Patrícia de Amorim Rêgo e Fábio Fabrício Silva
Recentemente, a plataforma streaming Netflix lançou um novo filme bastante comentado nas redes sociais, chamado “Não olhe para cima”, cujo enredo dialoga muito com o que estamos vivenciando atualmente no contexto da maior e mais insólita crise sanitária mundial, em tempos de pós-modernidade. Este texto é uma provocação para olharmos para o lado, ou não…. Nasce de uma inquietação que teima em não nos deixar em paz. Com razão, Pedro Casaldáliga, um defensor dos índios e dos pobres do Araguaia, escreveu como poesia o que poderia ser uma oração destas últimas horas: “Dá-nos a paz, aquela paz inquieta que não nos deixa em paz”.
Em constante crise política e econômica agravada pela condução desastrosa da pandemia, o Brasil aprofunda, a cada dia, o cenário da extrema pobreza. Um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pessan), divulgado em abril de 2021 (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19), denuncia que 20 milhões de brasileiros afirmaram que passam períodos de 24 horas sem ter o que comer e cerca de metade da população – 116,8 milhões de pessoas – sofre atualmente algum tipo de insegurança alimentar. “O Brasil se encontra dividido entre os poucos que comem à vontade e os muitos que só têm vontade de comer”, afirmam os pesquisadores do referido Instituto.
No segundo semestre de 2020, alguns estudos e pesquisas sobre os efeitos colaterais da Covid-19, de outra mão, apresentaram o agravamento dos problemas relacionados à saúde mental. Além de vencer o vírus, a humanidade tem pela frente outro enorme desafio: a reunião de esforços e o desenvolvimento de estratégias públicas e privadas para proteger, fortalecer e promover a saúde mental das pessoas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a pandemia interrompeu serviços essenciais de saúde mental em 93% dos países do mundo e, ao mesmo tempo, intensificou a procura por esses mesmos serviços. No Brasil — país que já é um dos recordistas mundiais em relação à depressão, à ansiedade e a números absolutos de suicídios —, a primeira fase de uma pesquisa realizada no final de 2020 pelo Ministério da Saúde detectou ansiedade em 86,5% dos indivíduos pesquisados, transtorno de estresse pós-traumático em 45,5% e depressão grave em 16% dos participantes do estudo.
Outro estudo, realizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) com 12.000 pessoas da América Latina e Caribe (30,8% eram brasileiros), revelou que 35% dos entrevistados relataram aumento na frequência do comportamento de beber de forma excessiva e em um curto período de tempo — situação que pode desencadear sérios problemas em relação à saúde mental dos envolvidos. Além disso, também não faltam estudos sobre a ampliação das violências domésticas, do abuso infantil e do adoecimento emocional por parte de jovens e de idosos submetidos ao isolamento social.
Este texto é uma elegia, mas também um convite para renovação de compromissos, visando desvelar caminhos – urgentes e necessários – em virtude das agruras de nosso povo, principalmente os mais vulneráveis que têm a solidão das ruas como sua companhia.
No entardecer do último sábado, enquanto parte da cidade estava coberta por uma enorme nuvem de uma chuva torrencial típica do inverno amazônico, chega-nos a informação do falecimento de Renan Almeida de Souza, popularmente conhecido e identificado como Nego Bau. Uma personagem real das ruas de nossa cidade. Um ícone, diriam alguns. Sujeito de direitos, outros. Um incômodo, para outros tantos, talvez. Um caso perdido, quem sabe. Um sofredor, por certo. Alguém que há tempos estava nos falando e nos apontando o dedo, com certeza!
Os últimos dias foram, com certeza, intensos para um conjunto de profissionais da saúde e da assistência social, sob o acompanhamento diuturno do Ministério Público do Acre. A trajetória do Renan leva-nos a questionar uma série de conteúdos aprendidos, ensinados, postos em prática (ou não), que já não conseguem dar conta da complexidade que se revestem situações que em comum apresentam o uso abusivo de drogas, o transtorno mental, a vivência de rua e a fragilização de vínculos básicos da sociabilidade humana.
Tal condição, como dizemos, de hipervulnerabilidade, abre caminho para as demais estações dessas via crucis, cujo fim já sabemos, sem qualquer spoiler. Violência nas ruas por populares, violência policial, omissão de cuidado ou cuidado tardio e inadequado por parte das redes de proteção social e atenção psicossocial, são as expressões e respostas que nossa sociedade tem dado para estes casos críticos.
Sem dúvida, mesmo reconhecendo os esforços neste campo, é de lamentar a forma como os governos vêm tratando as políticas de Assistência Social e Saúde Mental, para citar duas das mais importantes neste contexto. Os chamados casos críticos, como o do Nego Bau, exige a adoção de respostas estatais mais céleres, mais articuladas, com técnica, responsabilidade e profundo respeito aos direitos humanos. Sem dúvida, é preciso chegar antes.
A saúde mental pública, no contexto brasileiro, sempre foi um campo de tensionamentos e disputas políticas importantes. A Política Nacional de Saúde Mental instituída a partir da Lei n.º 10.216/2001, foi um dos produtos do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, que vinha sendo discutida desde a década de 70, fruto de importantes mobilizações, lutas e movimentos sociais, que são instâncias decisivas na arena democrática.
A implementação dessa política permitiu um novo modelo assistencial para as pessoas em sofrimento psíquico, incluindo aquelas com problemas decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas e em contextos de vulnerabilidade social. Essa política traz como modelo assistencial a atenção psicossocial, pautada no cuidado em liberdade, respeito, dignidade e autonomia das pessoas em sofrimento psíquico. Aposta numa rede de serviços de base comunitária e territorial (como os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS – e as Residências Terapêuticas – RT), substitutivos aos hospitais psiquiátricos (manicômios/hospícios), e também investe em processos de trabalho interdisciplinares e articulações intersetoriais, que vão além da saúde e as redes formais de cuidado.
Diversas outras políticas foram sendo implementadas ao longo dos anos 2000, ampliando ainda mais as estratégias, ações e ferramentas clínicas da saúde mental e constituindo a chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Embora não se tenha avançado no ritmo que o movimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial gostariam, a caminhada foi ininterrupta e os ganhos são inquestionáveis.
Porém, desde o ano de 2016, e em especial nos últimos três anos, tem se observado um processo acelerado de desmonte e desorganização política, técnica e financeira dos avanços alcançados pela Reforma. O que se tem experimentando é um duro golpe nos serviços, gerando desassistência de uma rede já bastante fragilizada. De fato, está em curso uma mudança no paradigma da atenção à saúde mental no Brasil, mesmo com números e estatísticas a causarem espanto.
Na esteira das modificações, no fim de dezembro do ano de 2020, o Ministério da Saúde, em reunião na Câmara Técnica de Atenção à Saúde do Conselho Nacional de Secretários de Saúde/CONASS, apresentou o documento “Diretrizes para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, indicando a extinção da Rede de Atenção Psicossocial, assim como o desmonte do programa anual de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS, das equipes de Consultório na Rua, das Unidades de Acolhimento, assim como do Serviço Residencial Terapêutico.
No Estado do Acre, os serviços de Saúde Mental ainda não foram todos implantados, e aqueles que já estão implantados e reordenados, mesmo com o grande esforço das trabalhadoras e trabalhadores, ainda precisam de fortalecimento, gestão e financiamento compatível com o desafio de atender as questões de saúde mental de nossa população acreana. A proposta do Governo Federal põe em risco a sequência desse trabalho de implementação da RAPS.
Todos precisamos transformar os casos em causas e abandonar técnicas e táticas que já não respondem mais ao nível de exigência de situações como estas, tendo como exemplo Nego Bau. Claro, também o Sistema de Justiça e as instituições que desempenham funções essenciais à Justiça precisam encontrar novas teses jurídicas para a defesa efetiva dos direitos fundamentais deste grupo hipervulnerável, crescente na cidade de Rio Branco. O mesmo se diz da atuação psiquiátrica, psicossocial, da segurança pública, entre outras, dentro de seu científico e pragmático campo de atuação.
Desde o ano de 2018, o Ministério Público do Estado do Acre vem pautando a questão do aumento de pessoas em situação de rua, numa condição de maior vulnerabilidade, riscos e violações dos direitos. São, em grande parte, pessoas com transtornos mentais severos, usuários abusivos de drogas, com vínculos fragilizados ou rompidos com suas redes sociofamiliares, pacientes pouco cooperativos, que, por sua condição extrema, são pouco quistos nos variados serviços de atendimento. A experiência aponta alguns avanços, mas muitos desafios. As respostas, por vezes, são letárgicas. As complexidades das questões sociais vêm a galope.
O Estado do Acre e Município de Rio Branco têm uma dívida histórica com o campo da saúde mental e da assistência Social, enquanto política pública feita com profissionais capacitados, com vínculos estáveis, em serviços e equipamentos implantados adequadamente, com recursos públicos destinados a manter tais serviços, com respeito aos profissionais e suas práticas, às normas e regulamentos do SUS e do SUAS, renunciando à clientelismos e filantropização.
Ainda mais, o Estado do Acre tem um micro sistema normativo criado nos anos 2017 e 2018: Lei n.º 3.363/2017 – Política Estadual para Pessoas em Situação de Rua; Decreto n.º 8.911/2018 – Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política em Situação de Rua no Estado do Acre; e o Plano Estadual de Políticas Públicas para Pessoas em Situação de Rua. Porém, mesmo com este arcabouço, os orçamentos destas pastas sofrem contingenciamentos anuais, ou apresentam ações que não foram as mesmas pactuadas nos colegiados de participação – constitucional – daquela política pública específica. Além de tudo, isso enfraquece a democracia.
Em 2021, foi assinado o Termo de Acordo Extrajudicial do MPAC, por meio da Promotoria de Defesa da Saúde, com o Município de Rio Branco, visando, no início do ano de 2022, o aprimoramento da Rede de Atenção Psicossocial/RAPS, por meio da implantação de Centro de Atenção Psicossocial – CAPS III — e os Serviços de Residências Terapêuticas. Estes pontos de atenção são decisivos para uma oferta de serviços mais adequados às exigências de casos como os do Nego Bau.
É preciso reconhecer a entrega de tantos, mas não suficientes, profissionais para esta causa. O limite está posto. Faz-se necessário que as soluções, que passam por escolhas técnicas, claro, passem ainda mais pelas escolhas de gestão. Melhor dizendo, a questão da atenção em casos de crise/críticos não pode ser da responsabilidade de apenas um profissional X ou Y, mas de um conjunto estruturado de ações, coordenadas pelos gestores, e de avaliação permanente. Não existem soluções mágicas para questões complexas.
Olhe para o lado, ou não …As ruas das cidades, inclusive Rio Branco, estão repletas de pessoas numa condição de uso abusivo de drogas e de transtornos mentais, em situações de hipervulnerabilidade. São crianças, jovens, idosos, mulheres, egressos do sistema penal, egressos dos hospitais psiquiátricos, entre outros. Mas, jamais, esqueça que são pessoas como a gente, que vêm de nossas famílias, de nossas casas, do universo de nossas relações, de nossas comunidades, da negligência histórica de governos (e da própria sociedade, mediante suas escolhas) com a saúde mental, da negação dos direitos e do baixo, nulo ou precário acesso à Justiça, com a raríssima exceção da implacável Justiça Criminal. Têm nomes, rostos, histórias e trajetórias de vida.
Assim como as ruas, as casas e apartamentos estão cheios de pessoas fazendo uso de inúmeras mediações psiquiátricas, neste que é considerado o maior pico do consumo de ansiolíticos, antidepressivos e outros fármacos desta natureza.
Que Renan de Souza, tão presente nas redes sociais, nos memes, nas grafitagens das muretas, nos vídeos e nas manifestações de populares, políticos, pessoas públicas e influentes, que continua a nos apontar o dedo para olhar ao lado, não esteja ausente das tomadas de decisão de todos nós e, em especial, daqueles/as aos quais a população delegou funções estatais.
E, enquanto viramos o calendário para uma nova semana na qual precisaremos encontrar caminhos — em diálogo de redes — para mais um, dentre inúmeros outros casos críticos semelhantes ao de Renan, que possamos olhar para o lado. Ou não. Mas se olharmos, que tenhamos em mente a poesia de Casaldáliga: “Dá- nos, aquela paz inquieta, que denuncia a paz dos cemitérios. Dá-nos a paz que luta pela paz!”
Patrícia de Amorim Rêgo
Procuradora de Justiça/MPAC e Coordenadora do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial — NATERA. (prego@mpac.mp.br)
Fábio Fabrício Silva
Compõe a equipe do NATERA/MP e o Comitê Intersetorial da Acompanhamento e Monitoramento das Políticas para População de Rua/Acre(ffsilva@mpac.mp.br)
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