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“Como estará o Acre daqui a três ou quatro El Niños?”

A pergunta feita para uma Inteligência Artificial construiu a cena que ilustra parte desta reportagem. As referências foram o atual quadro das mudanças climáticas em âmbito global e as reações do governo do Acre. O resultado é desolador. Há ferramentas tecnológicas, há informação para evitar os piores cenários. Falta transformar os dados em ações integradas. Eis o desafio.


O fenômeno El Niño é um fato. A intervenção humana no agravamento dos efeitos desse fenômeno também. É quase um consenso entre pesquisadores e gestores públicos. Com uma ressalva: a reação dos governos na oferta de serviços comunitários tem sido um desafio diário, em meio às crises geradas pelas consequências das mudanças  climáticas. “Como estará o Acre daqui a três ou quatro El Niños?” foi a pergunta que fundamentou as conversas para elaboração do trabalho apresentado ao leitor do ac24horas.


O primeiro aspecto que chama atenção é a postura diante do problema: poucos são os que raciocinam estrategicamente. A maior parte opera no nível tático: estão com energias e focos centrados no gerenciamento de crises imediatas. No máximo, ao que vai acontecer nos próximos seis ou nove meses.


Sobretudo no Acre, com mais da metade da população pobre ou extremamente pobre, atuar na gestão pública preocupado em resolver problemas urgentes tem valor porque as respostas precisam ser rápidas, aguardadas por comunidades que não têm amparo se não for pela ação dos governos.


O Centro Integrado de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental, vinculado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente, é uma ferramenta importante que gera informações aos órgãos de governo e de Estado para que se tomem decisões. E os “olhos” do Cigma estão por toda parte. Uma “sala de situação” foi montada, com instalação de painéis que apresentam quase em tempo real a situação do momento e o cenário que virá. Por ali, em imagens e gráficos, é possível acompanhar como está a qualidade do ar, o nível dos rios, igarapés, as chuvas.


“Aqui, nós temos uma base de dados para projetar cenários, georeferenciar as ocorrências para que sejam tomadas decisões”, explica a secretária de Estado de Meio Ambiente, Julie Messias, que, na semana anterior, naquela mesma sala, reunia vários colegas de governo para tratar das providências relacionadas à decretação da situação de emergência hídrica em todo Acre.


Julie Messias, secretária de Estado de Meio Ambiente: base de dados para gerar decisões de governo. Foto: Alexandre Noronha/Secom

“Falta a capacidade de dar respostas. Quanto a isto, de fato, não tem nada”, contrapõe o pesquisador da Embrapa, especialista em solos e que já ocupou o cargo de Julie na gestão do ex-governador Binho Marques, Eufran Amaral (ver entrevista). Recentemente integrado à Academia Brasileira de Ciência Agronômica, Amaral avalia que os governos têm sido lentos em transformar toda essa base de dados disponíveis em ação efetiva. “O que é urgente é a tomada de decisão”.


Um aspecto positivo da atuação da Sema/Sigma é a execução do conceito de “transversalidade”. Os secretários de Estado de Agricultura, Luiz Tchê, e de Saúde, Pedro Pascoal, usam constantemente as informações geradas no centro integrado. “Pelo monitoramento da qualidade do ar feito aqui, por exemplo, o secretário de Saúde sabe como está a situação em um determinado município em um período específico”, pontua Messias. “E, de fato, constata-se o aumento da procura por postos de saúde de pessoas com problemas respiratórios”.


Essa situação é um clássico exemplo do que os pesquisadores chamam de “adaptação” ao problema. É uma resposta, uma postura de reação adaptada a um problema posto. Gera-se informação para buscar uma acomodação imediata. No caso concreto: um possível reforço de medicamentos para problemas respiratórios em uma comunidade, por um determinado período. Isso é válido? Claro que sim. Mas não há uma ação para buscar resolver o que causa a baixa qualidade do ar.


E, como tudo em política ambiental, buscar as causas dos problemas é sempre um desafio de muitos caminhos. Como relacionar a baixa qualidade do ar em uma comunidade do Acre com o processo de regularização ambiental; com acesso a crédito por parte do agricultor de base familiar, que não tem tecnologia alternativa ao fogo? Ou como relacionar a baixa qualidade do ar em uma comunidade com os modelos de desenvolvimento que desvalorizam a floresta, a Cultura, a Geografia local? Perceber essas relações não é tarefa simples.


Lucieta Martorano, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, é categórica em afirmar que parte dos gestores não dominam conceitos básicos, o que pode explicar as indefinições ou vacilos na execução de muitas políticas públicas.


“Governadores, prefeitos… muitos não sabem diferenciar ‘preservação’ de ‘conservação’”, bronqueou a cientista. “Explicando de uma forma mais simples, mais compreensiva, ‘preservação’ guarda a ideia de que uma determinada área precisa, em nome da sustentabilidade, manter-se intocada, sem ação humana. Já a ‘conservação’ é necessário entender como área que precisa também ter referência na sustentabilidade ambiental, mas com o elemento humano dentro dela. Então, fazendo essa diferenciação, eu pergunto: como manter o homem nesse lugar com sustentabilidade ambiental e produtiva?”.


Pagamento por serviços ambientais é solução, aponta pesquisadora

A pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental Lucieta Martorano avalia que o pagamento por serviços ambientais é uma solução. Inclusive já encontra elementos práticos aqui no Acre, na comunidade da Terra Indígena Poyanawa, em Mâncio Lima.


Um estudo da evolução do uso da terra feito pela Embrapa naquela comunidade apontou que a taxa média de desmatamento foi de 21,3 hectares por ano, de 1988 a 2017. Com um detalhe: nos últimos cinco anos, essa taxa baixou para 12,8 hectares. A TI Poyanawa possui 24,4 mil hectares e apenas 5,8% dessa área foram alterados.


Isso possibilita a geração de crédito de carbono da ordem de, aproximadamente, R$ 200 mil à comunidade. “É preciso tornar o pagamento dos serviços ambientais comum”, defende Martorano. A pesquisadora lembra que o Acre foi pioneiro na formulação de um sistema que regulamenta o pagamento por serviços ambientais. Trata-se do Sisa (Sistema Estadual de Incentivo a Serviços Ambientais do Acre),  criado em 2010. Um dos que assina a formulação desse sistema é o colega de Martorano na Embrapa, Eufran Amaral.


Lucieta Martorano (de jaleco branco), da Embrapa Amazônia Oriental, defenda maior amplitude do pagamento por serviços ambientais e cita o Acre como exemplo

“Quando eu digo ‘tornar comum’ [o pagamento por serviços ambientais] é porque nem só populações indígenas e extrativistas devem acessar esses recursos. O agricultor também, desde que trabalhe dentro de métodos específicos”, pontua. “É preciso fazer algo concreto. Do jeito que está é que não podemos ficar”.


De acordo com o Map Biomas (ver mapa), o Acre possui 85% de áreas de floresta. Mas o que tem sido feito nos 15% desmatados compromete muita coisa. Como se verá a seguir.


De acordo com o Map Biomas, 15% do Acre estão desmatados, em números aproximados (pontos amarelos – Fonte: Map Biomas

Reflexos da insustentabilidade

O Rio Acre pode ser apontado como um símbolo da negligência com a execução da política ambiental. Os números apontam para um colapso no abastecimento da Capital, caso não se tomem providências imediatas.


A Prefeitura de Rio Branco trabalha com a seguinte relação: cada família (com média de 4 pessoas) precisa de 11 mil litros de água por mês. Levando em consideração que há aproximadamente 400 mil pessoas, são necessários 440 mil litros de água por mês.


Comparado a outras capitais, pode até parecer um número modesto. Mas basta olhar para a única fonte de abastecimento de água da cidade que se percebe como esse é um desafio muito grande. O Saerb tem capacidade atual de produzir 1,6 mil litros de água tratada por segundo. É evidente que a autarquia municipal responsável pelo abastecimento de água e saneamento opera com ociosidade porque o atual volume de água que o rio oferece não permite essa vazão para as casas.


“O mês de setembro é o mês mais crítico, porque ele sofre as consequências dos meses anteriores, de julho e agosto, principalmente, pontua o coordenador da Defesa Civil de Rio Branco, Cel. Falcão. “Ele seria um mês de transição. Mas agora o mês de novembro é que passou a ser um mês de transição”. Traduzindo a “transição”: isso significa que o período de estiagem tem sido cada vez maior. A “transição” do verão para o inverno está sendo adiada ano a ano. E isso está refletido no Rio Acre. Não precisa de muita tese ou ideologia. Basta olhar para o rio.


O período de 2015 a 2023, os dados apontam para a maior e a menor cota do Rio Acre (ver gráficos). A maior cota foi regsitrada no primeiro semestre de 2015 (18,4 metros). A menor cota do Rio Acre foi registrada no segundo semestre de 2022 (2 de outubro, com 1,25m). “Lembrando que este ano, de 2023, tivemos a segunda maior cota, com 17,72m”, lembra o coordenador. Portanto, em 2023, em um período de oito meses, conheceu extremos que demonstram desequilíbrio total.


 Pacto interinstitucional pela recomposição das matas ciliares ao longo de toda bacia é urgente para retorno de equilíbrio da vida do Rio Acre – Fotos: Whildy Araújo/Eufran Amaral

Gráficos mostram a agonia do Rio Acre

A seguir, os gráficos ilustram com números o comportamento do Rio Acre nos momentos de cheia e de estiagem entre os anos de 2015 e 2023. O que chama atenção é que as cotas têm descrescido ao longo dos anos. Por isso, a reação dos governos é urgente.


Governo do Estado do Acre, os 11 municípios que compõem todo o Vale do Rio Acre, bancos oficiais (Banco do Brasil, Banco da Amazônia, BNDES) Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), Governo Federal, ONG’s. É preciso construir um consenso real e efetivo para salvar o Rio Acre. Os números (e as imagens) mostram que o rio está morrendo.


Liderança indígena reforça a defesa da Cultura como papel estratégico para buscar sustentabilidade ambiental e econômica

Joaquim Yawanawá (Tahska Yawanawá), uma liderança indígena que tem se destacado em fóruns de decisões econômicas e políticas em escala global, faz a defesa da Cultura como elemento estratégico para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas.


“Os povos indígenas, desde os tempos imemoriais, vêm fazendo o seu trabalho de casa. Infelizmente, os governos têm sido ineficientes”, afirmou, antes de reforçar o raciocínio de que as políticas pública devem ser executadas em uma rede global de causa efeito.


“O que estamos vivenciando hoje é apenas uma ação feita pelo próprio ser humano que não se resguardou de cuidar da mãe natureza. É uma reação natural. Costumo dizer que todos estamos ligados em uma grande rede de uma aldeia global. Todas as ações que fazemos nós afetamos uns aos outros. Se nós destruímos a nossa floresta, nós vamos atrasar a neve do natal em Nova Iorque. Se eles queimam todo o lixo em Nova Iorque, isso vai afetar a nossa chuva na Amazônia”, relacionou Yawanawá.


“Os povos indígenas estão na linha de frente. Infelizmente, todos esses recursos anunciados são mal usados pelos governos, tapando os buracos de outros compromissos que fazem. É preciso uma atitude mais forte quanto a isso. Os governos precisam alertar para isso. É uma aviso para a humanidade”, avisou.


Tahska Yawanawá: “O que estamos vivenciando hoje é apenas uma ação feita pelo próprio ser humano que não se resguardou de cuidar da mãe natureza. É uma reação natural

“Para além da estratégia, precisamos da ação”

Eufran Amaral é agrônomo de formação e pesquisador da Embrapa. Doutor em solos e nutrição de plantas pela Universidade Federal de Viçosa. Foi secretário de Estado de Meio Ambiente na gestão de Binho Marques e dirigiu o Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais do Acre de 2011 a 2013. Na semana passada, assumiu uma cadeira na prestigiada Academia Brasileira de Ciência Agronômica.


É uma voz respeitada até mesmo entre representantes do setor pecuário. Nesta breve entrevista, Eufran demonstra um certo ceticismo em relação à condução da política pública ambiental do Acre. Há falhas na condução, entende o professor, em um cenário em que não se tem mais tempo para perder. “O que é urgente é a tomada de decisão”. Aqui estão os principais trechos da entrevista.


Eufran Amaral, da Embrapa, cobra maior agilidade na tomada de decisão – Foto: Reprodução 

ac24horas: Impressiona as ferramentas de governo para monitoramento. A situação dos rios, as queimadas, os desmates. Tudo é acompanhado quase em tempo real. O que falta?


Eufran Amaral: Falta a capacidade de dar respostas. Quanto a isto, de fato, não tem nada. Os governos, realmente, têm se aparelhado, com técnicos que dominam as ferramentas, mas em quê isso tem sido traduzido para uma política de conservação?


ac24horas: Para o Acre, o que pode ser classificado como “urgente” no que se refere à execução da política ambiental?


Eufran Amaral: É urgente a tomada de decisão. Precisamos, por exemplo, traçar estratégias para restaurar áreas degradadas, para recuperar áreas de proteção permanente… recuperar as matas ciliares da bacia do Rio Acre, por exemplo… isso tudo é urgente. Tudo isso está relacionado com água. Temos que ter estratégias de mitigação.


ac24horas: Professor, quando o senhor fala “estratégias de mitigação”… isso quer dizer mesmo o quê?


Eufran Amaral: Vou te dar um exemplo. Há 40 anos, possivelmente, eu e você não estaríamos trabalhando como estamos agora em uma sala com ar condicionado. Teríamos, no máximo, um ventilador, não é verdade? Nos nossos carros, você se lembra que nós tínhamos os “quebra-vento”, que também chamávamos de “morcegos”, lembra? Pois é! Hoje, não há mais isso. Assim como nas nossas salas de trabalho, os nossos carros também precisam estar com ar condicionado. O que nós fizemos foi nos adaptar a uma situação. Nós não resolvemos o problema. Nós nos adaptamos a ele.


ac24horas: A “estratégia de mitigação”, então, seria…


Eufran Amaral: Seria corrigir o problema. Seria estudar o problema, conhecer o problema, planejar, decidir e executar. Essa decisão e essa execução estão faltando na agenda pública.


ac24horas:  Por que todos os pesquisadores falam com tanta ênfase em recuperar área de proteção permanente?


Eufran Amaral: Porque isso, em última instância, reduz a pressão sobre a floresta. E isso passa, necessariamente, pela discussão sobre estratégia territorial de desenvolvimento. Hoje, no Acre, oitenta e cinco por cento do nosso território é formado por floresta; quinze por cento estão desmatados. Levando isso para números: desse percentual desmatado, no Acre, 2,3 milhões de hectares, até o ano passado, eram pastagens; 2.551 hectares estavam destinados à agricultura e 16.218 hectares são áreas urbanizadas. Discutir estratégia territorial de desenvolvimento é tratar da qualidade dessa intervenção humana nesses espaços. Se não fizer isso, é possível que a vida seja inviabilizada.


ac24horas: Esse debate o Acre parece não estar disposto a fazer.


Eufran Amaral: A verdade é que sempre ficamos procurando um culpado. No final, o culpado somos todos nós. Para além da estratégia, precisamos da ação. Governos, prefeituras, instituições de pesquisa, sociedade civil organizada… todos.


ac24horas: Daqui a três ou quatro El Niños… vai ter jeito?


Eufran Amaral: Não. Nesse ritmo de ação… não. Eu costumo usar a imagem do barco. Um barco simples. Uma canoa. Ela não tem freio. Mesmo se pararmos de remar, ela segue o movimento, por inércia. O que eu quero dizer com isso? Se hoje, nós pararmos com tudo e fizéssemos uma mudança radical nas nossas matrizes energéticas, se reformulássemos nossos padrões de consumo etc…. mesmo assim levaríamos um tempo para reencontrar algum novo ponto de equilíbrio. Ao que era não dá mais. A situação está estabelecida.


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