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A Morte da Cegonha

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NA FIRMA DE COLETA DE LIXO DA CAPITAL, UMA IMPORTANTE APRESENTAÇAO ESTÁ ACONTECENDO


“É um enorme prazer estarmos aqui nesta manhã para apresentar os novos caminhões da empresa. Eu gostaria, antes de tudo, de enfatizar que não são apenas veículos modernos que estão sendo posto na rotina de trabalho.  Essa compra representa o valor e o respeito que a empresa tem para cada trabalhador que honrosamente ajuda a construir uma cidade mais limpa e saudável.”

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Todos balançavam a cabeça confirmando.


“Como vocês podem ver, reafirmando a preocupação que a firma tem com vocês, os veículos de coleta de lixo domiciliar adquiridos possuem o que há de mais moderno no mercado. São caminhões com carrocerias compactadoras que irão proporcionar menor ruído e, graças ao seu desenho interno inovador, maior espaço de armazenamento. Além disso, reduzirá o tempo de trabalho e fornecerá mais segurança para todos vocês”.


Todos, arregalando os olhos, fingiam espanto com aquelas palavras.


“Afinal de contas essa empresa existe não pelo simples propósito de ganhar dinheiro. É na verdade uma forma de ajudar a sociedade de várias maneiras. Empregando pessoas felizes que possam tirar daqui seu sustento e de sua família. Essa é nossa principal meta”.


A PLATEIA QUE ASSISTIA COM SONO A APRESENTAÇÃO


João – Não dou um mês para esses caminhões estarem todos cheios de defeito e com aquele barulho insuportável nos nossos ouvidos.


Chico – É mesmo! Eles acham que a gente não sabe que isso é sucata comprada lá em São Paulo.


João – Mudando de pau pra cacete, e tua mulher, como ela tá? “Tu acha” que dessa vez ela segura?


Chico – Ai meu Deus! Eu nem vinha hoje. Um domingo desse! É de matar mesmo! Estava pensando em ficar com ela no hospital, mas o seu Heleno não me dispensou. Disse que era obrigatório assistir a essa besteira. Esse chato aí. Viu o tamanho da cabeça dele? Tive medo de faltar e na segunda ter “minhas contas batida”. Ai a merda ia dar no pescoço. Como é ruim ser pobre.


João – Manda quem pode, obedece quem é gari. Duvido se ele queria estar aqui. Domingo é fatal: ele sempre vai para a fazenda dos amigos com a família. O menino dele tá grande. Já tem cinco meses. Olha! Nem parece com ele.


Chico – Ele tem sorte! É pai, é ele quem cria! Até que prove o contrário, ele sente coisas que nunca senti e que tenho sérias dúvidas se terei a oportunidade.


João – Vai dar certo! Não fique escutando esses barulhos não, homem!


Chico – Se a Rosa não segurar, esse será o quinto filho que ela não vai me dar. Já sofri demais. Queria muito ser pai. É um sonho de criança. Já rezei muito pra Deus, mas parece que ele não me ouve. Ele nunca me ouviu! Não quero com outra mulher. A Rosa é tudo pra mim.

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CONTINUANDO A APRESENTAÇAO


“Sabemos que não basta apenas falar! Para mostrar a eficácia e o poder dos novos caminhões, tivemos uma ideia: vamos sair agora “dessas paredes” e mostrar na prática o presente que a capital ganhou. Vamos fazer uma demonstração. A melhor publicidade é essa. Em pleno domingo, nossos caminhões realizando uma operação extra. Melhor visibilidade não há. A cidade se encherá de orgulho”.


Todos que assistiam se espantaram com essa ideia.


Puta que pariu! Um domingo daquele, ficar juntando treco por aí. Era demais! Sem contar que tiveram que arrumar uma cara de satisfação que foi ruim de achar no saco da falsidade, já quase vazio.


Os caminhões foram pelos quatro cantos, cheio de cores e buzinas. Fogos foram lançados, acenos dos dirigentes da empresa foram dados em carros que serviam como batedores e o povo, que não estava entendendo nada, até achou que era algum candidato querendo voto.


Apesar da tristeza de pegar aquele sol na cara, verdade seja dita: os veículos eram realmente muito eficientes. João Chico e mais dois sem nome entraram em um conjunto bonito e deram prova da capacidade coletora do automóvel.


Enquanto o primeiro dirigia a monumental máquina, lá traz, pendurado na cabine, segurando em dois aros que não lhe deixavam cair, mas que não eliminava o mal cheiro dos resíduos que juntava nessa tediosa demonstração,  Chico não parava de pensar na mulher e na complicada gravidez que ela sofria. Estava nervoso, aflito, angustiado. Tudo estava fora de sintonia. Tudo estava fora do lugar. Suas análises, sua cabeça, sua vida estava tudo no hospital.


O caminhão entrou numa rua bem pavimentada do conjunto, e que surpresa: iria contemplar justamente a casa de Seu Heleno, o patrão que lhe negou a folga, o motivo real de estar tão longe de sua amada em um momento tão difícil.


Como mandava a rotina, correndo de um canto para o outro, juntando sacolas e sacos em um só local, Chico pode, de relevo, perceber que seu Heleno se preparava para mais um domingo com a mulher e seu filhinho. Não pode ter certeza, mas parece que eles tinham esquecido alguma coisa em casa e, como foi procurar sozinha, a mulher não estava conseguindo encontrar.


Aparentemente irritado, Seu Heleno, entre “bravejos e bravejões”, palavras e palavrões, abandona o veículo e vai tentar demonstrar o quanto sua mulher é burra: tinha certeza que havia deixado os anzóis debaixo da pia da cozinha.


Chico, que nesse momento removia o lixo da casa do amado chefe, recebe um telefonema do hospital com uma forte notícia: infelizmente, Rosa não segurou o filho, Rosa não teve condições de segurar a própria vida. Morreu com as letras iniciais de seu marido na boca.


O barulho do caminhão, a zoada com a compactação dos dejetos não foram suficiente para abafar a voz alta de Chico que chorava: “segue João, ainda temos muita coisa para fazer”.


Domingo, “missa e praia céu de anil”, um carro de passeio com a porta traseira aberta, um casal desesperado pela estranha ausência do filho e um caminhão que ia longe, levando atrás um Chico triste e calmo, observando como eras eficientes os novos mecanismos de trituração e compactação.


Ali estava se deformando, esmagando seus frágeis ossinhos, sufocado pelo mau cheiro, abafado pelos rumores dos novos mecanismos, algo que Chico nunca teria: uma doce e inocente criança de apenas cinco meses.


À noite, em casa, Chico não suportaria seus amores mortos. Sem que percebessem, ele se retirava para se juntar aos três que tinham partido naquele domingo.


Sentia profundamente pela sua mulher e mais um filho que não veio. Sentiu pelo assassinato que cometera. Morreu rindo! Alegrou-se em saber que ninguém nunca iria conseguir entender aquela dor, embora fizesse ideia de que todos soubessem como é divino e puro o amor dos pais.


FRANCISCO RODRIGUES    f-r-p@bol.com.br


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