Valterlucio Bessa Campelo
Nos últimos meses, o povo brasileiro está assistindo ao ataque brutal e descarado do establishment, considere-se aí o significado dado pelo dicionário de Houaiss “a elite social, econômica e política de uma país” à Operação Lava Jato, sediada em Curitiba, que apesar de muita oposição conseguiu mandar pra cadeia ou pra casa com tornozeleira eletrônica, de modo nunca antes imaginado, muitos grandões do sistema, entre eles, o maior responsável pela sistematização da corrupção instalada no aparelho do Estado, o ex-Presidente Lula. Ao mesmo tempo recuperou bilhões de dólares desviados, desmantelou o sistema podre de comando de estatais e restabeleceu a sua credibilidade.
Estamos vivendo um momento de clímax com a decisão no STF de promover, a partir desta quinta-feira, 17 de outubro, uma nova hermenêutica acerca da jurisprudência que autoriza a prisão de criminosos condenados em segunda instância, o que no mundo moderno é praxe. Aguardar uma terceira ou quarta instância para prender um criminoso provado é uma jabuticaba brasileira tão podre quanto os interesses por trás do intento. Dias Toffoli, aquele desqualificado para o cargo (não o único), que foi nomeado à mais alta Corte de Justiça do Brasil apenas pelos serviços prestados aos que hoje estão sob o crivo da justiça, pautou o julgamento que no fundo é apenas uma nova chance para restaurar politicamente o ex-Presidente. Os soltadores de criminosos, especialmente de criminosos poderosos, perderam os escrúpulos e pretendem, pela casuística reinterpretação da Constituição Federal, favorecer seus aliados. Um verdadeiro escracho.
Na sessão do STF, que vejo enquanto escrevo este texto, advogados, defensores, amicus curiae de toda espécie e ministros empolados e teatrais se sucedem desenvolvendo em juridiquês, repetidos e manjados saltos triplos carpados hermenêuticos para, de modo hipócrita e sonso, fundarem-se na presunção de inocência estabelecida como cláusula pétrea na Constituição Federal e, assim, justificarem sua militância em favor dos ricos. Eles dizem “a presunção de inocência protege basicamente os pobres, o trânsito em julgado é a defesa dos humildes”, eu ouço “pelo dever de proteger os pobres, o direito de proteger os ricos ainda que comprovadamente culpados”. Demagogicamente apelam para conteúdos sociais e raciais, na tentativa de “igualar o alcance da Lei”, quando o que está em verdadeira causa é soltar privilegiados, ainda que para isto abram as celas para milhares de criminosos de toda espécie. Até a finada Marielle entrou em cena no teatro armado, onde não faltou uma “única mulher, negra” para falar na defesa repetindo chavões vitimistas do tipo “população negra, pobre e periférica”. O que tem a ver os crimes de Lula, José Dirceu e Sérgio Cabral com isto? Fecha o pano, na próxima quarta-feira tem nova sessão.
Soam ridículos na grande mídia os debates e entrevistas, verdadeiras confraternizações de mafiosos que, escudados em garantismo de botequim, brechas e filigranas processuais, trocam o principal – a punição fartamente comprovada de criminosos, pelo afastamento da Lei de seus próprios calcanhares. Os farsantes, sejam advogados, jornalistas ou políticos, posam de “rigorosos defensores do processo legal” para, ao cabo, aplaudirem a passagem incólume da banda dos corruptos. É como se tocassem o bumbo da omissão no espetáculo da impunidade.
Outro dia, ouvi na TV um lenga lenga de que a persecução penal levada a efeito pela Lava Jato é nociva pois não poderia resultar em punição de empresas e, consequentemente, em desemprego etc. Neste sentido, a operação teria causado um grande prejuízo à nação. Ora, ora. Gente que em sua alta patente financeira passa a vida a estabelecer e explorar vínculos malsãos com o Estado, ao ver sua vileza ameaçada se transforma em juiz de juízes, defendendo a absoluta higidez de processos que sequer conhece, fazendo eco a determinados grupos que usam o argumento de modo marginal na defesa de seus líderes e/ou clientes. Ora, a Lava Jato é, antes de tudo, saneadora. Afinal, incorre em risco de prejuízo quem, em nome de uma empresa, suborna e corrompe, deveriam saber.
Não aposto na honestidade do povo brasileiro como característica intrínseca. É sabido que lidamos com doses elevadas de corrupção, oportunismo, carreirismo, nepotismo e consentimentos aos ilícitos menores. O perdão implícito e comumente requerido na frase corriqueira “não pode me julgar quem não paga minhas contas”, faz parte de nossa cultura e nos fazem ser o que somos, entretanto, é certo que em um momento recente essa mesma gente, majoritariamente, reagiu e fez opção pela punição e banimento de sua elite corrupta, o que não quer dizer que tenha conseguido plenamente. Trata-se de uma guerra em que cada batalha é sucedida de outra ainda mais dura, os inimigos são poderosos e, como agora, conseguem se organizar – judiciário, corporações, partidos políticos e imprensa, para agirem no sentido de solapar os avanços contra a corrupção e restaurar o status quo.
A luta contra a corrupção no Brasil é, fundamentalmente, a luta do homem comum contra a predominância de algo que, mesmo inerente ao quadro social em que se insere, lhe causa revolta. Disso, aliás, tratou Albert Camus em “O Homem Revoltado”, lançado em 1951. “O que é um homem revoltado? É, antes de tudo, um homem que diz não. Ele se levanta e diz não. Esse NÃO significa, por exemplo: ‘as coisas foram longe o suficiente’, ‘há limites que não podem ser ultrapassados’, ou ainda, ‘você foi longe demais’. Em suma, esse ‘NÃO’ afirma a existência de um limite.” Para o nosso STF o limite é mais adiante e é ele próprio que o altera e define sem que precise prestar contas à sociedade.
Neste momento de sua obra, Camus se encontra com Frédéric Bastiat, genial economista, jornalista e político francês que 102 anos antes escreveu a obra prima “A Lei”. Em seu primeiro parágrafo, Bastiat já exclama “A LEI PERVERTIDA! E com ela os poderes de polícia do estado também pervertidos! A lei, digo, não somente distanciada de sua própria finalidade, mas voltada para a consecução de um objetivo inteiramente oposto! A lei transformada em instrumento de qualquer tipo de ambição, ao invés de ser usada como freio para reprimi-la! A lei servindo à iniquidade, em vez de, como deveria ser sua função, puni-la!”
É assim que leio o momento atual da vida nacional. O homem comum brasileiro é o “homem revoltado” de Camus e a lei vigente é a “lei pervertida” de Bastiat. Além disso, parece evidente que a contraposição entre o brasileiro e a lei, mediada por aqueles que ele próprio elegeu para representá-lo, é rígida e abrangente. Assentam-se sucessivamente no legislativo, por nossa infeliz escolha, personagens cujos interesses reais são os de manipulação da ordem e dos agentes da lei no sentido de garantirem seus privilégios, poder e enriquecimento, o que nos coloca a todos na luta política em seu sentido mais amplo.
De outra parte, se, como propõe Bastiat, a lei tem como finalidade precípua impedir a injustiça de reinar, vis a vis o sentimento do homem comum o nosso judiciário fracassa estrondosamente. Não há quem, de um modo ou de outro, não se sinta ao desamparo da justiça brasileira. Sentimento que se exacerba quando escudados em ninharias processuais seus executores enfiam o pé na impunidade dos ricos e poderosos.
Até a próxima semana, promete o presidente do STF, entrará em votação o relatório do Ministro Marco Aurélio, o primo de Collor, oportunidade em que seus pares poderão confirmar ou reformar seus entendimentos de poucos anos atrás. No Brasil, é assim. Se não muda a Lei, muda o entendimento da Lei, quase sempre no sentido de favorecer o crime. Neste caso, o sucesso dos Gilmar, Toffoli e Lewandovski significará a suprema perversão da Lei que gera o homem revoltado.
Valterlucio Bessa Campelo é Eng.° Agr.°, Mestre em Economia Rural e escreve às sextas-feiras no ac24horas.