Categories: Coluna do Astério Editorial

Era uma vez um pai…

Por
Astério Moreira

Naquela manhã ensolarada em um domingo de janeiro de 1996, Antônio acordou feliz. Estava ansioso para ir à casa do pai, um senhor de 70 anos que estava doente. Um mês antes tinha sofrido um AVC. Não conseguia andar, quase não falava. Braço e perna esquerda tortos como galhos de um arbusto do cerrado.


Uma visita, uma conversa, um gesto de compaixão o levava às lágrimas. No olhar, um abismo de saudade indecifrável da certeza de um fim próximo. O fenecimento de uma existência, um turbilhão de emoções, uma infinidade de pensamentos, sentimentos e sonhos mal-acabados. Ele sabia, o filho não.


Ao contrário do pai, o coração de Antônio naquele dia em especial, o dia do Senhor, estava cheio de esperanças, graça, bondade e sonhos. Acreditava que o pai ainda viveria por muito tempo. Na verdade, para os filhos, os pais nunca morrem. A memória os mantêm vivos. Não é corpo, é alma. Os heróis nunca morrem.


Antônio não assimilava a ideia de que o pai iria partir, que precisava ir-se. A mãe já tinha se ido dois anos antes e o pai vivia como um errante, um caminhante sem caminho, sem lugar de repouso, sem regaço ou colo. Um nômade morrendo na imensidão de um deserto à procura de um oásis de amor. Não existe amor sem dor.


_ Vamos, preciso ir lá ver o papai. Vou colocá-lo no carro e levá-lo para olhar o rio. Quero que ele sinta a brisa suave da manhã, que fique contemplando as águas como ele me ensinou a fazer, dizia Antônio ansioso. Meu pai me falava que nos momentos difíceis da vida devemos ir à margem de um rio e observar o movimento das águas correndo em direção ao oceano. Então, tudo se acalma.


_ Filho, todos os rios vão em direção ao mar, não é extraordinário?! A nossa vida é assim. O tempo passando e ela fluindo para o grande oceano da eternidade. Nada é para sempre. Por isso, devemos ser bons.


Antônio lembrou da infância. Da fazenda, do engenho de cana, do gado e dos cavalos … até das peripécias do burro “Tarzan”, bicho bruto, teimoso que só. Recordou também de quando o pai, cedinho da manhã, mesmo em épocas de friagens, acordava ele e seus irmãos para correrem pelas ruas de areia da pequena cidade em que moravam. Depois iam para o rio nadar, o Rio Acre, cujo as águas ficavam mornas, apesar do vento frio … doces manhãs de julho, agosto e setembro.


Rememorou as viagens que fazia com o pai na estrada empoeirada nos dias de verão ou na lama enfrentando atoleiros durante as intensas chuvas de inverno. A estrada de chão era a escola, o pai o mestre ensinando os caminhos da vida, as experiências vividas, sofrimentos, tristezas e alegrias da existência dos dias passados. Canções e amores vividos na infância e juventude de uma tempo adormecido na memória.


_ Quando eu morrer quero ser sepultado ao lado de minha mãe, dizia o pai olhando para a estrada, na esperança de encontrá-la um dia, no lugar onde vivem os espíritos.


Naquela manhã, de um dia lindo para morrer, Antônio encheu os olhos de lágrimas e chorou em silêncio a dor da falta (saudade é falta, ausência) dos antigos e doces momento com o pai, a mãe, irmãos e irmãs por toda uma vida que aos poucos vai se desfazendo como um árvore que vai perdendo o vigor, as folhas, as flores, os frutos, os galhos até não existir mais.


_ Vamos, por favor, o papai me espera, não quero me atrasar, preciso levá-lo ao rio, insistia, tentando apressar a esposa.


Enfim partiram do Tucumã para o Bosque onde o pai morou por quase 40 anos cercado de vizinhos e amigos que fez ao longo do tempo. Ao dobrar a esquina, de onde se avista a casa ainda nos dias de hoje, ficou surpreso e feliz com a cena que viu. Uma multidão de gente na frente da habitação do velho pai.


_ Com certeza vieram ver o meu pai, chegavam para visitá-lo e confortá-lo, quantos amigos, meu Deus como é bom ter amigos, suspirou…


Estacionou o carro e foi em direção às pessoas que o olhavam com olhar vazio, de espanto e compaixão, porém, não compreendia aqueles olhares furtivos. Eram estranhos, indecifráveis. Como se o tempo estivesse parado para todo mundo e apenas ele se movesse. Caminhou entre ela, aproximou-se do portão.


E do portão mesmo viu o pai deitado em um sofá, as mãos sobrepostas sobre o peito que ocultava um coração generoso, mas sem vida. Aproximou-se devagar entrando na pequena varanda, mal pisava o chão. Incrédulo não conseguia chorar. Chegou tarde demais para levá-lo até às margens do rio. Um anjo chegou antes dele.


Vieram os detalhes e a falação diante do espanto que a morte causa nos homens. Morreu nos braços de uma sobrinha que tentou prendê-lo a realidade aparente que nos cerca; a alma se libertava; não desejava mais aquele corpo feito de desejo e pó. A terra o chamava de volta. E ele se foi para a outra margem do rio… sozinho.


Da hora em que partiu até o sepultamento foram muitos os acontecimentos. Antônio acionou o piloto automático. É tanta coisa para se fazer que não se tem tempo para lamentar ou chorar até que chegue a madrugada dentro de um banheiro quando um filho desaba de dor e saudade. Uma criança escondida no peito se desespera e grita chamando pelo pai que nunca mais irá voltar.


A escolha do caixão, a burocracia de um dia de domingo, o translado de avião para a cidadezinha em que nasceu, o velório, o cortejo pelas ruas em que tanto brincou quando criança, sonhou como jovem e realizou como homem.


Cada passo em direção ao cemitério tem um peso de uma vida. Quanto pesa uma vida inteira? Ninguém sabe.


_ Não se carrega um corpo em um caixão, mas uma vida, a memória e a história de uma pessoa, dizia para si mesmo Antônio.


Sabemos que esse é o nosso destino. Devemos aceitar os desígnios de Deus. Tudo que nasce, morre. Tem começo, meio e fim. Essa certeza absurda deveria nos fazer pessoas bem melhores, como o pai mesmo lhe dizia.


A chegada dos funcionários da funerária o incomodou. Era uma presença indesejada, agressiva. Eles não sabem chegar. Um senhor gordo, sobrancelhas grossas, bigodudo, com chumaços de algodão e uma pinça grande na mão aproximou do corpo ainda estendido no sofá. Precisava colocar algodão nas narinas e nos ouvidos para evitar a saída de fluidos. Antônio odiou aquele homem quando, de forma grosseira e violenta, empurrou a pinça com força tentando colocar o algodão…gritou dentro do coração:


_ Pare! Pare! Pare! Não o machuque, ele é o meu pai. Não o machuque, por favor! Não o ma-chu-que! Então chorou pela primeira vez um choro que que não conhecia, um choro que não sabia existir. Lágrimas que não vinham dos olhos, mas das profundezas da alma.


Passou pela cabeça orar para ressuscitar o pai. Precisava de fé. Então, descobriu que existem sementes de grãos de mostardas maiores do que a grande montanha do Everest, na cordilheira do Himalaia.


Logo ele, não poderia ressuscitar nenhuma formiguinha. Estaria entre aqueles que ficaram no barco quando um certo Simão Pedro caminhou por sobre as águas. Antônio era humano, fraco, e na sua fraqueza Deus o amou como amou a todos que, assim como ele, também se esconderam covardemente na noite escura do tempo na hora da crucificação. Deus é puro amor.


Resignou-se quando lhe veio um pensamento. Os pensamentos vêm, não se sabe de onde, e se vão do mesmo jeito: Ele, o seu pai, está em um bom lugar. Para quê despertá-lo do sono? Sim, para que despertá-lo? Havia chegado o seu tempo. É isso Antonio, fique calmo, um dia chegará sua vez e talvez você não queria que ninguém o desperte do sono. Cada um cumpre a própria sina nesse mundo e só depois vem o descanso. Às pastagens verdejantes e às águas tranquilas. Sim, as águas de um rio… ele foi sepultado como queria, ao lado da mãe. Antônio seguiu vivendo, como deve ser.


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Astério Moreira

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