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A liberdade é conquistada. Cuidemos!

No século passado, várias vezes, tendo como referência a implantação do comunismo em vários países e do nazismo na Alemanha, ao tentarem explicar o fenômeno, vários estudiosos se depararam com uma pergunta chave: Por que as vítimas permitiram que aquela crueldade acontecesse? Por que não reagiram? 


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Em sua obra essencial, “Eichmann em Jerusalém”(1963), Hannah Arendt aborda a questão oferecendo uma análise ao mesmo tempo complexa e controversa, à medida que enfrenta a passividade dos judeus durante o início do nazismo. Arendt argumenta que a falta de resistência organizada por parte das comunidades judaicas na Europa ocupada pelos nazistas contribuiu para a facilidade com que o Holocausto foi executado. 


Ela esmiúça a conclusão em quatro pontos: a) A ilusão da normalidade – muitos judeus, especialmente na Alemanha, simplesmente não perceberam a gravidade da ameaça nazista, acreditando que as restrições e perseguições eram temporárias; b) A cooperação de líderes judaicos – em um momento bastante sensível, Arendt critica a atuação de alguns líderes de conselhos judaicos (“Judenräte”), que colaboraram forçadamente com as autoridades nazistas na organização de deportações e na implementação de outras medidas discriminatórias; c) A falta de organização e resistência – Arendt destaca a ausência de uma resistência judaica unificada e eficaz. A dispersão das comunidades judaicas, a falta de armas e a repressão brutal dos nazistas dificultaram a organização de movimentos de resistência; d) A “banalidade do mal” – Arendt cunhou essa expressão para descrever a natureza burocrática e rotineira do mal praticado por Eichmann e outros perpetradores do Holocausto. Ela argumenta que a passividade dos judeus, em parte, decorreu da dificuldade em compreender a dimensão e a natureza desse mal sem precedentes.


Atuando ao mesmo tempo, esses fatores fizeram com que os judeus e outros grupos fossem, numa segunda fase, levados ao holocausto praticamente como cordeiros, despreparados, atônitos, sem compreender o que estava acontecendo.


Em relação ao comunismo, uma boa abordagem vem de Robert Conquest, renomado historiador britânico, que dedicou grande parte de sua carreira ao estudo da União Soviética e do regime stalinista. Sua obra mais influente, “O Grande Terror” (1968), detalha a repressão política e os expurgos em massa que ocorreram sob o governo de Stalin na década de 1930. 


Segundo Conquest, o terror stalinista pode ser resumido nos seguintes pontos: a) A geração do medo – as pessoas tinham medo da prisão e tortura; b) A atomização da sociedade – as pessoas tiveram crescente dificuldade de se comunicarem impedindo uma reação organizada; c) A propaganda e manipulação – o regime stalinista utilizou a propaganda de forma massiva para manipular a opinião pública e criar uma narrativa que justificasse o terror e o controle absoluto do Estado. Em resumo, Conquest argumentava que o regime stalinista criou um sistema que desmobilizou a população e a tornou incapaz de resistir.


Essas ideias povoaram minha mente nos últimos dias, ao me dar conta da pasmaceira com que os brasileiros assistem o crescente endurecimento do regime, exemplificado pela cilada montada para prender Eduardo Bolsonaro e, ainda de modo ainda mais abjeto e infame, pelos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, em condenação a pena de 14 anos de prisão da cabelereira Débora Rodrigues, casada, mãe de duas crianças, por haver pichado duas palavras em uma estátua na praça dos três poderes, com seu batom. “Perdeu Mané”, dito em tom de deboche por um dos ministros anteriormente em resposta a uma indagação de um transeunte nos EUA, serviu de mote para o esmigalhamento da Lei, da moral, da decência. Assim como os judeus e os russos e os chineses e os cambodjanos e os venezuelanos… não vamos fazer nada? Estamos indo como cordeirinhos para o abate, sem resistir?


Se cotejadas uma a uma, as notações de Hannah Arendt e Robert Conquest estão praticamente dadas em nossa realidade cotidiana. Vivemos sob o medo, a propaganda oficial avassalou os meios de comunicação, sofremos ameaças e restrições à liberdade de manifestação, nossos interlocutores colaboram com o regime a troco de emendas parlamentares e cargos no governo, não nos organizamos devidamente, e estamos nos acostumando com as perversas decisões judiciais, sem considerar que podemos submergir em um tenebroso mar de autoritarismo. Como se tivesse razão aquele bobinho, que para acusar o golpe espera que a bandeira verde e amarela seja trocada por uma vermelha, muitos se negam a enxergar o obvio.


Não vamos fazer nada? Essa é a questão fundamental. Não há mais nenhum sinal de que os tiranos sequer cogitem retroceder em sua sina macabra, violenta, que beira o sadismo e a psicopatia. Temos perseguições, exílios, prisões políticas, tortura e assassinato sob nossas ventas, e o sistema está montado com as características mencionadas por Arendt e Conquest. Querem saber? Prestem atenção e respondam com um V (verdadeiro) ou F (falso) o teste abaixo que o tio tomou emprestado do analista político Leandro Ruschel. É claro que a militância de esquerda e os jornalistas pré-pagos estão dispensados, fazem parte da estupidez coletiva.


1- No Brasil, temos total liberdade de expressão, liberdade de crença, liberdade de associação política e outros direitos individuais. (        )


2- As leis valem para todos, independentemente de credo, raça, posição social ou afiliação política. (        )


3- Temos eleições livres e periódicas, críveis, auditáveis, com contagem pública e com a possibilidade de representação de todos os espectros políticos, sem censura ou restrições ao debate público. (        )


4- Gozamos de total permissão para criticar governantes e instituições sem sofrer censura ou perseguição. (        )


5- Nossos políticos e demais agentes estatais são motivados pelo bem comum, não pelo enriquecimento pessoal ou pela corrupção. (        )


6- Existe plena separação de poderes, com equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário, sem concentração de poder excessivo em um único ramo. (        )


7- Existe autonomia e garantias institucionais para que juízes e tribunais julguem sem motivações políticas, respeitando o devido processo legal. (        )


8- Temos plena liberdade de imprensa, com veículos de comunicação totalmente livres para investigar e reportar abusos, bem como criticar o governo sem retaliações. (        )


9- A imprensa é livre e imparcial, sem depender de financiamento estatal para influenciar em sua linha editorial. (        )


10- Há transparência e acesso à informação, com disponibilização de dados e documentos públicos, permitindo o controle e a fiscalização da gestão e dos recursos estatais. (        ) 


11- Há combate à corrupção e responsabilização, com órgãos e mecanismos de controle independentes, com punições aplicadas a todos os envolvidos em irregularidades, independentemente de sua posição ou influência. (        )


Se o leitor não respondeu V (verdadeiro) a todas essas perguntas, mesmo que se considere à esquerda no espectro ideológico, haverá de reconhecer que há falhas na nossa democracia. Quanto mais respostas F (falso), mais o leitor compreende que estamos nos distanciando de uma democracia plena e sendo levados mansamente, como na Alemanha nazista e nos países vítimas do comunismo, a uma situação de extrema fragilidade, dando oportunidade a que se implante completamente um regime totalitário. Se, como eu, o leitor respondeu F a todas elas, sabe que precisa fazer algo. 


Como nos ensinou bem antes Etienne de La Boétie, no seu “Discurso Sobre a Servidão Voluntária” (1550), para impedir o avanço da tirania basta não ceder, não servir, não dar aquilo que nos pedem, não aceitar suas migalhas em troca de segurança, não temer. Sem nossa disposição à servidão, eles caem. Todos caíram.


Valterlucio Bessa Campelo escreve às segundas-feiras no site AC24HORAS, terças, quintas e sábados no  DIÁRIO DO ACRE, quartas, sextas e domingos no ACRENEWS e, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites. 


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