O chamado “foro privilegiado”, ou, juridicamente falando, o “foro especial por prerrogativa de função” é, sem sombra de dúvidas, uma das chaves que ligam no Brasil a relação promíscua entre o judiciário e o parlamento. Trocando em miúdos para o leitor leigo, o tal foro é o privilégio que milhares de autoridades usufruem, de não serem julgados como qualquer mortal por seus crimes comuns perante o juiz da comarca em que cometeu o delito, vão direto para instâncias superiores. É, sem trocadilho, mais um desaforo que vossas excelências criaram na lei para se protegerem.
Essa extravagância jurídica alcança não apenas as excelências federais mas também de outras esferas. Estimativa do partido NOVO (quadro acima) é de que mais de 45.000 agentes públicos podem se esgueirar nas sombras do foro privilegiado para se defenderem de ilícitos. Em países verdadeiramente democráticos, civilizados, este número é diminuto, praticamente não existe tal figura.
Fixemo-nos na relação entre o parlamento e o Supremo Tribunal Federal – STF. A Constituição Federal determinou a seguinte situação: Quem pode investigar e punir parlamentares? O STF. Quem pode fazer o mesmo com os ministros do STF? O Senado. Resultado obvio, fica comprometida a independência entre os poderes. Ministros seguram a cauda de senadores suspeitos e senadores seguram a cauda de ministros suspeitos. Como nessa história quase não tem cotó, a dança não pára nunca e os envolvidos volteiam alegremente no palco da impunidade.
Outra vantagenzinha legal, usada sem pejo no Brasil, combinada com o foro privilegiado, é a prescrição penal. De novo, para os leigos, prescrição é a extinção do direito de punição, ou seja, se a Justiça não julgar o processo no tempo devido, o meliante tem sua punição prescrita, vale dizer, deixa de ser levada a efeito, então, o criminoso se safa. Foi assim que se livrou recentemente, o “capitão cueca”, como ficou conhecido o deputado petista José Guimarães, cujo assessor foi flagrado com as cuecas recheadas de grana.
De acordo com muitos juristas, depois de anos de trabalho árduo e difícil, dezenas de casos julgados na Lavajato correm o risco de prescrever por uma canetada do ministro certo. Para boa parte dos encalacrados na justiça do andar de cima, basta o juiz sentar em cima do processo e o tempo dá conta do “perdão”. São longas as caudas nas mãos de suas excelências.
Essa mistura só pode gerar podridão. O sistema, que seria de punição de criminosos, se transforma em gamela de entendimento para uns e outros protegerem-se. Nem ouso desconfiar que algumas bancas de advogados, com criterioso trânsito no DF, apareçam nessas horas para lograrem certa “preguiça judicial”. Para se ter uma idéia, pesquisa realizada há alguns anos pela Folha de São Paulo, demonstrou que entre 2007 e 1016, 96,5% das ações penais contra parlamentares deram em… Nada!
Em 2017, o Senador Álvaro Dias apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC, já aprovada no Senado, que diminui drasticamente o número desses privilegiados do foro especial. Restariam apenas o presidente e o vice-presidente da república, os presidentes das casas legislativas (Câmara e Senado) e o presidente do STF. Lembremos que, na época, a operação Lavajato estava com o pé no acelerador do combate à corrupção, os brasileiros pressionavam, a mídia reprovava o crime, então os senadores aprovaram a PEC. Imagino com que ânimo.
Pois não é que mesmo aprovada no Senado, a dita cuja dormita na Câmara dos Deputados há mais de 1.000 dias, sem ser votada? Segundo os figurões dos partidos, isso não é prioridade. Boa parte deles, aliás, são freqüentes naquela dança da cauda presa a que nos referimos anteriormente. Imagine o leitor se, assim, por milagre, a PEC vai à votos, cai o foro privilegiado e os processos contra parlamentares voltam todos para a primeira instância. Seria um alvoroço no baile.
O leitor poderia se perguntar por onde andam aqueles ministros ativistas judiciais que quando falta lei eles mesmos legislam, ou, quando uma lei é de “interesse da sociedade”, eles cruzam a esplanada e pressionam os partidos no Congresso para acelerar a votação. Ou, ainda, pode o cidadão indagar ao STF se não dá pra fazer nada, já que por lá a CF virou peso de papel.
Ocorre que a situação é cômoda para os dois – STF e Congresso. Para os parlamentares, a cauda na mão de um ministro do STF significa, no mais das vezes, prescrição. Oba! Para o STF, a cauda dos parlamentares significa alvará para seus privilégios e ativismo judicial. Oba! Se cai o foro especial, as caudas parlamentares escorregam de suas mãos para a primeira instância, muito mais ágil, aí, adeus prescrição. Como quem tem cauda tem medo, então, é melhor deixar quieto.
Desconfio que quem criou o foro especial na Inglaterra do século XVII, para proteger eventuais responsabilidades administrativas dos soberanos, jamais imaginou que um dia aquele instituto serviria para proteger cuecas federais e, ao mesmo tempo, dar sossego a togados que jamais serão incomodados com um impeachment ou uma CPI, por exemplo, mesmo que algum deles conduza na cara de pau um inquérito do “fim do mundo”, inconstitucional e totalitário, mediante o qual limita e ameaça como quer a liberdade de expressão de qualquer vivente no Brasil.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às sextas-feiras no site acreano ac24horas e, eventualmente, em seu BLOG e no site Conservadores e Liberais – Puggina.org