Comerciantes de municípios isolados do Acre continuam retendo (com senhas) cartões de benefícios sociais de indígenas. A medida é parte de uma estratégia que mantém integrantes de várias aldeias em um ciclo de dívidas que nunca será finalizado. Cartões do Bolsa-Família, do INSS ou que dão direito ao recebimento do Benefício de Prestação Continuada são alvos dos empresários.
A cobrança de preços abusivos faz parte dessa ciranda de endividamento. No município do Jordão, onde a situação é mais grave, um frango chega a ser vendido aos indígenas com cartões retidos a R$ 100. O litro do combustível a R$ 20.
No município do Jordão, por exemplo, há relatos de comerciante com posse de 80 cartões de indígenas. “Tem ‘parentes’ que já estão devendo três, quatro, cinco mil reais”, contabiliza José Auricélio, uma das poucas vozes que se rebela contra essa situação. (“Parente” é a forma de tratamento de uns aos outros quando querem se referir a um indígena).
Auricélio é um Huni Kuin (Kaxinawá). Mora no Jordão. É cabeleireiro e diretor de Obras do Município. À época em que chegou a presidir o Conselho de Saúde Indígena do Jordão, formalizou um Boletim de Ocorrência na cidade de Cruzeiro do Sul, denunciando esse problema da retenção dos cartões dos “parentes” por parte dos comerciantes.
A Polícia Federal instaurou um inquérito, em setembro de 2021. E uma operação foi deflagrada nas cidades de Cruzeiro do Sul e Porto Walter. O problema não é novo, portanto. A novidade é que ele tem agravado a segurança alimentar de muita gente. Endividados e sem apoio de políticas públicas que garantam segurança alimentar nas aldeias, eles vão descendo o rio rumo às cidades.
A aldeia Reino da Estrela está localizada no Alto Rio Jordão. Da cidade do Jordão até essa comunidade específica o rio alinhava 37 aldeias. Os “parentes” identificam a comunidade Reino da Estrela como a sétima aldeia. Para chegar até lá de barco são necessários entre três e quatro dias de viagem.
Da aldeia Reino da Estrela, veio a indígena Maria Rodrigues Kaxinawá. Sem comer desde o dia anterior, encontrou acolhida na casa de um “parente” no Jordão. “Meu patrão não me arrumou nada e eu almocei manga”, disse com uma voz fina a fraca, denunciando o corpo franzino e miúdo.
A fala da Maria Kaxinawá é muito representativa para mostrar como a escravização por dívida foi se entranhando na relação com os indígenas. É uma relação massacrante. Sempre foi. Das “correrias” (atos de genocídio emplacados por brancos que ocuparam a região no primeiro Ciclo da Borracha) até os benefícios concedidos pelo Governo Federal no início dos anos 2000, há muitas situações não resolvidas.
O caso de Maria Kaxinawá é emblemático. Ela não tem emprego. Ela não tem trabalho formal. Ela não tem salário pago pelo trabalho que ela ofereceu ao longo do mês a alguma empresa. Então, por que ela usa o termo “patrão”, referindo-se ao comerciante que se apropria indevidamente do dinheiro dela?
Os comerciantes retêm os cartões deles. Quando os indígenas querem comprar algo, os comerciantes (com os cartões na gaveta dos balcões) dizem que os indígenas estão endividados; dizem que o tanto do benefício previsto no pagamento do governo não foi suficiente para pagar a dívida. E assim, ano após ano, o “patronato” vai sendo tatuado na rotina de muitos.
Os “parentes” saem dos mercados e mercearias com nada ou quase nada. Passam a pedir nas cidades, nas beiras dos rios a quem chega de canoa. Ficam sujeitos e vulneráveis a toda sorte de violências.
O homem branco que há menos de 150 anos dizimou parte do povo Huni Kuin é o mesmo homem branco que nos anos 2000 ofereceu uma série de benefícios, promovendo um novo ciclo de violência. A política pública que chega a alguns indígenas por meio de um cartão acaba promovendo exclusão em um ambiente urbano que nega a também se reconhecer como indígena.
“Os parentes que não sabem Matemática ficam mais sujeitos a esse crime”, indigna-se o vice-prefeito eleito do Jordão, Cleiber Pinheiro Sales, ele próprio um “parente” huni kuin. “Depois da posse, vou priorizar a solução desse problema. A situação só está se agravando e ninguém toma providência”.
O não domínio da Língua Portuguesa e a consequente dificuldade em lidar com a subjetividade dos números tornam os “parentes” presas fáceis no ambiente urbano.
José Auricélio, o cabeleireiro que também é diretor de Obra do Jordão, reforça o que disse o prefeito eleito. “Minha esposa tem uma banquinha que vende acessório para celular e ela está cansada de ajudar os ‘parentes’. Todos os dias ela ajuda. São muitos”.
Sem apoio do Governo do Acre para diversificação da base produtiva nas comunidades, a insegurança alimentar é certa. Eles garantem o que comer com uma dieta à base de um caldo de banana, milho, macaxeira. Proteína é coisa rara.
Elias Paulino Kaxinawá é o representante da Funai no Jordão. Ele se mostra incomodado com a situação, mas não vê instrumentos efetivos para intervir. “Sou praticamente sozinho aqui”, diz, tentando escolher as palavras. “Isso não é de agora. Isso vem de longe”. Em abril desse ano, Elias pediu ajuda ao coordenador da Funai para a região do Juruá, Eudo Shanenawa.
Procurado pela reportagem, Eudo Shanenawa foi econômico com as palavras. Estava em Cruzeiro do Sul. Por telefone, disse que a Funai já formalizou denúncia junto à Policia Federal, mas não quis oferecer mais detalhes. “Não posso falar mais sobre essa situação para não atrapalhar o trabalho da Polícia Federal que já está acontecendo”, afirmou.
Em Rio Branco, a Polícia Federal foi procurada. Mas até o encerramento desta edição, não apresentou nenhuma informação sobre o assunto.
No Jordão, a ausência de um correspondente bancário agrava a situação. Os indígenas que têm benefício sociais a receber (aposentadoria, Bolsa Família, BPC) e que têm consciência de que não podem ficar à mercê dos comerciantes seguem o seguinte ritual:
Vão até o cartório e pagam uma taxa de R$ 50 para enviar uma procuração a ser usada em Tarauacá por um “parente” de confiança. Essa pessoa faz os saques e envia o dinheiro de volta, em espécie, por avião.
“É o único jeito”, lamenta Txuã Huni Kuin. “A passagem de avião para Tarauacá custa quinhentos reais. Só ida. Então, se eu mesmo for pra lá sacar, gasto, só de passagem, mil reais. Então, é melhor pagar pela procuração. Se tivesse uma lotérica, um correspondente bancário, esse problema todo diminuiria”.
O cacique da aldeia Bom Futuro, Josenildo Sales (Hase Huni Kuin), para estar no Jordão, gasta 45 litros de combustível em três dias de viagem. “Aqui está sem caixa lotérica e não tem como tirar [o dinheiro]”, reclama.
Com dificuldade de raciocinar em Português, o cacique arrisca a apontar os responsáveis por esta situação. “O governo municipal, o Governo do Estado foi pedido pela voto (sic) ainda não estamos ficando nessa brevidade”.
O sentido da fala do cacique é já velho conhecido de muitos cidadãos: “os governantes eleitos foram às aldeias pedir voto, mas não ajudam a resolver os problemas da comunidade”. Uma tradução rápida sugere isto.
Foi a única liderança comercial que se dispôs a falar. “Nós condenamos essa prática, mas desconheço a ocorrência de fatos como esses em Cruzeiro do Sul, onde atuamos”, afirmou.
Jordão não tem representação empresarial. A cidade de Tarauacá possui. Mas o representante não atendeu às ligações.