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Os venenos cerebrais 

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Se analisado sob o ponto de vista da evolução, dormir não parece ser um bom negócio. No jogo de caça e caçadores, um simples cochilo pode ser fatal. É preciso estar atento o tempo todo. Mais do que isso, além de atenção vigilante, o corpo todo precisa estar pronto para se evadir, sob as ameaças de predadores em ambientes hostis. No entanto, o que a realidade mostra é justamente o contrário. O corpo sente uma necessidade incrivelmente alta de repouso, de maneira que uma noite em claro ou mal dormida repercute negativamente durante alguns dias. Isso significa que nossa realidade presente é o resultado de milhões de anos de evolução, o que torna o sono um enigma para a ciência. Se o corpo sente falta dele, é porque ele não é apenas necessário, mas fundamental para a própria existência humana. Recentes estudos sobre o cérebro demonstraram essa fundamentalidade. 


Dessa forma, este ensaio tem como objetivo mostrar que o sono, além de inúmeros outros benefícios, tem a missão de eliminar os venenos cerebrais.

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Certa vez um grupo de alunos ficou até tarde decorando o ambiente escolar para um evento que estavam organizando. Só deixaram o recinto quando o diretor soube que já eram duas horas da madrugada e eles ainda lá estavam. No outro dia, às sete horas da manhã, apenas metade da turma estava presente para as primeiras aulas do dia. Depois de meia hora, o professor decidiu parar as atividades porque os alunos não conseguiam se concentrar. Vários deles chegavam a bater a testa contra as carteiras, incapazes de sustentar a cabeça, tão forte era o sono que sentiam. Às dez horas da manhã, o professor da próxima disciplina enfrentou o mesmo desafio, sendo rendido pela indisposição e incapacidade dos alunos para as atividades. Isso prosseguiu durante todo o dia.


Quem olhasse os alunos daquela turma os veria completamente diferente de sua tipologia normal. Olhos avermelhados, olhares entrecruzados, semblante abatido, corpo curvado, andar deselegante quase arrastando os pés, como se estivessem sofrendo grave patologia. Era uma imagem completamente diferente daqueles alunos alegres, sorridentes, olhares vívidos e atentos, lépidos e bastante fraternais. Mas, do ponto de vista científico, por que isso acontece?


A resposta é relativamente simples. O cérebro precisa estar atento ao que acontece no ambiente, assim como organizar pensamentos e ações para lidar com o ambiente e suas mudanças. Nessa duas atividades, esse órgão produz toxinas nocivas, que se acumulam entre as células cerebrais, grudando nelas e, quase sempre, matando-as. Para que o cérebro esteja atento ao meio ambiente e agir, precisa de energia. Na verdade, o cérebro precisa de muita energia para isso. E muita energia significa quase tudo o que o corpo produz, uma vez que esse órgão é o seu maior consumidor.


Mas é preciso lidar com as toxinas que todos os momentos são geradas nas atividades normais do cérebro. No entanto, para fazer isso e deixar-se limpo de todas as toxinas produzidas, teria que consumir muito mais energia do que todo o corpo consegue produzir. Mas, novamente, é preciso fazer essa limpeza. E o que o cérebro faz? Ele espera que o corpo se canse, entre em estado de sono e realiza a limpeza. Noutras palavras, quando o corpo dorme não consome tanta energia quanto em estado de vigília, energia essa que é direcionada para fazer a limpeza cerebral.


Os cientistas neuronais descobriram que durante o sono o líquido cefalorraquidiano aumenta em demasia, provocando uma espécie de torrente cerebral, como acontece nas enxurradas. Para facilitar a limpeza e aumentar o poder da torrente, as células do cérebro diminuem de tamanho, encolhem, o que facilita a circulação do fluido. O sistema nervoso bombeia esse líquido para dentro do cérebro e depois o remove em um ritmo muito rápido. Quando o animal acorda, as células retomam o seu tamanho natural e o fluxo do fluido diminui. Diminui, mas não cessa. Durante o tempo em que permanecemos acordados, portanto, a limpeza continua, mas em um ritmo muito menor do que acontece quando dormimos.


Essas proteínas tóxicas, verdadeiros venenos cerebrais, são causadoras de dois problemas gigantescos. Primeiro, quando acumuladas, impedem que pensemos de forma clara e lógica, o que equivale a dizer que é completamente inútil querer estudar ou aprender alguma coisa depois de muito tempo sem dormir. Não é falta de vontade do indivíduo e muito menos carência de esforço. Simplesmente é uma impossibilidade física: a exorbitância de toxinas não permite que o processo de aprendizagem flua e aconteça.


O segundo problema foi fruto do “acaso”. Os cientistas descobriram que um dos resíduos removidos do cérebro quando dormimos é a beta-amilóide. Essa toxina é a mesma que está associada ao mal de Alzheimer, espécie de placa pegajosa que destrói as células cerebrais. Isso não quer dizer, contudo, que basta dormir para que o Alzheimer seja eliminado, mas sim que aparecem juntas, podendo, portanto, ter alguma causa em comum. Tem-se constatado, por exemplo, que a beta-amilóide aumenta muito quando uma pessoa está acordada e diminui, quando acorda, de maneira que equilibrar o sono pode equilibrar a produção da toxina e prevenir amiloidose.


Durante milhões de anos de evolução o corpo e todos os seus órgãos têm evoluído para que os indivíduos possam sobreviver, adaptando-se às mudanças de seus ambientes. Recentemente, os estudos neuronais têm mostrado que o sono desenvolve funções fundamentais não apenas para a aprendizagem, mas também para a própria existência. É como se se pudesse dizer que, se algo existe, é porque ele é necessário. Se o sono existe, provavelmente sua importância ainda não foi claramente percebida. Estudos recentes, contudo, têm explicado que o sono auxilia de forma decisiva na aprendizagem, porque é ele quem transporta o aprendizado para as memórias de longo prazo, mas também na manutenção da vida, dado que venenos cerebrais matam os neurônios que, por sua vez, podem levar à morte.




 

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Daniel Silva é PhD, professor e pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e escreve todas às sextas-feiras no ac24horas.


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