em 2010 encerrou o ciclo que dava vida aos sonhos de jovens músicos acreanos. O fim do festival que se tornou o maior da Região Norte e um dos mais importantes do país aconteceu lenta e naturalmente, porém, deixou lacunas nostálgicas até os dias de hoje. O Festival Varadouro é visto como um verdadeiro divisor de águas na cena musical do estado e de relevante legado aos grupos independentes.


Mesmo revolucionário para a época e para a localidade, o evento foi inspirado em festivais mais antigos realizados em Rio Branco, como o Festival do Amapá, o RB Rock, o Festival Acreano de Música Popular (FAMP), entre outros. A ideia do grupo organizador do Varadouro era de alguma forma reativar esse tipo de mobilização no estado. Para melhor entender, conversamos com dois dos idealizadores do projeto, o advogado Daniel Zen, que atualmente desempenha a função de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), e o músico Diogo Soares, da banda acreana Los Porongas.


Um dos idealizadores do projeto, o advogado e deputado Daniel Zen – Foto: Sérgio Vale

“Foi uma iniciativa de um grupo grande de pessoas inspiradas em festivais anteriores e em outros intercâmbios que já tinham acontecido aqui, principalmente com artistas de Rondônia. Houve a primeira edição em 2004, no Juventus, que contou só com bandas do Acre e Rondônia. Depois disso, a gente começou a pensar mais alto”, contou Zen, relembrando que, como a junção dos estados vizinhos deu certo, talvez conseguissem obter êxito também trazendo bandas de outras regiões e estados para o Acre.


Para Diogo, o festival conectou a produção cultural e musical do Acre ao restante do Brasil e depois à América Latina. “Tinha espaço para divulgação de artistas com trabalho autoral e conectava com o que estava sendo feito na região Norte, no Brasil e América”. Os organizadores tinham noção de que aquele projeto poderia abrir muitas portas para as bandas autorais da região. “Pensamos em conseguir estabelecer um certo circuito de eventos e locais onde as bandas com composições próprias pudessem tocar, já que nas casas de shows, boates, tocavam mais música cover. Eu mesmo toquei muitos anos na Estação Zen, no antigo Mamão Café, na X-43, era mais repertório de música cover”, explica, ressaltando que a ideia do Varadouro era intensificar o intercâmbio com bandas independentes de outros estados, para que elas viessem tocar aqui e as bandas acreanas se encaixassem para se apresentar em outros estados.


Músico Diogo Soares, da banda acreana Los Porongas – Foto: Arquivo Pessoal

A segunda edição, em 2005, já ocorreu com o nome ‘Festival Varadouro’. “Achamos que o nome Guerrilha ficou meio “palha”, uma coisa meio bélica (brincou), o símbolo também era um soldado com fuzil. Já Varadouro era uma homenagem, ao mesmo tempo ao antigo jornal Varadouro, que fazia jornalismo investigativo naquela época do êxodo rural, da expulsão dos seringueiros das colocações, e uma homenagem também à nossa história, pois estávamos realmente querendo abrir caminho para as bandas, para os artistas”.


À época, o Mamão Café trouxe, além de bandas do Acre e Rondônia, grupos de outros estados, como Mato Grosso e Rio de Janeiro. “Veio a Vanguart, que depois emplacou vários sucessos no Multishow e teve repercussão nacional. E veio uma banda independente que era muito conhecida no Rio de Janeiro, a Autoramas”, disse Zen. Além disso, vieram produtores renomados de festivais em outros estados para conhecerem o Varadouro, como Fabrício Nobre, do Bananada e Goiânia Noise e o produtor dos festivais Espaço Cubo e Calango.


Antigo Haus Bier, espaço que recebia o festival, está deteriorado – Foto: Sérgio Vale

A ascensão do festival Varadouro foi consagrada com a repercussão na mídia nacional relacionada ao cenário musical. A vinda de jornalistas, veículos da imprensa musical especializada de sites, blogs, fez com que o evento entrasse de fato no circuito nacional de festivais. “Em 2006 participamos da Associação Brasileira de Festivais Independentes e já nessa terceira edição do festival contamos com uma escalação de bandas de vários estados. Com isso, começamos a estabelecer critérios”, afirma o parlamentar, que tocava baixo na banda Filomedusa.


Como o objetivo do Varadouro era de integração e dar oportunidade para artistas autorais, e nessa época havia grande quantidade de editais de incentivo à cultura, a organização procurou trazer não só músicos de Rondônia, mas uma banda de cada estado da Região Norte e representantes das demais regiões do país. “As estatais, como a Petrobras, começaram a disponibilizar editais com uma quantidade muito grande de recursos. Para se ter uma ideia, houve um ano em que o Varadouro foi contemplado com 200 mil reais”.


Antigo Mamão, onde era o aeroporto da cidade, também foi palco do Festival Varadouro – Foto: Sérgio Vale

Soares atesta que o evento foi importante para todos, pois estava ligado a uma rede brasileira e até internacional. “Foi fundamental para a carreira do Los Porongas, pois consolidou a banda, para a Filomedusa, Caldo de Piaba, e a outros artistas, como Pia Vila e outras bandas de vários segmentos”. Patrocínio de marcas famosas, de artistas conhecidos do grande público, tudo isso colaborou para que a realização do festival acreanos se tornasse um sucesso durante os anos em que se manteve na cena, até 2010, quando ocorreu a última edição do Varadouro. Daniel Zen esclarece que Acre e Rondônia foram o início de tudo. “A gente estabeleceu uma curadoria com pessoas daqui e de fora para fazer a escolha das bandas. Tínhamos muita repercussão, a gente movimentava dinheiro no sentido de ter os patrocínio e bilheteria, era um volume de recurso grande, mas que mal dava para pagar os custos de passagem aérea dos participantes”.


 Evento reunia milhares de pessoas no estacionamento do Arena da Floresta e Concha Acústica – Foto: Sérgio Vale


O trabalho em torno do festival se dava mesmo pelo sonho de ver aquele evento se transformar numa mobilização muito maior. “Chegávamos a ter 3, 5, 6 mil pessoas de público. Variava muito, dependia bastante do ano. Uma vez trouxemos ‘Cordel de Fogo Encantado’ e nesse show específico a turma ia muito. Eram dois dias com uma escalação de até 8 bandas por dia. No último ano, a gente trouxe a cantora Gaby Amarantos, pouco antes de ela estourar com o hit Is My Love”.


A cena cultural acreana mudou muito no decorrer dos últimos anos. Apesar de o Varadouro ter se inspirado em movimentos anteriores, o atual deputado e entusiasta do ramo garante que sempre existiu uma cena cultural regional muito forte por aqui, com características próprias marcantes. “Mas que também sempre teve muita dificuldade. O evento sempre estabeleceu uma relação muito conflituosa com o poder público nessa questão de financiamentos, de editais, pelo menos até a primeira experiência da Frente Popular do Acre na prefeitura, quando criou a primeira lei de incentivo”, salienta. As gestões posteriores também reproduziram a lei, no entanto a mesma está parada há 2 anos por questões da pandemia da Covid-19 e orçamentárias.


Dois anos sem o edital da lei de incentivo à cultura prejudicou bastante o estado. Segundo Zen, apesar de ser um recurso pequeno, é muito estimulador para que pessoas, grupos, entidades, associações e coletivos se organizem e façam, deem conta das suas iniciativas, sejam festivais, sejam espetáculos, solos, isolados, teatro, danças e música.

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Fim do Varadouro

Questionado sobre o fim da realização do Festival Varadouro, Daniel Zen afirma que acabou porque, do grupo que organizava o festival, as pessoas foram tomando direções diferentes ao longo do tempo. “Tinha eu, Carla Martins, Jorge Anzol, Rodrigo Forneck, Saulo Machado, Diogo Soares, João Eduardo, era muita gente, várias pessoas, boa parte eram músicos das bandas, outra parte era gestores de cultura, outros produtores, e esse grupo foi se dispersando”, comentou, citando como exemplo os meninos que eram parte do Los Porongas, que foram morar em São Paulo. “Eu mesmo assumi a função de secretário de educação, não dava para estar tanto na militância cultural. Também foi um tempo em que começaram a ficar escassos os editais de apoio”.


Fotos de Renato Reis, Natércia Damasceno, Cinthia Davanzo, Rafael Passos e Coletivo Catraia Comunicação

O fim dessa atividade de fato deve ter acarretando prejuízo ao ramo. “O festival chegou num nível muito alto e quando deixou de acontecer, Rio Branco perdeu uma janela de exposição que o festival tinha e que era muito importante. A ausência desse evento com certeza teve impacto na cena cultural”, diz Soares.


Ainda assim, os organizadores acreditam que a música sobrevive de qualquer forma. “Ela continua. Na geração do Varadouro, tínhamos mais de 10 bandas autorais, hoje diminuiu bastante. A falta de espaço, eventos, casas noturnas, a falta de um circuito onde artistas autorais possam se apresentar gera uma retração. Uma banda ensaia com os amigos na garagem de casa, mas se tem um festival, um dia ela se apresenta, as pessoas conhecem, gostam e se tornam fãs. Se não tem um lugar em que ela se apresente, vai continuar existindo, mas aquilo vai ficar muito restrito, talvez só para os amigos, vizinhos, pessoas próximas”.


Possível retorno do festival

Mesmo com a força das redes sociais, a propaganda e a aparição das bandas é a verdadeira alma do negócio. O grupo já andou conversando recentemente sobre o futuro do festival. “Esse ano faz 17 anos da primeira edição, e vamos fazer uma edição comemorativa quando a gente completar 20 anos”, revela Zen. Enquanto isso, outras iniciativas vão acontecendo na capital acreana, como O Som Lá de Casa, que foi lançado na última sexta-feira. “É diferente do Varadouro, pois é competitivo. Faz parte de um projeto maior dentro da cultura e terá premiação em duas categorias: autoral e intérprete, de até R$ 1.500. É mais voltado para jovens de 15 a 30 anos, para estimular os jovens”.


Zen relata que o Acre tem artistas consagrados como Pia Vila, Sérgio Solto, Verônica Padrão, Álamo Kário, entre outros, mas que não pode ficar só nele. “Tem que ter artistas novos, jovens, e se não tiver espaço para esses jovens mostrarem seus trabalhos, eles ficam com aquele talento guardado. Queremos que as pessoas tenham oportunidade de conhecer os talentos da juventude”.


Fotos de Renato Reis, Natércia Damasceno, Cinthia Davanzo, Rafael Passos e Coletivo Catraia Comunicação

Diogo é otimista e, para ele, agora é um grande momento de, quem sabe, retomar o evento. “Temos uma geração muito talentosa que não tem onde se apresentar. E ele [Varadouro] pode voltar com essa força, pois tem muita gente talentosa querendo espaço. A pandemia acabou intensificando os problemas na cena musical e é muito interessante que possamos retomá-lo”.


Por fim, o vocalista da Los Porongas afirma que a cultura local precisa de janelas e espaço de apresentação, espaços físicos e de comunicação. “Precisamos de incentivo por parte do estado através das leis de incentivo e incentivo financeiro. Que donos de casas noturnas se sensibilizem e tenham locais onde as pessoas possam apresentar seus trabalhos autorais. Além disso, as músicas precisam tocar na rádio”, destaca.


Soares diz que a rádio pública deve absorver essa produção feita pelos artistas. “E as rádios mais comerciais também devem veicular essa produção. Só o Los Porongas tem 3 discos, Caldo de Piada tem 3 EP’s, a banda Os Descordantes também tem disco, Bruno Damasceno. Os artistas precisam aparecer, ter suas músicas veiculada para que o público se interesse e toda uma cadeia comece a ser removimentada para que se chegue a um festival. A coisa mais bonita do Varadouro é o público sentir orgulho dos artistas acreanos, da terra”.


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