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Diário do Acre: Rio Bagé, Comunidade Remanso e Marechal Thaumaturgo

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Com sol a pino embarcamos nas voadeiras, a comitiva era grande assim como a nossa expectativa. Eu estava animado, visitaria mais uma vez a comunidade do Remanso, que fica no Rio Bagé. Muitos ali a conheceriam pela primeira vez, eu queria mesmo era rever os amigos.


O Juruá estava na tampa, o que facilitou a navegação. Aldemir ia ao meu lado conversando sobre pescarias e apontando para as casas na beira do rio, me contando como estavam os amigos. Nosso tempo estava corrido e não podíamos subir em todos os portos, como eu gostaria. Mas, só de saber que estava tudo bem, já era motivo de felicidade.


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Saímos do Juruá, passamos pelo Tejo e adentramos o Bagé. Estava acostumado a fazer essa viagem de canoa, na voadeira tudo é mais rápido, confesso que senti falta da tranquilidade, não gosto de visita corrida. Contudo, saímos tarde de Marechal e tínhamos que chegar no Remanso antes do anoitecer.


Mesmo com tempo corrido deu tempo de dar uma paradinha na casa do Quima e tomar um cafezinho quente, passado na hora. Perguntei pelo açude que ele estava fazendo no braço, a última vez que fui por lá, a cheia arrombou. “No verão vou tentar ajeitar, não tem peixe. Mas tem carne de caça”, afirmou Quima, apontando para a pia onde uma bacia de carne de caça estava sendo tratada. Me encantei com um macaquinho que se escondia por entre as bacias no chão, o nome dele é “Chico”. Eu soube por uma das filhas do Quima. Deve ser regra dar nome de Chico aos macacos, criados em casa.



Na parede da cozinha, um calendário chamava a atenção. Na verdade é difícil uma casa à margem Rio do Juruá e afluentes que não tenha uma foto, calendário ou mesmo uma imagem do Irmão José da Cruz, de barba longa e densa e vestes franciscanas e alvas que, segundo os moradores, nunca sujava. Irmão José se perpetua por suas histórias, milagres e devoção por todo o Juruá. Me contaram que certa vez um ribeirinho estava com ele e precisava fazer uma viagem longa, porém, não tinha combustível no motor e de varejão demoraria dias. Então, Irmão José pegou o querosene de uma pequena lamparina, colocou no motor e mandou ele ir. Reza a lenda que o combustível que não daria nem pra andar uma curva de rio, deu pra ir e voltar.



Chegamos no Remanso ainda com dia, encostamos na casa do seu Jonas, que estava sozinho, pois sua esposa está fora (viajando) fazendo um tratamento de saúde. Aldemir não perdeu tempo, já foi dizendo que as noites do Jonas devem ter ficado mais frias. Ele riu e concordou. Aldemir contou uma história de que numa outra vez que ela viajou, para um tratamento em Cruzeiro, depois de muitos dias fora, o médico disse que teria que ir a Rio Branco e a viagem se estenderia mais ainda. Jonas preocupado disse que tinha que levar uns documentos para ela, Aldemir de pronto disse que mandaria pelo voo no dia seguinte. Porém, Jonas olhou fundo nos olhos de Aldemir e disse que tinha que entregar pessoalmente. Todos gargalharam, ao perceberem que era só mais uma desculpa de um homem sempre apaixonado, que não se aguentava mais de saudades de sua velhinha.


Na casa ao lado mora o Carlos, um dos irmãos mais novos do Jonas. Chegamos bem na hora que ele estava chegando do roçado com alguns de seus filhos, são bem uns 14. Aldemir desafiou Carlos a dizer o nome de todos, a esposa dele riu e preferimos não insistir, vai que o homem erra e algum fica chateado. Uma rodada de café animou a conversa e uma tapioca foi servida junto, senti que tinha um negócio diferente na tapioca, parecia castanha. Perguntei de onde tiraram castanha, pois na região do Juruá não tem. “É cocão”, me disse um dos meninos. “Ficou muito bom!”, respondi.



Tava findando a tarde quando subimos mais um pouquinho o Bagé e chegamos na casa do Zequinha e da dona Gata, onde dormimos. Rapidinho se formou uma roda na sala e a conversa fluiu, conforme ia chegando gente, mais animada ficava a roda. Alemão que nos acompanhava na viagem, conhecido de todos, virou o centro da conversa. Léo lembrou de um amigo que já se foi chamado Dedé Verissimo, em épocas de campanha quando disputava eleição de vereador com Alemão e encontrava um voto dele, fazia questão de tentar tirar o voto, dizia o Dedé: “não vote no Alemão, ele é tão ruim que nem a cobra quis”.


Alemão teve que contar a história para que todos entendessem, nos contou que quando era pequeno na beira de um lago foi atacado por uma cobra grande que se enrolou em seu corpo, mesmo apertado conseguiu puxar a faca da cintura e ferir a cobra, que machucada deixou ele em paz. Moisés que escutava atento a história disse que provavelmente a cobra morreu, pois se furar a cobra ela não escapa, na água a traíra vai comendo na ferida e no seco a formiga ataca. “Se o Dedé estivesse aqui ai ter história pra noite toda”, afirmou Alemão, que aproveitou pra falar que antes de morrer, Dedé pediu desculpa a todos que um dia ele poderia ter ofendido.


A noite foi caindo e a sala começou a ficar pequena, chegava gente de todo o Remanso por lá. Na cozinha Dona Gata e as mulheres preparavam um porco pra janta, o cheiro da comida tomava de conta de todos os lugares da casa. Descemos para tomar um banho no Bagé, mergulhávamos no rio e subíamos nas canoas para se ensaboar, confesso que ficava meio acuado, vai que a cobra que pegou o Alemão não estava por ali caçando seu jantar.


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O terreiro estava lotado quando subimos. O caminho para a casa, o motor de luz roncava alto e iluminava a casinha de madeira. Dentro de casa não cabia todos, então, resolvemos reunir no quintal. Desligamos o motor para que todos pudessem se ouvir e a luz das lanternas iluminava quem falava. Eu estava para lá de animado de ver boa parte dos meus amigos do Bagé por ali, principalmente, a família do seu Hélio, na qual dormi a última vez que fui por lá. Dona Gata chamou todos para jantarem, e a comida estava maravilhosa! Foi servida no chão da cozinha, porco, arroz e farinha tinha pra quem quisesse.


Com todo mundo de barriga cheia, os barcos iam seguindo seus rumos guiados pelas lanternas, enquanto na cozinha, o Zequinha armava uma rede para eu dormir ao lado do Aldemir. A conversa ainda se estendeu até tarde acompanhada de café com bolachas. Quando o motor desligou, o rangido da rede balançando e o cantar da floresta transmitiam serenidade.



“Amanhã saímos cedo”, disse Aldemir, antes de virar para o lado e dormir. Sozinho com meus pensamentos lembrava de cada história, desde as mais engraçadas às conversas sobre visagens e almas na mata, que levavam o mais corajoso dos homens a fazer uma oração antes de dormir.



Cesário Braga escreve no ac24horas todas às sextas-feiras. 


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