A Ufac tinha achado a cabeça de um Purussauru e o laboratório de paleontologia estava em festa. O editor do jornal A Gazeta do Povo, Antônio Luiz, pautou o repórter Jorge Souza para fazer uma reportagem sobre dinossauros.
O jornal agora era de um colorido desbotado, uma novidade nos dias em que reinava soberana a Olivetti e os relatos dos mundos eram estampados em preto e branco. A transição para um espectro multicor marcou o início de uma era vibrante, onde as manchetes ganhavam vida e o jornalismo se tornava ainda mais cativante, apesar da má qualidade da impressão colorida.
Seria o máximo publicar sobre o achado. Jorge, ansioso, preparou-se para a tarefa. A descoberta prometia revolucionar o entendimento de épocas pré-históricas, trazendo luz a um passado distante de mais de 250 milhões de anos no Acre.
Os dinossauros ganharam vida depois de milhões de anos sepultados pela extinção do planeta. Steven Spielberg acabara de lançar Jurassic Park – O Parque dos Dinossauros (1993), e precisávamos aproveitar essa tendência. Os cinemas fervilhavam e a mania de dinossauros chegava para ficar.
Nunca mais o mundo seria o mesmo. A fascinação por essas criaturas pré-históricas estava agora impressa na cultura global. Ecos do rugido do T-Rex repercutiam, transformando nossa percepção de história e ciência. Os dinossauros estavam de volta, e seu impacto inquestionável.
A matéria seria o destaque da capa do segundo caderno dominical. As atividades rotineiras eram realizadas simultaneamente à produção de reportagens especiais e mais detalhadas para o domingo, as quais deveriam estar prontas até o meio-dia de sábado. Encerrada a semana, a maioria dos repórteres ia ao primeiro bar disponível para saborear algumas bebidas enquanto a noite descia com sua iluminação suave.
O álcool intoxicava de maneira semelhante ao jornalismo, infundindo uma adrenalina irresistível. Cada história narrada, cada linha redigida, representava um gole adicional dessa poderosa bebida chamada notícia. Em essência, entre sorvos e escritos, construía-se a narrativa da vida urbana. No bar, ruminavam-se as principais notícias da semana.
O jornalismo não conhece folgas; é uma chama constante. Cada copo levantado, cada risada compartilhada, são tecidos para o enredo da próxima grande história. A vida e as palavras se entrelaçam narrando o cotidiano, produzindo histórias. Se escrever era um vício, ler o jornal todos os dias também.
Jorge dedicou-se intensamente ao trabalho ao longo da semana. Aprofundou-se em estudos históricos e investigou a vida dos dinossauros. A empolgação era palpável, pois a capa do segundo caderno seria sua – um privilégio. Seu nome seria exibido no jornal, demonstrando a todos o fruto do seu esforço. Uma sensação de prazer única. Inclusive, o entusiasmo era contagiante na redação, que fervilhava de atividade no estalar de dedos nas máquinas de escrever, ecoando na redação.
Era uma atmosfera palpável de prazer, a satisfação de Jorge contagiosa. Todos aguardavam ansiosos pelo grande dia, quando a história dos dinossauros, contada por ele, seria revelada ao mundo. Na sexta-feira resolveu não beber, queria estar sóbrio, sem ressaca no sábado pela manhã, o dia da pré-estreia na capa do segundo caderno.
Como de costume, chegou cedo ao jornal e mergulhou no trabalho. O som dos dedos batendo nas teclas da antiga máquina de escrever ressoava pela redação. Cada batida soava como o tic-tac de um relógio, marcando o passar do tempo. As ideias fluíam como um fluxo constante de palavras, revelando histórias, moldando perspectivas e preenchendo o silêncio da sala. Às 9h30, a matéria estava concluída. Com o orgulho palpável de um jovem, entregou a reportagem finalizada ao editor Antonio Luiz.
O editor-chefe, sem levantar a cabeça, recebeu e começou a ler. De repente, ele parou e começou a esbravejar em voz alta, riscando com violência o texto nas laudas de Jorge. A redação inteira assistia à cena, indiferente, como se fosse a ocorrência mais natural do mundo.
_ Porra, Jorge, que p* é essa? Que p* de texto é esse, cara***! Não acredito que você passa a semana toda trabalhando para escrever uma bosta dessas. Eu quero o Rex na p* dessa história. Quem quer saber de preguiça-gigante, de Mapinguari e jacaré-Açu, me diga você?!
Jorge, o foca, ficou paralisado, assustado com os gritos. Nunca alguém gritou com ele assim. Enquanto o eco da raiva ardia, Jorge sentia seu coração bater com tamanha força que parecia querer escapar pela boca. Um misto de medo e raiva o envolvia, fazendo-o questionar sua coragem. Ele respirou fundo, tentando acalmar a agitação em seu peito e encontrar a força para reagir sem a mesma truculência.
Temendo a reação de Jorge em querer esganá-lo descontrolado pela fúria que poderia brotar do seu coração, o editor começou a contemporizar a situação. Era perceptível que aquela cena marcaria a vida de Jorge para sempre como uma cicatriz em sua alma. A agressão descambou para bravatas.
_ Porra Jorge! Eu sei cara, que você tem talento e informações para melhorar esse material. Senta ali, vai, pensa no sujeito que vai ler a tua história. Ele precisa sentir o Tiranossauro Rex à sua frente.
Aos poucos, Jorge foi se recompondo. O choque inicial se transformou em uma raiva silenciosa que borbulhava em seu peito. Ele retornou à sua mesa, sentou-se, respirou profundamente e lembrou-se dos avisos de seus colegas sobre a possibilidade desse fato acontecer. Pôs uma folha na máquina e começou a digitar uma série de palavrões e insultos direcionados a Antônio. Sorriu de maneira estranha e irônica, enquanto algumas lágrimas escorriam pelo seu rosto. Considerou que fosse um teste para fazê-lo desistir do jornalismo. Conhecia seu coração, sonhos e convicções, foi amor à primeira vista. Para ele, não existia ex-jornalista, nem mesmo em lápides de túmulos, principalmente desde que lera o livro “Minha Razão de Viver”, de Samuel Wanner.
Jorge dedicou-se a refazer seu trabalho. O objetivo não era simplesmente produzir uma reportagem, mas sim, “literatura”. Ele empregou a licença poética, conforme orientado por seu editor. É pertinente mencionar que Antônio também explorou essa liberdade criativa ao escrever a manchete.
Nas primeiras horas do domingo, Jorge foi à banca de jornal para verificar o resultado de seu trabalho. Em destaque na capa, estava a intrigante manchete: “Eles estiveram entre nós”, seguida por uma imagem do Purussauru e um T-Rex com a mandíbula escancarada. No entanto, vale salientar que os humanos nunca coexistiram com os dinossauros; éramos meras amebas nos oceanos, ou segundo a Bíblia, pó da terra.
Hoje, passados mais de 30 anos dessa história, é bem possível imaginar que há 365 milhões de anos um T-Rex e seus parentes também tenham transitado por estas terras alheios ao meteoro que iria cair na península de Yucatán, México, e não apenas o Purussauru e a preguiça-gigante, o nosso Mapinguari, que assombrava os seringueiros no século passado.
Com o passar dos anos algumas reportagens e histórias contadas, tão importantes à época, perdem o glamour. São apenas papéis amarelados com textos ingênuos, mas que despertaram sentimentos e emoções verdadeiras a seu tempo e modo até que alguém as tira do fundo do baú da memória e revive a experiência novamente. Se a narrativa tem buracos, deve-se lembrar do que disse Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão):
“A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.