Os cães urradores americanos se agitavam de um lado para o outro na margem. A voadeira girava em marcha lenta desgovernada em volta da caça no meio do rio. Agachado, na borda do barco, segurando o veado pelos pequenos chifres, Chico Bezerra lutava para manter o animal preso em suas mãos. Pediu ajuda para o menino que estava com ele no barco. A criança não reagia paralisada pela brutalidade da cena. Um garoto da cidade que pela primeira vez participava de uma caçada. Década de 80, em meados de outubro, começo do inverno. O repiquete estava a meio barranco no alto rio Acre, na região do igarapé Noaya.
“Traz a corda da tarrafa para laçar o bicho, nós vamos perder a caça, Max”. Nervoso gritou novamente: “Ligeiro menino”. Se atirasse com a espingarda o veado submerge no rio. Os cachorros tinham acuado obrigando-o a procurar salvação nas águas barrentas do rio. A criança, movida de compaixão, começou a implorar para não matar o bicho.
“Não, por favor, faça isso não, não mata ele não”! Isto, no meio de uma caçada com cachorros urradores americanos, babando de ferocidade. Não havia espaço para misericórdias. É a lei da selva. Não, não era…era lei dos homens. Animais não matam por puro prazer.
Alheio aos apelos do garoto porque o instante era dramático e a adrenalina viajava a mil pelas artérias do coração, Chico Bezerra empurrou com força a cabeça do veado na água afogando-o. O animal, voltava à tona com olhos esbugalhados de desespero como se implorasse para não ser morto. Berrava angustiado tentando salvar-se. Chico Bezerra empurrou com mais força ainda sentindo nas mãos o poder mórbido do bicho morrer estremecendo debaixo d’água até não lhe restar mais vida. Morto por afogamento. Puxou-o para dentro do barco com esforço enquanto o garoto assistia impassível a crueldade da arte de matar. Com a língua de fora e os olhos arregalados, o bicho sem vida fitava o vazio, o abismo onde não há mais vida. O menino vivo, também. A estética da morte.
Chico Bezerra descobriu que não tinha afogado um veado macho, mas uma jovem fêmea. Espanto, silêncio. A criança congelava em sua memória a cena daquele dia que marcaria sua vida para sempre. Os cães agitados uivavam no barranco querendo a presa.
Durante uma caçada, os humanos experimentam um poder originário, antigo, oculto na noite escura do tempo. Como se a energia da vida do animal morto passasse para eles ao matá-lo. Comê-lo era apenas um ato simbólico. Na verdade, a energia vinha em forma de alimento, mas era outro tipo de energia, algo muito além, primordial: O poder que todos almejam que os fazem sentir superiores. Numa caçada o medo não existe.
Enquanto o couro da veada era retirado para, em seguida, comerem uns pedaços assados em volta de uma fogueira, a rapaziada zombava da criança pelo momento de fraqueza. Ele precisava aprender que na vida só existem dois tipos de homens: Caçador e caça. Regra válida não só para a floresta e os rios, mas para a vida nas cidades de onde ele vinha. O pai, Sebastião Cândido, sabia disso, o filho Max, ainda não. Talvez por isso mesmo o tenha levado a uma caçada: para aprender sobre a vida é ser homem.
Quanto maior a metrópole mais feroz é a luta de uns contra os outros pela sobrevivência. Na política, no futebol, nas favelas, nas empresas, nas gangues de ruas, nos presídios e até nas religiões. Movidos pela competição e pelo poder, os instintos mais brutais do humano se manifestam. Assim é o sapiens, inumano. Há quem diga ser uma herança genética dos Neandertais. A ciência que se explique.
Durante uma caçada não há diferença entre cães e homens. As leis criadas pelos humanos para viverem em cidades, na verdade, são para que tudo não se transforme em caos e a raça humana pereça. Porém, numa caçada só as leis naturais têm valor real porque são instintivas e puras. Na vida social da cidade, os instintos são refinados, sofisticados, tecnológicos, mas, não menos cruéis e mortais.
Nas redes sociais, por exemplo, não é caçada, é carnificina de reputações. Vários jovens cometeram suicídio porque foram caçados e cancelos até a morte. Afogados no rio barrento do ódio, do preconceito, da falta de compreensão e amor. Como o afogamento da fêmea do veado na água. Importante é sentir o poder, o poder de destruir a vida.
Na natureza, longe da cidade, os homens são o que são. Mais verdadeiros em uma caçada do que dentro de um templo onde cultuam Deus ou deuses. Foi assim na Mesopotâmia, Egito, israelitas, gregos, Olmecas, Toltecas, Astecas e Maias. Na natureza a essência se manifesta com pureza instintiva em sua plenitude. Ele é ele mesmo. Um animal. Um predador alfa. Por quê? Simplesmente “porque”, como respondem as crianças.
Na selva de pedras a caçada parece civilizada, mas não é. O homem é o que sente e o que faz, não o que pensa. Como definiu Thomas Hobbes: “O homem é o lobo do homem em seu estado de natureza”. Jogos vorazes. Ele quer poder. Sentir o poder originário adormecido e inconsciente. O que a maioria dos homens quer em um templo? Poder! Poder sobre os demais homens. A princípio, a salvação para suas almas por misericórdia para o perdão de sua maldade, impiedade e pecados. Em seguida o poder de Deus para eles só que negando a misericórdia e amor ao próximo, aos animais e a natureza. Ingratos, medrosos, ambiciosos e cruéis.
Os cães mudam culturas…
O Acre mudou com a chegada dos primeiros cachorros urradores americanos na terceira onda migratória nos anos 70. Seringueiros, colonos, parceleiros e posseiros queriam ter um cão uivador trazido pelos que seriam os primeiros médios e grandes pecuaristas destas paragens, os “sulistas”.
O cão urrador americano promoveu uma revolução cultural. Um choque entre culturas distintas, logo assimilada pelos nativos e nordestinos que vieram antes dos sulistas quando o leite da seringueira viveu o seu período áureo. Na época antiga, a maioria dos cachorros da região eram pequenos e mestiços. Valorosos vira-latas que seja!
Depois da chegada dos sulistas era muito comum encontrar nas colônias entre parceleiros dos projetos de assentamento do Incra e nos remanescente dos seringais, especialmente os ribeirinhos, os cachorros americanos. Conquistaram territórios e corações. Na esteira também veio o tereré do Mato Grosso e o chimarrão do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande. (A diferença é que a erva do chimarrão é mais fina, mais forte e tem que ser com água quente. Aí, temos a erva de tereré. Ela é mais grossa, para colocar água gelada).
As caçadas passaram a ser rotineiras. Tereré e chimarrão também. Caçar com cachorros deixou de ser sobrevivência e se tornou o retorno a um tempo primordial adormecido. Praticado na beira dos rios e igarapés até pelos que moravam nas cidades, que nos finais de semana iam para a casa dos parentes na zona rural caçar. Um retorno à natureza. Ainda não existia o estatuto do desarmamento.
Juntava-se 10, 15, 20 até 30 cachorros e os soltava no mato. Onças, veados, capivaras, porcos, antas, pacas, jabutis escondiam-se em tocas, buracos, subiam em árvores, rios e igarapés, mas de nada adiantava. Os caçadores com seus urradores eram incansáveis, ferozes e violentos. No Acre, na abertura das primeiras fazendas de gado, centenas de onças foram caçadas e mortas com ajuda de cachorros americanos. Onde os cachorros chegaram as caças ficaram escassas.
Jogar um veado, uma paca na água ou ver uma onça trepar num pau era divertido. Um prazer animal. Depois o chumbo comia solto e, em seguida, a festa. Todos suados, cansados e exaustos da caçada. Herança genética das savanas africanas quando, aos poucos, os primeiros humanos se tornaram predadores alfa. Devoravam e eram devorados. Os lobos que deram origem aos cães passaram a ser aliados. Os homens aprenderam muito com os lobos na migração de África e Ásia para o hemisfério Norte.
O cão uivador
Criado nos Estados Unidos no século XVIII como cão de caça de raposas os “Foxhound” americano é grande, forte, resistente, excelente rastreador com uma característica especial: Ele não late, só urra como os lobos. São por excelência corredores. Perfeitos para o Centro-Oeste e Norte do Brasil. Hoje temos o cão rastreador urrador brasileiro.
A técnica da caçada mortal
Um cachorro de barriga cheia encosta na primeira sombra de árvore que tiver para tirar um belo ronco. Fica mole e preguiçoso. Por isso mesmo, dois dias antes eram presos e deixados com muita fome. Tornavam-se mais ferozes, rápidos e violentos. Geralmente uma pessoa entrava com eles no mato para “levantar a caça da cama” e correr tentando acompanhar atiçando com gritos os animais famintos.
O caçador da frente tinha que acompanhar os cachorros, o que era um feito heroico. Entravam na floresta em silêncio. Os primeiros urros indicavam que pegaram o rastro do bicho. E lá se ia a cachorrada uivando mata adentro. A euforia entre os caçadores era grande, adrenalina pura:
“Eita! Pegou rastro! Pegou rastro! Onde será que vai cair na água? No ponto embaixo ou em cima”? Cães e homens uivavam juntos. Os cães pela comida, os homens pelo prazer de matar.
Os demais participantes da caçada ficavam nos pontos de queda na beira do rio. Para se proteger e escapar dos cachorros um veado, por exemplo, corria para a água na tentativa de despistá-los. A caça tem um ponto de queda, ou seja, o lugar em que ela vai pular na água. É quando geralmente é abatida pelos caçadores que estão de tocaia no barranco. Às vezes a caça consegue escapar para a outra margem atravessando o rio. Os cachorros a perseguem e pegam o rastro novamente até cansar o bicho para os caçadores matarem. Alguns animais escapam. A caçada é frustrada. Quando isso acontece o conversei-o e as explicações entre goles de pinga, tragos de tabaco e “cuiadas” de tereré é uma outra aventura.
Os animais na floresta são territorialistas onde se protegem na mata densa, com comida à vontade. Nos dias de estiagem precisam ir ao rio beber água protegidos pelas sombras da noite. Cedo do dia, os urradores podem pegar o rastro na beira do rio deixados pelos bichos que vieram beber água na escuridão. Existem caças que correm para o centro da floresta e não para a água. De dia os cães entram no mato e os espantam para o rio. Começa a luta pela vida.
O despojo
Quando um, dois ou mais bichos eram mortos os cães urradores americanos ganhavam o despojo. Os caçadores os presenteavam com línguas, vísceras, couros, jogando para eles que saciavam a fome. Às vezes cães ficavam perdidos pela mata. Acuaram porcos, onças ou outros bichos de carreira curta que se enfiavam nas tocas ou trepavam em árvores. Voltavam depois de dois ou mais dias. Outros, eram comidos pelas onças. Como diz o ditado: A caça vira o caçador.
A última caçada…
Foi nesse contexto que em meados da década de oitenta, no começo do inverno, fomos para nossa última caçada nas terras do seu Chico Frota, no Alto Acre, na fronteira com a Bolívia. Ele e seus filhos tinham alguns cães urradores e mestiços que formavam uma boa matilha. De dois ainda lembro o nome: Leão e jararaca. Eram urradores, os demais mestiços.
Chegamos a tarde do dia anterior. A caçada já estava preparada para o dia seguinte sem que soubéssemos. Viveríamos uma nova experiência.
Os amigos que foram comigo de Rio Branco pescar nunca haviam participado de uma caçada como aquela. Luís Carlos Moreira Jorge, Átila o Gago, não o Uno, Emerson Totó, Henrique (filho do Crica), o radialista Júnior César e o Borramed – que penso ser uma variação de Mohamed.
Lá no seringal Porto Carlos, colocação Bufeu, nos juntamos ao patriarca Chico Frota (falecido), ao Chico Bezerra (filho, sobrinho e cunhado ao mesmo tempo do seu Chico Frota), Joaquim Frota, José Frota, Juarez Frota, chamado Tronca, Júlio Frota (O Êga, por ser gago), Sebastião Cândido e Dindo Frota, o último da linhagem dos Frotas, epilético ele. Cem Anos de Solidão, mas que sobreviveram ao tempo e à solidão.
As mulheres…
Nessa época existiam dois tipos de mulheres. As que participavam diretamente das caçadas e as que gostavam de esperar os homens chegarem com os bichos mortos para prepará-los. As filhas de do patriarca Chico Frota, por exemplo, a Nalda e a Leuda, além da Maida Farhat, esposa do Juarez Frota, tinham mais disposição, força e coragem para caçar do que muitos homens. Atiravam melhor, inclusive.
Enfim…a última caçada
Partimos cedinho da manhã com a matilha de uns dez cães. A caçada se deu entre a foz do igarapé Noaya até a curva do poço São Luís, abaixo do Riachão, no estirão do rio Acre chamado de Bom Sucesso. A casa do patriarca Chico Frota ficava duas curvas rio abaixo, na foz do igarapé Bufeu.
Armados de espingardas, terçados e revólveres, divididos em um bote de alumínio e uma patinha de cedro, subimos até o lugar em que Juarez e José entraram com os cachorros no mato do lado que margeia a divisa com a Bolívia. Começava a caçada. Formamos três equipes para tocaiar o bicho nos pontos de queda na beira do rio. A mais pura covardia humana.
Na voadeira de onde se tinha uma visão ampla do estirão do rio ficou Chico Bezerra e o menino. Mais embaixo, na boca do Riachão, Borramed e o Júlio, o Êga, o gago. No São Luís, o restante da tropa menos experientes sob a guarda do patriarca Chico Frota. Ele era prudente e queria ter tudo sobre controle para evitar acidentes com armas ou mesmo alguém afogar-se.
Ficamos todos em silêncio. Depois de uma hora de espera ouviu-se o primeiro urro seguido de outros e mais outros. A gritaria foi geral. Alguém disse: “Os cachorros são bons mesmo, já levantaram o veado da cama”. Como sabiam que era um veado? Pelo tipo de uivo que o líder emitiu ecoando na mata virgem. A expectativa agora era onde o bicho iria cair na água. Para despistar os cães, o veado corre para o centro da mata, depois faz uma volta e procura a água.
Mais de uma hora depois o silêncio foi quebrado pelo grupo que estava com o Patriarca Chico Frota na ponta de baixo do estirão no São Luís. Gritavam e gesticulavam para as equipes de cima. Ninguém entendia nada, o vento era o contrário. Foi quando os de cima perceberam que o veado tinha pulado n’água no Riachão onde o gago e o Borramed conversavam sobre o sexo dos anjos. O veado quase atropela os dois que não se deram conta. Percebendo o bicho no rio, Borramed inexperiente pulou na água de galocha com a espingarda nas mãos. Foi salvo de morrer afogado pelo gago Êga.
Antes que o veado escapasse, Chico Bezerra e o menino Max desceram com a voadeira cercando o bicho no meio do rio. Soltou o timão do motor segurando o animal pelos chifres matando-o afogado enquanto o menino clamava pela vida do animal, como mencionei no início da história. Foi a última caçada do Chico Bezerra.
A VERDADE
Na verdade, o Chico Bezerra estava ajudando o patriarca Chico Frota na equipe do poço São Luís. Quem estava na voadeira com o menino Max (que hoje é um homem e pai) era eu. Depois de afogar aquele veado no rio nunca mais matei uma caça. Já tinha participado de muitos tipos de caçadas, matei muitos bichos, mas aquela veada fêmea foi a última. Naquele dia algo morreu dentro de mim que ficou sepultado nas águas do rio Acre. Um homem precisa morrer para muitas coisas nesta vida para que outras melhores nasçam em seu coração. O ajudem a compreender melhor o sentido da vida. Como diz a canção, me tornei um caçador de mim.
O olhar do Max, seus pedidos de misericórdia em favor do animal prestes a ser morto afogado calaram fundo ao meu coração. Nunca nessa vida negue um clamor por misericórdia.
Sempre haverá uma última vez para tudo. Último abraço, último beijo, último adeus… Aprendi com o pequeno Max que a misericórdia é a força motivadora da vida. Fomos à caça por prazer de matar e não por necessidade. Sempre encontro o Sebastião Cândido, pai do Max, recordamos daquele dia marcado para sempre em nossas memórias. Apesar de tudo, foram belos dias em que aprendemos sobre a vida.
Quando ao personagem Chico Bezerra, caberia a ele um capítulo especial desta narrativa. Seringueiro, analfabeto, homem forte e corajoso. Tinha orgulho de dizer: “Sempre matei bichos para comer pela sobrevivência, mas nunca em toda a minha vida, tenho Deus por testemunha, matei uma fêmea prenha ou amamentando filhotes”. Chico na sua ignorância era humano demasiado humano.
Sobre animais e homens…e Deus
“Misericórdia quero e não holocaustos”. (Jesus, o Filho de Deus, citando o profeta Oséias, 6:6). Deus é amor, não quer sangue nem sacrifícios. Quanto ao poder almejado pelos homens, reis, imperadores, sacerdotes, homens comuns da cidade e floresta deram a vida por ele. “Tudo é vaidade e aflição de espírito”, Salomão, o sábio. Esta é uma história verdadeira de “A última Caçada”.
Em memória do patriarca Francisco de Assis Frota (Chico Frota) e Francisco Bezerra (Chico Bezerra).