Inquietação e ousadia foram sempre as marcas fortes do comportamento do eleitor acreano. Jamais o conservadorismo

O crescimento das igrejas evangélicas neopentecostais e, principalmente, o resultado da eleição de 2018 tem feito muitos por aqui acreditarem que o Acre e os acreanos são conservadores, afeitos aos valores da família tradicional e defensor da ordem e dos bons costumes. Será isso verdade? Claro que não!
O Acre e o acreano nunca foram conservadores, isso se situarmos o conservadorismo, no campo da análise sociológica, como conjunto de normas e regras de conduta que busca garantir estabilidade social visando a manutenção da ordem política e, sobretudo, da estrutura econômica estabelecida.
Ao contrário disso, se há um traço a marcar nosso comportamento é a ousadia e a subversão. Aqui prevalece uma certa busca permanente pela mudança da ordem. E isso tanto em se falando de política quanto de convivência social. É esse espírito ousado e insubmisso que justifica algumas de nossas surpreendentes escolhas ao longo da história. Até mesmo a escolha por Bolsonaro e Gladson em 2018.
Essa inquietação é a linha que liga, na política, coisas tão diferentes quanto as eleições de José Augusto de Araújo em 1962, Nabor Júnior em 1982, Jorge Viana, em 1998, e Gladson Cameli e Bolsonaro em 2018. Explico melhor, abaixo.
Lá atrás, o jovem advogado José Augusto de Araújo foi azarão quando venceu o todo-poderoso Guiomard Santos na disputa para governo do Acre, em 1962. Guiomard era líder da maior oligarquia política e do principal partido no estado. Senador da República, tinha sido o grande timoneiro na luta pela elevação do Acre à condição de estado, depois de quase 60 anos como território federal. Sua vitória era tida como certa. A derrota, uma grande surpresa.
Algo parecido ocorreu em 1982, quando o jovem deputado federal Nabor Júnior venceu o respeitado senador Jorge Kalume, do PDS, o partido do regime. Nabor o derrotou em plena ditadura militar! Aliás, o fato em si do MDB rivalizar praticamente em pé de igualdade com a ARENA no auge da ditadura mostra o quanto o Acre teve sempre um certo charme de inquietação e rebeldia. Enquanto isso, na maior parte do país, principalmente nos pequenos estados do Norte e do Nordeste, prevalecia o jogo das velhas oligarquias alinhadas ao regime dos generais.
Esse traço de inquietação e ousadia, como dito, extrapola a política. Ele permite enxergar uma linha de conexão, por exemplo, entre a trajetória de Plácido de Castro e seu exército de seringueiros lutando contra o domínio boliviano e Chico Mendes e os povos da floresta mobilizados no enfrentamento à violenta chegada da pecuária ao Alto Acre, nos anos 1980. Ou que explica a fácil convivência de nossa tradição católica com questões morais e de comportamento que em outras regiões da Amazônia e do Nordeste eram tratadas como pecados capitais.
O que dizer da naturalidade com que em nossas minúsculas cidades, em tempos longínquos, bordéis e suas profissionais da noite fossem normalizados? Ou do progressismo de uma pequena Tarauacá no meio da floresta? Ou da simplicidade e tolerância com que cidades como Xapuri e Brasiléia lidaram com seus primeiros homossexuais conhecidos? É evidente que houve problemas e dificuldades. Nada, porém, que se aproxime das histórias de intolerância e violência de outros cantos da Amazônia.
Na vida privada, as famílias acreanas quase sempre lidaram com naturalidade com seus membros LGBTQIA+. E isso mesmo após a chegada do movimento neopentecostal com sua pregação belicosa e pretensamente puritana. A marca aqui é da hipocrisia de uma moral dual que distingue e separa vida pública de vida privada.
O mesmo pode ser dito em relação a estrutura familiar. Lembro quando criança, na minha Brasileia do coração, a naturalidade com que lidávamos com uma vizinha casada com dois maridos. Ou as inúmeras histórias de homens com duas famílias. E a profusão de famílias monoparentais, em que mães heroínas fazem as vezes de provedora, cuidadora e protetora do lar.
Essa condição de família tradicional por aqui foi sempre muito mais exceção que regra social. Falar de uma sociedade interessada em manter traços de continuidade que garantam estabilidade e constância na convivência social, como pregam os conservadores, é tão absurdamente equivocado quanto dizer que a maior parte dos acreanos que votou em Bolsonaro em 2018 o fez porque se identificou com sua (falsa) pregação moralista e conservadora, com sua defesa da “tradicional família brasileira”.
Há quatro anos, o capitão Bolsonaro era o antissistema, aquele que veio para quebrar as velhas estruturas estabelecidas e abrir novas possibilidades ante a dura realidade de crise econômica e lutas políticas intermináveis. O enviado capaz de estraçalhar a estabilidade de vinte anos de domínio da esquerda na política local.
O acreano, portanto, não fez uma escolha pelo conservadorismo de direita. Melhor dizendo, nem todos os eleitores de Bolsonaro no Acre o fizeram. Escolheu acima de tudo a mudança – mesmo sem ter a menor ideia em que isso daria. Deu ruim, é verdade; a coisa ficou pior e a vida mais dura. Mas, a exemplo de outros tempos, seguiu tentando.
O fato é que essa mistura poderosa que resulta de inquietação, ousadia e desejo de mudança constitui a marca característica de nosso comportamento social e político. Ignorar isso equivale a desrespeitar quem somos. Por aqui, entre erros e acertos, a maior parte do povo segue buscando mudanças, na expectativa que em algum momento as coisas engrenem. O problema é que em boa parte das vezes as opções disponíveis não eram boas, a exemplo de 2018.
Escrever sobre as coisas do Acre requer alguma dose de boa vontade com a vida e, mais ainda, com uma comunidade perdida em seu espaço-tempo, vivendo um transe difícil e perigoso. A bem da verdade, não exatamente o Acre. O mundo está a cobrar boa vontade de quem queira guardar certo otimismo.
Ser otimista e acreditar na vida requer que se tenha esperança de que a bondade, a verdade e a justiça se sobressaiam no comportamento das pessoas e na fluidez da convivência entre elas. É preciso crer no poder do amor ágape e na solidez da verdade – crenças tão preciosas à fé cristã que nos balizou a vida desde que Cabral aportou por aqui com suas cruzes do catolicismo romano.
O que embaralha o “meio-de-campo” mais ainda neste momento confuso é que justamente os que se dizem legítimos portadores da mensagem de Cristo são quem mais demonstra intolerância e ódio, e compartilha informações sabiamente mentirosas junto aos seus. Hoje não exatamente católicos romanos, mas protestantes evangélicos.
Acreditar na bondade humana é ainda mais difícil – e só piora. O que dizer de pessoas que aproveitam a tragédia provocada pelas chuvas no litoral norte de São Paulo e vendem litros d’água a 93 reais? Alivia saber que o repórter que noticiou tamanho desatino capitalista foi capaz de chorar comovido. Mas, não apaga a sensação que o valor moral de justiça capitula a todo momento frente ao oportunismo de “empreendedores” dispostos a sacrificar qualquer moral cristã por mais valor em moeda corrente. Cá não é diferente de lá, haja visto o preço do tomate em Marechal Thaumaturgo.
Ou, o que dizer da indiferença da maioria frente às centenas de moribundos pedindo esmolas nos sinais de nossa Rio Branco? Seriam humanos os pedintes? Filhos de Deus como eu e você, ou seres desprovidos de humanidade e abandonados pela providência divina como consequência de seus pecados imperdoáveis? Não seria esse o sentimento dos indiferentes, a buscar no recôndito de suas almas uma justificação moral para o desmazelo com a amorosa mensagem de Jesus Cristo?
Vivemos um estado de transe porque, feito adolescente em busca de um sentido para a vida, perdemos nossa fé na identidade amazônica que carregamos até aqui e, apressadamente, caminhamos para uma outra forma de vida que não sabemos bem como será. Feito jovem na puberdade, estamos prenhes de novas sensações e desejos. Não se entende bem os sentimentos provocados pela explosão hormonal dessa fase. Diante do medo – para não dizer do pânico – que a perda de convicções duramente conquistadas ao longo de anos de vivências em um mundo estável garantido pela segurança dos pais e a proximidade da família, a atitude indicada por uma psiquê em formação é a negação. Nega-se a tudo nesse momento. A regra é destruir as verdades até então válidas, e buscar frenética e violentamente um novo sentido para a vida, algo que parta de si para si, em oposição ao que fora herdado dos sonhos e desejos dos pais, e das veladas cobranças da família. Ao final pode surgir um adulto consciente de si mesmo e orgulhoso das escolhas que fez, ou não.
Como comunidade de acreanos, é essa a transição que vivemos. A forma como a atravessaremos determinará o lugar que iremos ocupar no mundo. Podemos fazer boas escolhas e desenhar uma trajetória de sucesso, ou, imersos em pesadelos e dominados pelo medo, podemos trilhar caminhos que nos levem a um ambiente de ódio, mentiras e indiferença pela dor do outro.
Até aqui, confesso!, em mim tem prevalecido um certo desencanto, um justificado receio se seremos capazes de sair melhores desse estado de transe. Temo que a presença de vozes obscuras a sussurrar em nossos ouvidos mensagens estranhas nos afastem cada vez mais da trajetória original e, quando quisermos nos reconectar com os valores e convicções de onde viemos, seja tarde demais. Ou você não ouve por aí coisas como “tem que derrubar mesmo, afinal, quem gosta de mato é macaco”? Ou, “acreano não é rico porque é preguiçoso; com tanta terra pra plantar, fica ouvindo conversa mole de quem fala em preservar floresta”. Eu ouço, o tempo todo!
Enfim, espero recuperar, em algum momento, o otimismo e a fé no futuro que me embalaram a vida desde que superei as agruras da adolescência. Afinal, voltar a acreditar na justiça, no amor e na verdade é não apenas uma necessidade desses tempos. Professar essa fé é parte da condição humana da qual nenhum de nós deseja abrir mão.

O desenvolvimento de um estado distante dos grandes centros econômicos do país, com um histórico de fragilidade institucional e escassez de empreendedores reais, daqueles desapegados de privilégios advindos do setor público e dos acordos políticos, é um desafio monumental. Mais ainda se pensarmos na necessidade da adoção de modelos econômicos que não recorram pura e simplesmente à pilhagem dos recursos naturais – saída comum a regiões que voltaram à absoluta pobreza após o exaurimento da natureza.
A experiência recente do Acre prova isso. Desde o fim do ciclo do extrativismo e após o desvario da política de atração de especuladores imobiliários, que compraram imensas propriedades e, posteriormente, expulsaram as famílias de seringueiros para transformar seringais em fazendas, na fase de intensiva implantação da pecuária, passando pelo breve período de estruturação da agricultura familiar, na gestão do governador Geraldo Mesquita, quando foram criadas organizações públicas importantes, como COLONACRE, CAGEACRE, EMATER e CILA, além da CODISACRE para o setor da indústria, o Acre patina entre grupos políticos mais interessados em manter o poder usando a estrutura de governo como cabide de emprego que em promover desenvolvimento econômico por meio de soluções criativas e duradouras.
O ciclo da Frente Popular, em parte dele, foi um sopro de realismo frente a tanto desvario e descaminho. A tentativa de estruturação de uma infraestrutura produtiva baseada em recursos florestais, principalmente o manejo da madeira, e assentada na pequena produção familiar, foi solapada pela força avassaladora da crise financeira de 2008, que praticamente fechou o mercado mundial de madeira, e pela concorrência desleal de Rondônia e do sul do Pará, de onde vem saindo madeira “esquentada” retirada de áreas públicas e terras indígenas há várias décadas. A demora na implementação dos mecanismos de remuneração por serviços ambientais previstos no Protocolo de Quioto e, mais recentemente, no Acordo de Paris, é outra razão pela qual a proposta da Frente Popular ficou pelo caminho.
Ainda assim, dessa experiência resultaram alguns empreendimentos que hoje respondem por boa parte da pauta de exportações e da produção industrial acreana, como a COOPERACRE, a ACRELOG, a Dom Porquito e a Acreaves.
No cenário atual, de profundas transformações na economia mundial, mais que recursos naturais, capital financeiro e instituições fortes, o que realmente amplia as possibilidades de sucesso de uma região é a capacidade de produzir conhecimento aplicado, gerado por meio de fortes investimentos em ciência e tecnologia, que se traduzam em inovações tecnológicas a serem espalhadas pelas atividades econômicas, gerando produtos de alto valor agregado e com forte potencial de geração de empregos. No caso do Acre, a posição geográfica e o fato de ser parte da amazônia condicionam fortemente as opções. De um lado, precisamos ter clareza que as melhores oportunidades econômicas estão na direção do Peru e do Pacífico, e não de São Paulo. Segundo, que jamais teremos sucesso se nossas elites seguirem na decisão de ignorar o que dizem os mercados mundiais sobre a inviabilidade de atividades econômicas destruidoras de florestas primárias ricas em biodiversidade e fortes produtoras de serviços ambientais, como a floresta amazônica que recobre ainda perto de 85% do nosso território.
Em recente artigo publicado aqui no ac24horas, o ex-deputado Ronald Polanco e o pesquisador Rafael Galdini mostraram o caminho. Com base no diagnóstico produzido pelo CEDEPLAR, em um amplo estudo financiado pelo Governo do Estado, Assembleia Legislativa e TCE, Polanco e Galdini defendem a proposta de estruturação de uma forte política de ciência e tecnologia, voltada para a geração de inovações capazes de alavancar produtos da bioeconomia amazônica com alto potencial de mercado. O artigo aponta intenções e direções. Mostra que é preciso criar um ecossistema de inovação baseado no que já vem sendo feito, integrando esforços e ampliando parcerias com instituições nacionais e internacionais. Alerta, porém, que algo assim só terá sucesso se for encampado pelo poder público, no caso, o Governo do Estado. Uma abordagem que faz muito sentido.
O chamamento à mobilização de estudiosos e pesquisadores foi lançado. O debate sobre os caminhos do desenvolvimento, mais uma vez, está aberto. Que sejamos capazes de aproveitar as “janelas de oportunidades” que momentos como esse representam. O que não dá é para seguirmos na disputa entre grupos políticos que apenas usam o estado para acumular poder e privilégios, às custas do recurso público que deveria ser empregado no bem-estar do povo e na preservação da natureza rica e diversa que Deus nos legou cuidar.

O dia 8 de janeiro de 2023 entrará para a história do Brasil. Os atos terroristas contra as instituições que simbolizam a República tinham como objetivo destruir a democracia e instaurar um regime de força baseado no poder das armas empunhadas por militares a serviço das pautas da extrema-direita. O país esteve muito perto de um levante que, em tese, poderia resultar numa guerra civil. A irresponsabilidade de quem promoveu tamanho absurdo é semelhante à inconsequência de quem o apoia.
Os responsáveis são grupos bolsonaristas inconformados com o resultado da eleição de outubro dispostos a promover um levante político. Estimuladas por uma verdadeira avalanche de publicações de fake news em redes sociais, essas pessoas acreditam que estavam realizando uma missão superior destinada a livrar o Brasil do perigo comunista que, segundo seus delírios, quer destruir suas famílias e patrimônios. Acreditam que Lula não venceu a eleição e que as urnas foram fraudadas. Estranhamento, acham isso somente em relação à eleição presidencial, sem qualquer consideração sobre as escolhas de deputados, senadores e governadores.
O Acre aparece hoje como um kluster bolsonarista. Mas, resisto em acreditar que seja um apoiador majoritário do que o bolsonarismo fez em Brasília no domingo, e do que pode fazer caso continue agredindo as instituições e a normalidade democrática. Como já escrevi nesta coluna, o Acre foi terreno fértil para a resistência aos militares no poder durante a Ditadura. Aqui a ARENA, que era o partido do regime, perdeu praticamente todas as disputas entre 1978 e 1989. O Acre, em verdade, tem uma raiz de oposição que nasceu com o levante contra o exército boliviano na gloriosa Revolução Acreana. Somos herdeiros de uma certa veia democrática e antissistema. Paradoxalmente, é o que explica o crescimento do bolsonarismo raiz por aqui. Mas, indica também que quando esse movimento descamba para práticas golpistas de feição autoritária, como os atos terroristas de 8 de janeiro, arrisca perder o apoio majoritário que recebeu até agora.
O que a extrema-direita bolsonarista fez no domingo atenta contra todos os princípios da vida democrática. Invadir e vandalizar palácios que simbolizam os poderes da República é em si algo que deve receber a repulsa de toda pessoa civilizada deste país. Pior ainda quando se percebe que, a rigor, o objetivo era gerar um estado de caos e, com isso, justificar a intervenção das Forças Armadas e a instauração de um regime estranho à normalidade democrática.
Essa é daquelas coisas que ninguém sabe onde vai dar. O Golpe de 1964 foi realizado sob a promessa de rápida restauração da ordem constitucional. Grande mentira. Durou 25 longos anos, muitas vidas ceifadas e outros tantos de brasileiros torturados ou expulsos do país. Um regime de vergonha que jamais deveria ter acontecido. Da mesma forma como os generais assaltaram o poder para si em 1964, sob desculpas as mais variadas, Bolsonaro deseja um levante antidemocrático para tomar o poder e colocá-lo a serviço de sua vaidade e dos sonhos de grandeza dos filhos, além, é claro, de servir aos inconfessos desejos dos grupos econômicos de seguir na pilhagem do patrimônio do povo por meio das famosas privatizações.
São os mesmos grupos que mandam neste país desde sempre e que, a cada vez que vêm seus interesses ameaçados, rapidamente produzem levantes e golpes (militares ou parlamentares) que garantam meios para que sigam com suas medidas de concentração da riqueza e da renda nacional. Foi assim que se trouxe de volta a extrema pobreza e a fome aos lares de milhões de famílias brasileiras após o golpe contra Dilma em 2016.
Hoje, entretanto, o sucesso de um levante como esse poria em ruína todo o país. A comunidade internacional se fecharia para o Brasil. Viriam sanções econômicas, bloqueios financeiros e rejeição diplomática que colocariam o país em condição de penúria, à semelhança da Venezuela neste momento. E, como sempre acontece nesses casos, os pobres e vulneráveis pagariam a conta mais pesada da aventura golpista. Mas, diferente de outros tempos, toda a nação sofreria.
O papel das pessoas conscientes, dos democratas, da imprensa e dos operadores das instituições é, neste momento, combater os arroubos autoritários dos grupos bolsonaristas. É denunciar os propagadores de narrativas mentirosas que põem em dúvida a lisura da justiça e do sistema eleitoral brasileiro. Neste momento a República, a democracia e a vida econômica do Brasil estão em jogo. Defendê-las é defender nossas famílias, nossas casas e nossas vidas.
Sempre que penso nos caminhos percorridos pelo Acre entre os anos 1980 e hoje, em que quatro décadas tortuosas e intensas nos arrastaram por vias que, inadvertidamente, substituíram rios e varadouros, jogando nossas consciências para cima e para baixo, para a direita e para esquerda, num sacolejo de visões e convicções que irremediavelmente alteraram nossos sonhos e desejos, abrindo cominho para esse mundo líquido, insípido e inodoro em que estamos hoje.
Sempre que penso neles, os caminhos, fico a refletir sobre em quais pontos críticos, “tipping point”, como diz Malcolm Gladwell em seu livro magistral, estariam as marcas da virada que pivotou nossa trajetória e conduziu as coisas até aqui. Talvez não tenha sido apenas uma virada. O mais provável mesmo é que tenham sido várias. O fato é que hoje não se pode dizer que estejamos felizes com quem somos. Se não, como explicar que tantos jovens talentos acreanos estejam preferindo tentar a vida em outras terras. Ou que pelas ruas, nos encontros casuais ou nas confraternizações, não se encontre pessoas felizes e esperançosas com o futuro. É quase certo que uma pesquisa de opinião que procurasse levantar o estado de humor e as expectativas das pessoas, concluiria o que estou a dizer – presumo que de forma esmagadora.
Advogo a tese que aos poucos, lamentavelmente, estamos deixando de ser acreanos para nos tornamos algo que ninguém sabe dizer o que é ou o que será, já que “o processo” segue em pleno curso. E que isso não está nos fazendo bem. Pode ser apenas a dor da passagem, da transição, como a dolorosa experiência do parto para a criança que se vê expelida de um lugar quente e seguro para um outro frio e hostil. Desconfio que seja mais do que isso.
Exemplifico com uma passagem marcante. Foi quando estive pela primeira vez na Terra Indígena Puianawa, em Mâncio Lima, pelos idos de 2010, e ouvi sobre como o povo vinha lutando para resgatar tradições e reconectar-se com sua ancestralidade. Mais que ouvir, eu vi as perturbadoras dores da passagem que aquele povo decidira fazer. Implicava restaurar a tradição da dança, do pajé e da transcendência com a ayahuasca, restaurando junto mitos fundadores e rituais do cotidiano – tudo na intenção de resgatar a identidade perdida no redemoinho de relações desiguais com não-índios da cidade e missionários evangelizadores, ambos a lhes negar os costumes herdados. Dores de quem decide empreender uma jornada necessária, ainda que dura e longa.
Uma cultura não fica parada no tempo. É movimento que cria e recria, adaptando permanentemente modos de vida e estratégias de sobrevivência. Alguma coisa, uma linha, um rio, precisa conectar passado e futuro, percorrendo gerações e fazendo com que valores e costumes caros ao povo sejam preservados.
O ponto de ruptura acontece quando novos ventos alteram a curva dos desejos e subvertem o mundo dos sonhos. Pode ser um missionário, um padre ou um vendedor. Ou quem sabe um capitalista montado em malas de dinheiro. Ou um político sequioso por poder e prestígio. Em muitos casos é tão somente a onda eletromagnética que, antes, adentrava casas pela antena da tv e agora irradia na brilhante tela do smartphone. Podem trazer o desejo pela camionete do fazendeiro ou o apego pela vida glamourosa do influencer da ocasião.
Um ponto de ruptura pode ser algo mais singelo como o desemprego ou a fome. Pode ser a desesperança pela frustração de expectativas não realizadas. Enfim, tipping point. Eles existem.
O que fazer para nos resgatarmos das viradas que instalaram a insensatez de uma vida líquida e sem sal, e que nos levam à condição de um povo perdido no vazio da falta de identidade e sentidos? Talvez possamos começar por pensar a respeito. Pode ser mesmo um bom começo. Um dia, quem sabe, tenhamos a sabedoria e a coragem do povo Puyanawa.
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