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Sobre Deus, natureza, adjuntos e a pergunta danada

As reportagens da imprensa local não deixam margem para dúvidas: o acreano credita “a Deus” ou “à Natureza” os efeitos das mudanças climáticas por aqui. Os repórteres, mesmo sem querer, acabam captando essa percepção que marca o nosso tempo de uma maneira muito peculiar. O desbarrancamento que levou a casa, fruto de uma vida de trabalho, é “obra divina”. E não há diabo que remova essa ideia.


Eis aí uma missão para gestores públicos, ONG’s e até mesmo para a imprensa. Quem está minimamente responsável com os fatos precisa construir uma nova cultura baseada na seguinte pergunta: “Os desbarrancamentos chegaram, levaram a minha casa, levaram a minha oficina mecânica, levaram o meu carro, levaram o meu caminhão… E agora?”. Uma pergunta composta de duas palavras, dificílima de ser respondida: “E agora?”


Já foi dito neste espaço: não é o rio que “atinge” as pessoas; não é o rio que “atinge” as casas; não é o rio que “atinge” as famílias. É, precisamente, o contrário. É evidente também que não se pode demonizar quem mora em área vulnerável à ação dos rios e igarapés. Quem está ali é também “atingido” por uma série de incompetências e omissões por parte do poder público. Nas três esferas. Cada um com o seu bocado “atinge” as pessoas, as casas, as famílias.


A incompetência e a ingerência invadem a rotina de milhares. Isso não guarda relação nem com Deus e nem com a “Natureza”. Aliás, essa já é uma primeira dificuldade no processo de construção de uma cultura nova: reconhecer os erros. Não se trata de um reconhecimento meramente retórico. É preciso se perceber falho e, partindo dessa condição, olhar o cenário e dizer, em tom de convocação: “E agora… faremos o quê?”


Nos barrancos do Seis de Agosto, do Quinze, do Cidade Nova… ao estar ali, diante daquele cenário, o que cabe aos governos providenciarem? Remoção das famílias, garantir alimentação, água potável, aluguel social? Isso é o óbvio no nível da emergência: toma-se uma decisão para que as pessoas não morram. Mas e quanto às urgências? O que fazer para que o rio tenha a sua passagem respeitada e as pessoas tenham a sua dignidade preservada?


Com um agravante: não se tem mais tempo para debates muitos subjetivos. Os efeitos das mudanças climáticas exigem medidas graves e imediatas. Não adianta uma classe política que só faz defesa do Agro (entendendo o “Agro” como o tripé fundamentado na soja, na carne e no milho e respectivos derivados), sem observar a complexidade da vida na Amazônia.


Também já foi debatido neste espaço: não existe uma Amazônia apenas. São várias. Uma solução que serve para aqui, talvez não sirva para acolá. É preciso saber fazer diagnósticos corretos para que as ações sejam eficazes. Se os governos, ao observarem os problemas práticos das pessoas, só entenderem como solução o tripé “soja, carne e milho” muitos outros desbarrancamentos virão.


Aliás, é preciso relacionar diretamente o perigo que é a defesa uniformizada de ações estritamente econômicas com os desbarrancamentos recentes em Brasileia e Rio Branco (para ficar nos exemplos mais divulgados). Se o leitor tiver condições de percorrer parte da bacia do Rio Acre verá como são razoáveis, como são lógicas as cenas mostradas em Brasileia e Rio Branco. É uma consequência “natural”. E, neste ponto, a palavra “natural” conquista outro sentido: o sentido exato. É quase uma equação matemática: com uma só incógnita. Tem, portanto, solução no universo Real.


No ambiente rural e florestal do Acre, lá pelos idos dos anos 30, 40, havia uma expressão muito usada pelo agricultor e pelo extrativista quando queriam se referir ao trabalho coletivo, feito em forma do que hoje comumente se chama de “mutirão”. À época, chamava-se “Adjunto”.


Era comum falar: “Vim te buscar para ajudar no adjunto da casa do Manoel. Bora!” O convite era prontamente aceito. Era uma grave agressão se negar a participar de um “adjunto”. Por um motivo simples: o próximo a poder precisar da ajuda dos outros podia ser qualquer um dali. Falando estritamente do Acre e especificamente dos problemas relacionados aos desequilíbrios ambientais, vive-se a emergência dos adjuntos. Há dúvidas ainda não consensuadas sobre o que fazer. Só há duas certezas: o tempo é agora e os agentes da ação são todos.


Um exemplo concreto: Brasileia. É evidente que o centro administrativo e comercial precisa ser mudado de lugar. A cidade precisa “se mover” (isso também já foi debatido aqui). É óbvio que isso não se fará em dois meses; é óbvio que isso vai se confrontar com muitos interesses de ordem emocional e financeira. Não é uma decisão qualquer e nem limitada a uma ou outra pessoa. É uma decisão coletiva e que também terá impactos coletivos. Mas frisa-se: é preciso iniciar o movimento.


Lembra-se de Brasileia tamanha a evidência do que precisa acontecer ali. Mas o problema se estende por onde passam rios e igarapés. O problema é, portanto, do Acre inteiro; é da Amazônia inteira; é do Norte inteiro; é do Brasil inteiro; é do mundo inteiro. Gaia não é o problema. É Ela quem agoniza.


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