A prática política instituiu um brocado cínico mediante o qual o aliado de hoje é o adversário de amanhã e vice-versa, afirmando de pronto a fluidez das convicções, a desconfiança e a farsa. Daí é comum vermos de mãos dadas aqueles pelos quais nos esbofeteamos, e trocando socos aqueles que nos irmanavam. O eleitor cada vez mais se sente vendido, como engrenagem de uma máquina que ajuda a mover num ritmo e propósito alheios ao seu controle.
As relações político-partidárias no centro do poder dispensam os compromissos de base, e os representantes no parlamento pouco se importam em cumprir as expectativas do seu eleitor, como se o mandato popular outorgado fosse um regalo e não uma ordem. A palavra “mandato” tem sua origem no latim “mandatum”, que significa “ordem” ou “instrução”, e deriva do verbo “mandare”, cujo significado é “enviar” ou “confiar a alguém”.
Com esse conteúdo deu-se a origem do mandato ainda na Antiguidade, quando os cidadãos de algumas cidades-estados gregas, como Atenas e Esparta, escolhiam seus representantes para ocupar cargos públicos não remunerados e de curta duração, diga-se. Com o desenvolvimento das sociedades o mandato eleitoral passou a ser amplamente adotado. Já na Idade Média, por exemplo, os monarcas europeus começaram a convocar assembleias semelhantes aos atuais parlamentos, compostos por representantes dos diferentes estamentos da sociedade.
No século XVIII, com a Revolução Francesa, o mandato eleitoral foi definitivamente incorporado às Constituições dos Estados modernos. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, quando proclamou que “todo homem tem o direito de participar do governo da sociedade” remetia essa participação a uma representação popular. A partir daí, o mandato eleitoral tornou-se um princípio fundamental das democracias, representando a ideia de que o poder político deve emanar do povo, soberanamente, como, aliás, institui nossa Constituição Federal.
Ocorre, porém, sob nossas fuças mandantes, os mandatários se moverem serpenteando entre obstáculos e facilidades interpostas, buscando ao próprio critério se colocarem em posições cada vez mais privilegiadas em relação aos seus interesses. A esta altura, o menos importante é o mandato como representação, e, o mais importante, é o mandato como oportunidade de realização de projetos pessoais e de reprodução do próprio status.
As mudanças de rumo, vale dizer, de compromisso com o eleitor, tomadas por chefes partidários e parlamentares de várias matizes são quase sempre na direção do canto da sereia executiva, onde são estocadas e distribuídas sem pudor facilidades, cargos e recursos financeiros. O pragmático (título enganoso dado a quem busca alucinadamente os fins, independentemente dos meios), como mariposa, não resiste à luz dourada do poder e disso aproveita o governante cujo itinerário descola-se desde logo do pactuado com a sociedade.
Lula da Silva não demora a desviar-se de suas promessas. Por sua própria natureza ou como se observasse Maquiavel em “O Príncipe. cap.17”, onde se pode ler:
“É necessário, portanto, que o príncipe seja capaz de julgar convenientemente as ocasiões, e que saiba mudar de conduta como a mudança das circunstâncias o requerer. Não deve, portanto, ligar-se a nenhuma palavra nem promessa, se isso o impedir de fazer o que for necessário para a sua própria segurança.”
o presidente da república desfaz-se do dito como não dito e age, sem pejo, de modo a consolidar sua posição via favorecimento de “opositores” pouco ciosos de sua posição. Conta para tal com o apoio das altas Cortes, da velha imprensa e de outros setores da sociedade os quais, como se não vislumbrassem a promiscuidade à vista nua, endossam o atalho.
Infelizmente, nossa democracia, hoje vilipendiada, está longe de abarcar a legitimidade do poder assinalada por John Locke em sua obra de 1690 “Segundo tratado sobre o governo civil. cap.19”, onde esclarece:
“Quando o governo é estabelecido, o consentimento do povo é dado para a execução da lei de Deus e da natureza, ou seja, para a preservação da propriedade, a vida, e a liberdade de todos os homens, que são a finalidade para a qual o governo foi instituído. Se o governo não cumprir essa finalidade, ele não tem mais direito ao consentimento do povo, e o povo tem o direito de alterar ou destituir o governo.”
Locke, quase 180 anos depois de Maquiavel, propunha, no contexto da Revolução Inglesa, que o governo, qualquer governo, perde legitimidade a partir do ponto de traição dos postulados essenciais geradores da sua existência. Fácil deduzir que fora das finalidades pactuadas todo governo é ilegítimo, devendo, pois, ser destituído. Observemos em John Locke a coerência com a perspectiva grega de mandato como ordem, ou, se preferirmos, representação comprometida.
Voltemos ao Brasil de Lula, Lira, Pacheco e Alexandre e consideremos os movimentos de alteração da organização do Executivo para criação de novas pastas ministeriais, cargos e mordomias sinalizando a proliferação de vantagens à medida da necessidade de cooptação parlamentar. Lula confirma sua própria indignidade, desnatura a república institui o toma lá, dá cá mais escrachado que já se viu e o povo paga a conta.
A seu turno, partidos e políticos invertebrados, se apresentam propensos a despir suas vestes conservadoras, muitas delas cristãs, para embarcar de mala e cuia num governo declaradamente oposto aos valores relacionados à família, ao patriotismo e à religião, que se orgulha de ser chamado de comunista e motor de pautas progressistas. Na direção de quem apontar o dedo acusatório? Do governante maquiavélico, disposto a descartar todo escrúpulo para manter-se, ou aos parlamentares espontaneamente apeados de sua própria razão de existir?
De ambos, dirá qualquer cidadão honesto e ciente de sua condição como eleitor. Dirá, mas dificilmente será ouvido. É surpreendente no caso brasileiro a ligeireza ética dessa gente mandatária do povo ao trocar de discurso. Uma rapidez arriscada nos dias atuais se pensarmos em quão veloz e ampla é a comunicação via redes sociais, sites de notícias etc. Alguém precisa avisá-los da transparência total, estamos vendo tudo. Exemplos há por aí de parlamentares muitíssimo bem votados em grandes estados brasileiros, verdadeiras celebridades, cujos mandatos foram tomados de forma humilhante após comportamentos indignos, contrários aos interesses do mandante, digo, do eleitor.
Depois de eleito, o sujeito não pode mudar de ponto de vista? perguntará o cidadão de boa-fé. Digamos que sim, afinal, o eleito não tem uma bola de ferro atada aos pés a cada decisão ou votação. Contudo, para ser defensável, a mudança de lado terá obrigatoriamente o assentimento dos eleitores e razões de seu conhecimento num processo de repactuação do mandato, significando, sem fuga à legitimidade proposta por John Locke, uma alteração decorrente da conjuntura política em conformidade com o eleitorado. Partido e político que se vende é apenas mercadoria barata, independentemente do preço pago.
É preciso cada vez mais conscientizar o cidadão no sentido de acompanhar os votos e posições públicas de seu mandatário. Mesmo os imundos currais eleitorais dependem da ignorância do eleitor para serem mantidos e renovados a cada quatro anos. Do executivo federal ao legislativo municipal, cada voto dado é uma ordem e não um mimo. Impõe-se ao eleito cumpri-la fielmente e dela prestar contas continuamente, sem isso, assistiremos a mudança de camisas partidárias espelhada em compra de jogadores por times de futebol.
Importa ao eleitor saber que a venda do partido, do mandato ou do voto parlamentar, a qualquer pretexto, significa a venda da sua esperança depositada livremente, muitas vezes afirmada à custa de dissabores e desavenças com parentes, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Lula, o comprador, escuda-se nos “interesses” do Estado, na segurança da governabilidade, na negociação, em cooptação amigável, enfim, em vários biombos há tempos marcados para iludir o eleitor, mas, o comprado? Este terá que se explicar, cedo ou tarde.
Até onde se sabe, a maioria que Lula da Silva está pagando à custa do aumento de ministérios e distribuição de vantagens, de emendas PIX (valha-me!), de distribuição de boquinhas aqui, ali e alhures, deverá sustentar o maior enfrentamento já visto ao Estado democrático brasileiro, visa equalizar o Brasil aos países do Foro de São Paulo e render-se ao progressismo escancarado na agenda 2030, incluindo aí a entrega da soberania brasileira sobre a Amazônia. Escolhida a música, Lula da Silva está chamando o parlamento para a dança obscena numa Sodoma moderna.
Valterlucio Bessa Campelo escreve semanalmente no ac24horas e, eventualmente, em seu BLOG, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor Percival Puggina e outros. É autor do livro “Desaforos e Desaforismos (politicamente incorretos)” publicado pela UICLAP, que pode ser adquirido aqui.
*A imagem acima foi gerada a partir de inteligência artificial DALL-E.