Que vivemos tempos de intensa dissonância cognitiva, todo mundo sabe. O problema é encontrar o limite desse negócio, o ponto em que ela se torna absoluta.
Eu cresci ouvindo gente de direita e do setor ruralista (hoje rebatizado de “agro”) dizer que a esquerda e os ambientalistas faziam “o jogo dos americanos”. Segundo eles, a defesa da Amazônia, de sua biodiversidade e florestas não passava de estratégia para atender interesses estrangeiros, uma forma de impedir o desenvolvimento do Brasil. Pois agora, veja só, é essa mesma gente que estende bandeiras de listras vermelhas pelas avenidas das nossas capitais. E onde ficou aquela história de que nossa bandeira jamais seria vermelha?
Vai entender.
O que os extremistas de direita fizeram neste 7 de setembro é inacreditável. Juro: ainda estou incrédulo. Como é possível referenciar uma nação estrangeira que, justamente nesta data em que comemoramos nossa independência, nos agride em dobro? Os Estados Unidos, mais uma vez, atuam para desestabilizar o Brasil. Como fizeram nos preparativos para o golpe militar de 1964. Isso está evidente. No plano econômico, com as tarifas absurdas impostas por Trump; e no plano político, ao apoiar discursos de quem se insurge contra a ordem democrática e as instituições brasileiras.
E com que objetivo? Defesa dos “direitos humanos”? Difícil acreditar. O mesmo país que financia e apoia o massacre genocida que Israel perpetra em Gaza, abatendo mulheres e crianças com bombas e mísseis em um território mínimo, tem alguma legitimidade para posar de guardião humanitário por aqui? O que está em jogo, na verdade, são dois interesses claros de Trump: proteger suas big techs da regulação iminente que vem do STF e implodir os BRICS, grupo em que o Brasil é fundador e ator-chave. Para os americanos, impedir que países estratégicos do Sul Global se articulem é vital. Seu papel de “manda-chuva” do planeta depende disso.
Ainda mais porque o BRICS já não se contenta em existir como fórum diplomático: agora busca uma nova ordem global e a desdolarização do comércio mundial. O dólar é a chave do poder americano, mais que armas e soldados.
As big techs, por sua vez, são a verdadeira máquina de poder do presente e do futuro. Fonte de dinheiro, influência e de capacidade de determinar comportamentos. O jogo central das próximas décadas é esse: controlar atenção e preferências. Como mostrou Shoshana Zuboff em “Capitalismo de Vigilância”, não se trata mais apenas de coletar dados para vender a anunciantes. A ambição agora é “antecipar, moldar e induzir comportamentos”. Ou seja: sair da posição de quem oferece informação sobre o que queremos comprar para assumir a função de quem decide o que devemos desejar — no comércio, na vida cotidiana e também na política. Yanis Varoufakis chama esse novo arranjo de “tecnofeudalismo”: um mundo em que algoritmos substituem correntes de ferro por correntes digitais, mantendo milhões de pessoas presas a telas, narrativas e modelos de negócios convenientes aos interesses dos magnatas techs americanos. Mas, para isso, é preciso atuar sem restrições, livres de qualquer regulação. Esse é o jogo.
E Bolsonaro? Bem, ele entrou na lista de exigências de Trump como peça secundária, um truque barato do presidente americano — esperto como sempre foi. Ter um bando de seguidores esquisitos defendendo a agressão americana e tremulando bandeiras de listras vermelhas pelas ruas é muito melhor do que ter de mandar aviões, tanques e soldados. Até porque, nesse caso, alguns poderiam morrer.