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O espetáculo da punição: as execuções públicas e seus objetivos históricos

Por milênios, as execuções públicas constituíram prática que vigorou em diversas sociedades, e representavam muito mais do que a simples aplicação da pena de morte. Fossem verdadeiramente culpados ou não, a partir de uma decisão do titular do poder, qualquer cidadão ou cidadã, por qualquer motivo, desde um simples boato ao roubo ou assassinato, estava sujeito à punição pública em algum dos vários equipamentos de tortura e morte desenvolvidos com o fim de prolongar o castigo.


Eram eventos cruciais na vida social e política, funcionando como uma complexa ferramenta de comunicação, controle e reafirmação do poder. Discutimos aqui, dois principais objetivos que sustentavam a natureza espetacular e, muitas vezes, lenta e brutal, da punição pública, especialmente nos períodos da idade média e início da idade moderna na Europa.


O objetivo primário era a afirmação da soberania e do poder, ou seja, o papel central da execução pública era político. Em um sistema monárquico ou feudal, a justiça emanava diretamente da figura do soberano (rei, bispo ou príncipe) que através da punição afirmava a sua força absoluta. A execução, em sua forma mais teatral, era um ato de soberania, uma prova tangível e irrefutável de que o governante detinha o poder supremo sobre a vida e a morte de seus súditos (ius vitae ac necis).


Dado que o crime era visto como uma ofensa não só à vítima, mas principalmente ao soberano e à ordem pública que ele representava, a punição pública tinha o efeito de restauração da ordem vigente. Rápida ou lenta, visava reparar o dano simbólico causado à majestade do poder. Neste sentido, o tirano era vítima e juiz.


Servia também como controle da traição e sedição, ou seja, os crimes de ordem política como traição ou rebelião, ensejavam um castigo frequentemente mais elaborado e cruel (como a exposição em gaiolas), pois tinha como objetivo aniquilar publicamente o corpo do traidor. Isso não só eliminava o indivíduo, mas também destruía o símbolo da oposição.


Neste sentido, Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir (1975), descreve a execução como uma cerimônia política na qual o poder, que foi momentaneamente desafiado pelo criminoso, é reafirmado de forma esmagadora no corpo do condenado. O lugar da punição (geralmente a praça central ou o local do crime) tornava-se o palco onde a lei se impunha dramaticamente.


Como objetivo secundário, podemos mencionar a dissuasão, pois a visibilidade da execução tinha uma função pedagógica crucial em sociedades com baixas taxas de alfabetização. A lentidão da tortura e a brutalidade dos métodos eram intencionais. Não bastava matar, era preciso infligir sofrimento duradouro e visível para maximizar o impacto psicológico na audiência. Havia também naquele contexto um discurso visual para a massa de espectadores, que não tinha acesso aos textos legais. Assim, a execução era a principal forma de comunicação da lei. O espetáculo ensinava, de forma chocante, a linha entre o permitido e o proibido.


A exposição pública operava também como mecanismo de controle, como as gaiolas da morte, que prolongavam o terror por dias e meses. Os restos mortais serviam como um símbolo persistente da consequência do desvio, visível a todos que entravam ou saíam da cidade. Para a comunidade, era um momento de catarse coletiva. Os membros apoiadores observavam a punição como purgação do mal, endossando a brutalidade e, com isso, reforçando as normas vigentes, sem se darem conta de que essa alienação instituía sobre cada um regras rígidas de comportamento.


As execuções eram frequentemente precedidas por longos rituais e procissões, nos quais o condenado era obrigado a exibir publicamente seus pecados e confessar a justiça de sua punição. Isso transformava o evento em um sermão vívido sobre a fragilidade humana e a inevitabilidade da justiça divina e terrena. No Brasil, tomemos como exemplo o caso de Tiradentes como exemplo que carrega os elementos acima referidos. Em outra vertente, porém, com os mesmos objetivos, lembremos a exposição das cabeças dos cangaceiros no Nordeste em praça pública, há menos de 100 anos.


Com o Iluminismo (século XVIII), os objetivos e a filosofia por trás da punição começaram a mudar. Pensadores como Cesare Beccaria criticaram a crueldade e o espetáculo, argumentando que a certeza da pena, e não a sua intensidade ou publicidade, era o melhor dissuasivo. Com isso, o foco mudou da punição do corpo para a punição da alma e da mente. Com o tempo, as penas passaram a ser aplicadas de forma mais uniforme e o objetivo passou a ser a reabilitação (em teoria) e a segregação do criminoso, levando ao desenvolvimento das prisões modernas.


As punições públicas foram gradualmente abolidas no Ocidente ao longo do século XIX, pois a sociedade começou a vê-las não mais como um sinal de justiça forte, mas como uma expressão bárbara e incompatível com o avanço da civilização. Além do nazismo, ditaduras socialistas do século XX, especialmente na China e União Soviética, ainda usavam com frequência o expediente. Atualmente restam alguns países muçulmanos, além da Coreia do Norte, a praticar rituais semelhantes. Seu principal legado é a demonstração histórica de como o poder utiliza o sofrimento e o espetáculo para manter a ordem, intimidar os oponentes e reafirmar sua própria existência.


Apesar do fim das execuções públicas na maioria dos países, os objetivos de controle social, dissuasão e reafirmação do poder não desapareceram. Eles são alcançados hoje por meio de mecanismos mais sutis, burocráticos e, ironicamente, por vezes mais abrangentes, operando através da punição invisível e da vigilância onipresente.


Especialmente no campo político, pode-se dizer que a punição do corpo foi substituída pela punição da mente através da profunda e brutal destituição moral do indivíduo perante a sociedade. A advertência e controle foi assumida pela repercussão midiática que a serviço do poder expande maximamente a comunicação sobre os processos, cometendo “vazamentos” e quebrando sigilos no interesse da autoridade, enquanto a catarse ocorre nas mídias sociais, que dão voz e tintas aos carrascos escondidos em cada um dos apoiadores do regime. Concomitantemente ao estabelecimento do alvo, do processo e da condenação, a narrativa se desenvolve para sustentar a tirania e justificar o suplício infligido à vítima. Todo esse desenlace não tem, muitas vezes, correspondência com os fatos nem com a culpabilidade do condenado, apenas segue o roteiro.


Sim, é exatamente isso que o leitor está pensando. No Brasil, em pleno século XXI, o poder estabelecido com seu regime tirânico, perverso, aterrador, utiliza práticas semelhantes àquelas da idade média, se não infligindo sevícias físicas como outrora, certamente desenvolvendo todo o menu macabro, em versão atualizada, visando os mesmos objetivos. Temos aí o sintoma de uma sociedade doente, parcialmente dominada, dopada por doses sistemáticas de pequenos benefícios insustentáveis, que aceita ser tangida para um abismo político devastador. A imprensa, que deveria acusar diariamente essa situação, se vergou e assumiu o papel de avalista da tirania.


Aos que ainda mantém a lucidez, o pensamento crítico e a honestidade intelectual, e reconhecem o pântano para o qual nos movem os poderosos da JUNTA, resta a luta. A rendição nunca fez parte de nosso repertório.



Valterlucio Bessa Campelo escreve semanalmente nos sites AC24HORAS, DIÁRIO DO ACREACRENEWS e, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites. Seu último livro “Arquipélago do Breve” encontra-se à venda através de suas redes sociais e do e-mail valbcampelo@gmail.com.