No debate público, especialmente em períodos pré-eleitorais, é comum o surgimento de rótulos que, no mais das vezes depreciativos, objetivam enquadrar o adversário em um determinado campo moral ou comportamental que o identifique e agrupe. É como cercar o opositor para bombardeá-lo. De algum modo, eles sempre existirão, mas nos últimos anos, devido ao surgimento das redes sociais, alguns termos são massivos.
O primeiro e, talvez, mais impactante, é o termo PETRALHA, com o qual o jornalista Reinaldo Azevedo carimbou o petista de modo generalizado, embora ele mesmo tenha explicado que nem todo petista é petralha. O termo combina o petismo com os irmãos metralha, uma famosíssima trinca de assaltantes dos desenhos animados da Disney dos anos 70. Foi talvez um dos mais duros golpes sofridos pelo PT durante as apurações da Lava Jato, à medida que em qualquer situação uma simples palavra desmoralizava o discurso petista, colocando todos sob suspeição. Apesar dessas novidades linguísticas normalmente se esfumaçarem com o tempo, e de todo esforço empreendido pelo partido, não está sendo fácil para o PT escapar do rótulo.
Junto com as manifestações de rua, surgiu o MORTADELA, criado para desdenhar a força de ajuntamento da esquerda, em vista de que muitos dos manifestantes estariam ali apenas pelo estímulo de uma camisa, o pão com mortadela e uma um pagamento extra. Essa militância paga simbolizaria a decadência da esquerda que apelava naquele instante para desempregados colhidos nas periferias para engrossar o aplauso e as palavras de ordem dos movimentos, sem, contudo, saberem exatamente do que se tratava. Houve quem se promovesse apenas desnudando o MORTADELA.
Havia o COXINHA, de quem pouco lembramos hoje em dia. Era a antítese do MORTADELA, dado pelos adversários como aquele sujeito normalmente de classe média, que dispensava estímulos materiais, metido na manifestação política de rua sem conhecer os problemas dos pobres, da periferia. Com o fim das manifestações, o termo, ligado ao centro e à direita, praticamente desapareceu ou foi substituído.
Outro termo que ganhou as redes sociais e as colunas políticas foi o ISENTÃO. Este não tem patente e diz respeito àquele que, sempre disposto à crítica, não se obriga a tomar partido e, para nunca sair-se mal, dá uma no cravo e outra na ferradura. Seus argumentos são do tipo que não dispensam a conjunção adversativa “mas”, como por exemplo, “O PT roubou, mas, do outro lado também tem ladrão”. Pronto. Se postou ali como sujeito “isento”, logo, seu parecer não engajado lhe confere um afastamento que, em tese, valoriza seu ponto de vista. Muitas vezes é apenas um esquerdista envergonhado.
Mais antigo é o termo ESQUERDOPATA, destinado normalmente aos estudantes, intelectuais, artistas, sindicalistas etc., que se negam a aceitar, pelo menos no debate, argumentos óbvios, como se apresentassem falhas de cognição. Como exemplo, aqueles que até hoje não aceitam a refutação da teoria do valor-trabalho, cerne do marxismo.
Ainda mais antigo é o IDIOTA ÚTIL, termo cuja criação (sem comprovação) é atribuída ao líder soviético Lenin , para designar uma certa massa de pessoas vinculadas compulsoriamente à esquerda, sem a instrução e o arbítrio necessário para uma pensamento crítico, mas necessárias para dar volume, repercutir e seguir ordens advindas das autoridades partidárias. É hoje, uma certa militância virtual e aquela mais antiga, que balança bandeiras e vocifera palavras de ordem em manifestações, normalmente recrutada em sindicatos, ong’s e universidades.
Mais recentemente, com a ascensão da direita e, especificamente em relação ao Bolsonarismo, surgiu o BOLSOMINION, uma alusão ao sujeito alienado que obedece sem refletir, como autômato, a sinalização do Bolsonaro, independentemente de qualquer julgamento ético ou político. É um idólatra, um tipo como o Lulopetista que acredita na sua inocência, assemelha-se ao IDIOTA ÚTIL de sinal invertido e carimbado com o nome do ídolo.
Outro, recente, é GADO, com o qual a esquerda denomina o bolsonarismo de bando, referindo-se, talvez ao cercadinho na entrada do palácio da alvorada. Uma espécie de manada que segue o líder sem muito questionamento. Se poderia dizer que um conjunto de BOLSOMINIONS faz um GADO.
Ultimamente, impulsionado pelo jornalista Rodrigo Constantino e outros, vem tomando força uma elaboração antiga – o RADICAL DE CENTRO, para representar um tipo de manifestação no debate público que, já em 2013, Fernando de Barros e Silva, também jornalista, definiu como um intelectual que chegou atrasado na história. Segundo ele, “o radical de centro deve seu enraizamento na paisagem brasileira a Fernando Henrique e Lula. Foi nos seus governos, quando o horizonte das mudanças de que eles eram portadores foi rebaixado e as perspectivas pessoais de certa esquerda paradoxalmente se ampliaram, que esse personagem meio desalojado de si mesmo finalmente se encontrou”. Colunistas, jornalistas, políticos e acadêmicos frequentam a área em que se aglomeram os radicais de centro.
Entre uns e outros, buscam equilíbrio os mais comedidos, aqueles que preservam a leitura dos fatos e o enfoque analítico, o que não significa não fazer escolhas. São os que não se pintam para a guerra, os que, de um lado e de outro, observam a floresta e os movimentos estratégicos mais que o combate diário gerador de fraturas na comunicação.
O maior problema desses rótulos todos é que, por serem depreciativos, ao invés de estimularem um debate produtivo, esclarecedor, servem mais para o insulto e para a interdição de qualquer troca de idéias. Quem vai debater com alguém que o chama de petralha? A ofensa embutida no rótulo é desagregadora, o que nos leva à perda de vínculo dialógico.
Infelizmente, não parece haver saída fácil, os ânimos estão sendo mantidos exaltados em nível hard. Parece mesmo ser funcional para os principais grupos, partidos etc., que não haja trégua na linguagem, como se fosse sempre necessário levar a conflagração política até as próximas eleições, sob risco, inclusive, da corda arrebentar no meio do caminho.
Prudente, creio, é fugir dos rótulos quando for possível (nem sempre é). Eles são caixinhas em que aprisionamos os outros e a nós mesmos, ainda que não percebamos. Como fazer isso? Não sei. Talvez uma boa estratégia seja não dar início, não atirar a primeira pedra e liberar o verbo para a troca de idéias e sentimentos, sem lacração.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às sextas-feiras no ac24horas.