Os últimos dias foram marcados pelo furor causado pela aprovação, na Câmara Federal, do regime de urgência para a tramitação do chamado “PL do Estuprador”, o PL 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante. E não sem razão. A proposta do deputado pretende penalizar com rigor islâmico mulheres vítimas de estupro que realizem aborto após a 22ª semana de gestação. Pela proposta, a mulher que o fizer receberá pena dobrada em relação àquela prevista ao homem que a estuprou.
A proposta desconsidera a realidade concreta em que os casos de estupro acontecem neste país. Segundo dados recentes divulgados pelo IPEA em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quase sempre a vítima de estupro que engravida é uma menina pobre, vitimizada dentro de casa, que na maioria das vezes não dispõe dos meios para buscar o auxílio necessário antes da manifestação avançada da gravidez. Portanto, tratar essa criança como criminosa perante a lei é torná-la vítima uma segunda vez, intensificando o sofrimento de quem já enfrenta uma carga emocional extremamente pesada para a idade que tem.
Da bancada de deputados acreanos, segundo levantamento do ac24horas, inicialmente, somente a deputada Socorro Neri se manifestou contra esse absurdo. Por quê? Eu desconfio que seja pela profunda identificação de boa parte dos deputados com as pautas de extrema-direita que pretendem devolver o Brasil ao mundo das trevas do negacionismo científico e civilizatório.
O que espanta tanto quanto a posição dessa maioria parlamentar é a indiferença das mulheres acreanas ao avanço da força política das posições de extrema-direita no jogo de poder local. Se na maior parte do Brasil são as mulheres a principal força social a enfrentar o machismo e a misoginia desses grupos, no Acre o cenário parece bem diferente. A principal evidência é que nossa política é hoje quase toda dominada por eles, mesmo com o eleitorado sendo composto por 53% de mulheres.
Pode-se argumentar que é a mesma realidade da maior parte dos estados, onde o eleitorado é majoritariamente feminino. Contudo, os outros estados dificilmente apresentam índices de violência doméstica, feminicídio e morte materna tão elevados como o Acre. Se há um lugar onde a força feminina precisa se apresentar de maneira contundente no combate ao machismo, esse lugar é aqui. Mas o que acontece é o contrário. As corajosas e combativas militantes da causa feminista são tratadas com indiferença, desdém, e até com oposição enfurecida pela maioria feminina.
O PL do Estuprador, do deputado Sóstenes Cavalcante, mostra o quanto a bancada fundamentalista de direita está à vontade para propor absurdos ao país. Em aliança com o presidente da Câmara, Arthur Lira, estão achando que podem tudo. A verdade é que não podem. Felizmente. Não fosse a contundente reação da sociedade civil neste momento, é fato que daqui a pouco estaríamos lamentando a aprovação de leis de proibição a religiões de matriz africana, o encarceramento de crianças, a volta do trabalho infantil e a “cura gay” no SUS, por exemplo. E a maior parte da bancada acreana estaria entusiasticamente envolvida nisso. Alguma dúvida de que se trata de um retorno aos tempos da escuridão, da ignorância e da intolerância?
Por fim, que se esclareça: não se trata de discutir se o aborto é ou não uma medida correta para quem o realiza. Trata-se, em primeiro lugar, do direito da mulher sobre seu corpo e sua vida, especialmente no caso de mulheres e meninas pobres. Vai, portanto, muito além do direito do Estado de decidir sobre a vida de mulheres para quem, quase sempre, esse mesmo Estado deixou de fornecer a proteção e o amparo devidos. Em segundo lugar, e mais importante, trata-se do risco de criminalização de crianças que sofreram estupro. Alguém razoável consegue ser a favor disso?