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Acaraú, uma viagem ao fim do mundo!

Lago Acaraú. Um ambiente infernal. Nunca se viu tanta praga reunida em só lugar. Carapanã, pium, meruim, muriçoca, pernilongo, catuqui, mutuca de anta…tudo isso e muito mais juntos. Isto, associado a um sol de rachar o crâneo. Ar quente, húmido, abafado e sufocante. Como se estivéssemos respirando vapor de água cáustica.


Não ventava um pé de vento. Nem assobiando ele vinha. Vamos chamar o vento/vamos chamar o vento… e o vento não vinha. Tudo parado. À mata, os pássaros, nem uranas e canaranas se moviam. Era como se alguém tivesse pausado o tempo e só nós e as pragas se movessem. A tal Matrix, eu cacho. Com o silêncio, até o rio nos parecia imóvel. O único som irritante aos nossos ouvidos vinha dos piuns e carapanãs, vampiros com muita sede de sangue. Pareciam aviões caças japoneses da 2ª guerra mundial no ouvido, no pé da lata, centenas deles. Milhares deles, na verdade. Nos obrigava a estapear o rosto, as orelhas e o pescoço o tempo todo.


Quando desejo zoar o Luís Carlos Moreira Jorge, o Crica, parceiro, amigo e irmão de todas as horas, pescarias e caçadas (antes da aprovação do Estatuto do Desarmamento) o convido para ir pescar no lago do Acaraú, no Alto rio Acre. O Crica não fala palavrões nem é maldizente. Sempre divertido com uma boa palavra, mas o lago Acaraú o tira do sério. “A culpa é do Joaquim Frota, cabra sem vergonha”, rebate, rindo da dramática situação que vivenciamos na década de 80.


Mas, quem é o Joaquim Frota? E onde fica mesmo o lago Acaraú? Antes, porém, é necessário esclarecer o significado do nome Acaraú. Segundo o google, o topônimo “Acaraú” é de origem tupi, sendo resultado da fusão de akará (cará) e ‘y (rio), significando, portanto, “rio dos carás”. Se algum dia teve carás por lá, quando os cearenses chegaram no Acre por volta de 1800 e alguma coisa comeram todos, não sobrou nem as espinhas.


Para definir quem é o Joaquim Frota precisaria escrever um livro do tamanho de Guerra e Paz (Tolstói) ou Cem Anos de Solidão (Gabriel G.). Sendo redundante, o Joaquim é uma cara incrivelmente incrível. Vive entre dois mundos: Para ele, realidade e fantasia são duas faces da mesma moeda. Até quando mente é honesto. Um camarada fiel e leal até as últimas consequências.


Sua família é imensa e povoou o alto Rio Acre. Ele nasceu por lá, na região do igarapé Noaya. Foi através dele que fizemos muitas viagens. Aventuras de homens que nunca se esqueceram de ser meninos. O apresentei ao Crica, viramos parceiros. Conhecemos lugares incríveis no Acre, Rondônia e Bolívia singrando rios, igarapés e lagos.


O Joaquim sempre me falava do lago do Acaraú, onde morava o Antônio, mão de macaco. O Antônio era um amigo de infância em Brasiléia que migrou para o seringal. Nasceu com um sinal na munheca. Era peluda. Ao que consta, não gostava de ser chamado assim, há de me perdoar por certo. Fomos criados juntos quando meninos e temos a mesma idade. Convenci o Luís Carlos, o Átila (o gago do Quintal do Gago), que de gago não tem nada, e o Emerson (o Totó) a irmos ao lago Acaraú com o Joaquim.


Fomos de carro até Brasiléia, arreamos o barco na praia do urubu, no bairro Samaúma, e partimos. Cinco dias de viagem cansativa, dolorosa, enfastiante. Um bote muito pesado, parecia feito de chumbo, motor pequeno para o peso que levávamos. A gasolina evaporou quase toda na subida em decorrência de uma cabeça d’água que topamos.


Depois de dois dias de subida e, com muito sofrimento e esforço, chegamos a casa do pai do Joaquim, o seu Chico Frota (já falecido). Fizemos pousada e no outro dia cedo da manhã seguimos viagem para o famoso lago Acaraú. Chegamos por volta de onze horas da manhã do terceiro dia. Moído que estávamos. O amigo Antônio mão de macaco jazia lá na sua casa de paxiúba, coberta de palha com um corredor lateral do lado direito que ia até ao rabo de jacu, a cozinha. Um casebre estreito e comprido.


Nos recebeu com alegria. As pragas, piuns e carapanãs também. Dia de festa! Sangue novo da cidade. Estávamos cobertos dos pés à cabeça, molhados, assados do sol e com um calor insuportável. Ficar sem camisa o sangue seria todo drenado para os minúsculos vampiros em alguns minutos.


Indagamos sobre o lago e o Antônio nos informou que era perto. Perto para seringueiro já viu, né. Quando um seringueiro diz que é bem aí, bote cinco horas a pé. Com muita fome e sede, resolvemos arrastar o pesado barco barranco acima até o lago antes de fazer comida. Subimos com o bote um barranco alto, escorregadio e íngreme. Me lembrava o Sísifo da mitologia grega condenado eternamente a empurrar um grande pedra montanha acima como castigo de Zeus pelas presepadas que fez. Chegando no topo, a pedra rolava de volta e lá se ia ele novamente morro acima. Às vezes empurrávamos o barco ele escorregava de volta. A vida é assim.


Já em cima do barranco arrastamos o bote por mais 500 metros entre tocos, espinhos, jurubebas e assa peixes. Um calor sufocante (com as pragas nos devorando vivos) … até a beira do lago. Que lago? Onde estava o lago? Não se via o lago! “Antônio, Joaquim…cadê o lago”? Na maior cara de pau apontaram para um igapó coberto de junco respondendo os dois em uma só voz: “Tá aí, é esse o lago do Acaraú”! Lago?! Um igapó?!


De tão estreito e pequeno que era o tal lago apontado por eles que quando colocamos o barco na poça d’água chamada de Acaraú, a proa ficou em uma margem e a popa na outra. … e os piuns em cima da gente ferroando as orelhas, o nariz, as bochechas entrando pela boca e pelo buraco da venta quando falávamos ou respirávamos. Um verdadeiro inferno. Com um tapa na cara matávamos dezenas deles.


A fome apertou, já eram duas horas da tarde. Mesmo assim colocamos a malhadeira de cem metros aproveitando somente cinco que era a largura do lago Acaraú. Pegamos apenas uma curimatã assustada com um bando de loucos que vieram de tão longe para um lugar daquele. Ela parecia rir zombando de nós. O Joaquim ainda se atreveu a jogar uma tarrafa velha furada, que mais parecia um “langanho” não pegando um cará se quer. Cará que empresta o nome ao lago Acaraú, ou seja, lago dos carás, não tinha nem sarapó.


Em cinco minutos bateu um desespero para ir embora, voltar para casa, o aconchego do lar. Enquanto uns arrastavam o barco de volta para o rio, debaixo de uma nuvem escura de piuns e mutucas que nos pareciam gigantes, outros faziam um arroz “liguento” com carne moída e farinha porque peixe nem para remédio. Os pontinhos pretos que víamos no arroz não era pimenta do reino, mas piuns mortos que não nos deixavam em paz um segundo.


A pior lembrança que tenho do lago Acaraú é a de que fomos almoçar dentro do rio, com água pelo pescoço, mortos de fome, com a pele em brasa, marcados pelas ferradas das pragas. Nossas cabeças cobertas com toalhas ou camisas molhadas protegendo as orelhas dos piuns, segurando o prato de comida em uma das mãos e a colher na outra. As nuvens de piuns nos atacando no rosto. Não dava para soltar o prato ou acolher e se defender. Os piuns nos mordiam até no céu da boca. Voltamos todos “amoados”, com morraça e princípio de febre.


O Totó, coitado, vermelho como camarão, descascava a pele que nem cobra. Para o gago e o Joaquim, tudo diversão e um questão de ponto de vista. Se necessário fosse, voltariam novamente. Eu e o Luís Carlos Moreira Jorge cansados e abatidos. Por muito pouco não perdemos o gosto por aventuras. A ida ao lago Acaraú foi de lascar o cano.


Na volta chovia na praia do urubu em Brasiléia. O carro atolou. Soubemos depois por pessoas antigas que o Acaraú é o lugar de maior incidência de pragas do rio Acre. Desde as cabeceiras nas cachoeiras do Gaspar e Inglesa a sua foz em Boca do Acre. O Joaquim Frota nos meteu nessa. O Acaraú entrou para nossas aventuras como “A viagem ao fim do mundo”. Na estrada voltando para Rio Branco o desabafo:


“Nunca mais volto no Acaraú e quando morrer, se minha alma tiver vergonha na cara, não passa nem perto”.