São tempos sombrios, esses que atravessamos no Brasil, quando milhões de pessoas passam fome e as autoridades políticas do país demonstram criminosa indiferença. O povo quer respeito, os dirigentes respondem com o desaforo, a ofensa e a mentira. Vivemos numa terra sem lei.
Lembramos, no entanto, que já vivemos dias melhores. Num passado não muito distante, o Brasil, depois de ter permanecido séculos na promessa de ser “o país do futuro”, dava mostras de que seu tempo, finalmente, havia chegado. Nosso país ascendeu à posição de sexta economia do mundo, saiu do mapa da fome, ganhou destaque como um país que liderava o mundo na realização das metas do novo milênio. A revista Time dedicou uma capa histórica, em que a estátua do Cristo Redentor, símbolo do Brasil, decolava como um foguete.
O mais significativo, naquele momento, era que nossa prosperidade andava junto com a soberania sobre o território e os recursos naturais, dos quais ninguém mais colocava em dúvida nossa capacidade de gestão e conservação. Durante uma década, de grande avanço econômico e melhorias sociais, também reduzimos em mais de 80 por cento o desmatamento, aumentamos as áreas de proteção ambiental, gerenciamos as águas, controlamos a exploração mineral. A antiga expressão “o Brasil é nosso” tornou-se verdadeira.
Como foi possível? Com democracia e respeito a uma Lei que foi instituída em 1988, a Constituição Cidadã, resultado de nossa vitória contra a ditadura. E com a construção de novos parâmetros para medir o desenvolvimento e a participação da sociedade na elaboração dos projetos e no controle das ações do Estado. E com muito trabalho, pois nada foi fácil. O Brasil tinha acumulado, em 5 séculos, um histórico de injustiça, escravidão, extermínio das populações originárias, analfabetismo, doença e miséria. Tinha também alimentado elites e oligarquias autoritárias e improdutivas, muita violência, muitos preconceitos, um apartheid social difícil de superar.
Mas o trabalho foi – e continua sendo – um “bom combate”, para usar a consagrada expressão cristã. E na década luminosa de nossa história, tive a felicidade e a honra de participar desse avanço na civilização, primeiro como governador do meu Estado, o Acre, e depois como seu representante no Senado Federal. Posso afirmar, sem pretensões de vaidade, que fui fiel aos mandatos que o povo acreano me deu. E sei o quanto um dirigente político pode realizar se tiver como foco e missão fazer o melhor para seu povo.
Dia Mundial do Meio Ambiente e 10 anos do Código Florestal
Faço essa longa introdução é para compartilhar as esperanças, que mantenho, de que o Brasil possa voltar a viver dias felizes. E para comemorar duas datas significativas: o Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado neste 5 de Junho, e os 10 anos do Novo Código Florestal brasileiro, completados no último 25 de Maio. Reforço que a comemoração deve ser moderada na triste realidade dos dias atuais, mas não poderia deixar de falar desse um marco que considero da maior importância para nosso país.
Sem exageros, digo que é uma Lei que interpreta fielmente o espírito da Constituição de 88 e que faz justiça ao tamanho e à importância das florestas em nosso país. Sei disso porque conheço em detalhes o novo código: fui o relator do projeto no Senado, junto com o falecido senador Luis Henrique – que me deu autoridade para conduzir a negociação durante a elaboração e tramitação no Congresso -, pela minha formação de engenheiro florestal e minha experiência anterior no governo de um estado amazônico.
O Código vem de longe, no tempo. A ideia de que a soberania do Brasil lhe coloca na condição de guardião e protetor das florestas está nos alertas escritos por José do Patrocínio, que conhecemos nos livros de História como Patriarca da Independência do Brasil. Permaneceu como identidade nacional numa brasilidade em formação, a ideia do país “gigante pela própria natureza”. Ganhou força na abertura aos naturalistas, no diálogo com as academias de ciências da Europa. E ganhou um exemplo prático de grande valor quando quando o imperador Pedro II criou a Floresta da Tijuca e fez uma restauração exemplar de um trecho da Mata Atlântica.
Na República, o primeiro Código florestal em surgiu em 1934, depois foi atualizado em 1965, em pleno regime militar. Eram regras claras para a proteção, a exploração “racional” das riquezas da floresta e a compatibilização das demais atividades requeridas pelo desenvolvimento econômico. E embora o Brasil se desenvolvesse com a ideia equivocada de que a floresta e seus recursos eram infinitos e que podiam ser explorados sem limites, sempre houve resistência do povo brasileiro contra a devastação e o intenso sentimento de orgulho pela dadivosa e exuberante Natureza dentro de nossas fronteiras.
O final do século passado trouxe novos conflitos – e nós acreanos conhecemos bem a luta de Chico Mendes e dos povos da floresta. Mas trouxe também avanços, como a criação das Reservas Extrativistas e dos órgãos de fiscalização e controle, a exigência de estudos e planos para o licenciamento de obras e empreendimentos, todo um arcabouço institucional que foi se formando em torno da ideia da proteção ao meio ambiente e ao patrimônio natural.
Quando, no governo de Fernando Henrique, foi ampliada a reserva legal para 80 por cento nas propriedades na Amazônia, já vivíamos em plena guerra pela posse e uso da terra e aumentavam as pressões de diversos setores econômicos por mudanças na legislação que implicariam em diminuir a proteção das florestas, das nascentes e da biodiversidade. E foi essa matéria, a mais complicada, que me dispus a estudar, relatar, mediar os debates e estabelecer uma nova lei. E não se tratava de uma complicação meramente política, porque não dizia respeito apenas ao ativo social e econômico do momento, ao desempenho econômico de algumas décadas, mas sim ao futuro de muitas gerações, à definição de um novo tipo de desenvolvimento e até a transição para uma nova civilização. Imagine o que é tentar promover um entendimento sobre tudo isso, em meio a conflitos e pressões de todos os lados, de todos os setores e até de outros países.
Foi um longo processo de mediação, muito diálogo, muita escuta de todos os setores envolvidos direta ou indiretamente. Os extremos – a máxima preservação de um lado e a exploração sem limites de outro lado – permaneceram contrários ao novo código. Mas não puderam impedir o diálogo nem desconhecer o resultado do debate. No texto final, estabeleci várias disposições transitórias, para resolver questões imediatas, além das medidas permanentes para tudo o que exigia estabilidade de longos prazos. Não mexi nas regras de proteção ambiental mas procurei contemplar as necessidades legítimas dos diversos setores da produção econômica, especialmente aqueles ligados à agricultura e a pecuária, procurando pacificar a relação entre esses setores e o meio ambiente. Preguei insistentemente a idéia de que ninguém produz se não tiver o meio ambiente como aliado. O fato do Brasil ter uma grande biodiversidade não é uma maldição, é uma bênção. A força da Natureza é um presente de Deus e é uma grande fonte de riqueza para nosso povo.
Firmei a convicção de que é necessário manter a floresta conservada, é possível até restaurar as áreas que foram desmatadas, principalmente nas margens e nas nascentes dos rios. Essa necessidade é ainda mais urgente nesses tempos de mudanças climáticas e esgotamento dos recursos naturais. Hoje todo mundo percebe que não será possível evitar os efeitos mais drásticos das mudanças climáticas se não tivermos as florestas como parte da solução dos problemas. Para retirar o gás carbônico da atmosfera teremos que plantar milhões de árvores, porque são elas que fazem esse trabalho de regulação retendo o carbono e produzindo oxigênio.
Procurei demonstrar que essa grande mudança que o mundo atravessa é uma também uma grande oportunidade para o Acre, a Amazônia, o Brasil, de colocar-se na vanguarda na transição do padrão econômico e até da criação de novos avanços da civilização, unindo os conhecimentos tradicionais do povo com a ciência e a tecnologia mais avançadas.
Também me esforcei para demonstrar que a maior parte do desmatamento é inútil, desnecessário, porque o Brasil pode triplicar a produção agrícola e dobrar a criação de gado simplesmente aproveitando melhor as áreas já desmatadas.
Considero uma das marcas de meu mandato no Senado a criação de um espaço de entendimento e um processo de mediação baseado na idéia de uma harmonia entre o desenvolvimento econômico e a conservação do meio ambiente. Hoje os analistas reconhecem que o Código Florestal pode reger um novo momento de prosperidade para o Brasil e lamentam que sua implementação esteja sendo postergada. Mais lamentável ainda, é que o desmatamento ilegal, o tráfico de madeira, a poluição dos rios, todo tipo de crime contra o meio ambiente e contra a economia do país esteja sendo não apenas tolerado mais até incentivado pelos atuais governantes.
Dez anos depois, o desafio continua sendo levar à prática essa lei, que é boa, que é uma demonstração do potencial de nosso país e de sua inserção entre as grandes potências do mundo, de sua contribuição à solução do principal problema que a humanidade enfrenta neste século.
Meu empenho, agora, é para compartilhar uma nova esperança: se fomos capazes de realizações tão significativas, certamente seremos capazes de novas realizações. O Brasil há de se livrar desses governos atrasados, que queimam e desperdiçam nossas maiores riquezas. E há de ter, também, um parlamento renovado, especialmente um Senado que tenha sabedoria política para mediar conflitos e pacificar o país, que compreenda a importância da Amazônia e dos demais biomas que temos em nosso vasto território, que trabalhe visando o bem das futuras gerações.
Por essa esperança, vale a pena comemorar os dez anos do Novo Código Florestal e continuar trabalhando para que o Brasil possa retomar o bom caminho.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Jorge Viana
É engenheiro Florestal, foi Prefeito de Rio Branco (1993-1996), Governador do Acre por dois mandatos (1999-2006) e Senador da República (2011-2018). No Senado, foi relator do Novo Código Florestal Brasileiro, da Nova Lei de Acesso à Biodiversidade e do Código da Ciência, Tecnologia e Inovação. É professor de Mestrado em Administração Pública no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e Coordenador do IREE ECO.