Francisco (nome fictício), 25, trabalhou na manhã da última sexta-feira (23) como servente de pedreiro em uma obra de um prédio que está sendo construído no centro da capital do Acre, Rio Branco. Passou, no início da tarde, no Tribunal de Justiça para saber como está a situação de seu irmão mais novo –preso no início do ano por tráfico de drogas– e se apressou para, de moto, chegar ao restaurante onde é garçom à tarde e à noite.
Francisco morava no bairro periférico de Papoco, que margeia o rio Acre e que fica bem próximo do centro da capital. Ajudando, por meio de seu trabalho, todas as manhãs, a construir os sonhos de pessoas que viverão em um apartamento na cidade, Francisco se amargura ao lembrar que foi expulso de sua casa de dois cômodos para que seu irmão não fosse assassinado dentro do presídio. Uma realidade que costuma ocorrer no Acre.
“Eu sempre falei para o meu irmão seguir o caminho de Deus. O Diabo fez a cabeça dele, e ele foi vender droga. Pegaram ele. Jogaram na cadeia. Fui visitá-lo, falei meu grau de parentesco lá, tudo direitinho. Deu duas semanas depois, vieram uns caras armados me expulsando de casa, falando que era deles. Deixaram eu pegar umas mudas de roupa e disseram que, se eu reclamasse, eu e meu irmão seríamos mortos”, afirmou ao UOL, enquanto colocava o capacete sobre a cabeça.
A reportagem foi ao bairro de Papoco de carro. Ao descer, a motorista, moradora de Rio Branco desde que nasceu, alertou que o local poderia ser perigoso. Lá, as casas, em sua maioria, são de madeira e há crianças correndo entre áreas de mata. Há também pequenos comércios, como armazéns e bares. Os preços dos produtos não são diferentes de valores dos mercados do centro. Em um local ou outro, há pichos escritos CV.
Procurado, Ricardo Brandão, secretário-adjunto de Justiça e Segurança Pública do Acre, não comentou sobre as ações das facções criminosas no estado. Ele afirmou que o Acre tem registrado quedas nas estatísticas criminais e que estão lançando um “conjunto de atividades” para melhorar a segurança da população local.
Albano disse que há investigações de situações semelhantes à de Francisco. “Nós tivemos alguns casos, inclusive um recente que correu na Vara de Delitos e Organização Criminosa. São casos que vão parar na Justiça”, complementou.
A juíza de direito Luana Claudia de Albuquerque Campos, da Vara de Execuções Penais, afirmou que a tomada de casas por facções ocorre com frequência, como um padrão. “Para ficar com a casa como posse, como um patrimônio. Aqui, muitas casas são ocupações. Elas não são documentadas. E, como essas pessoas são mais humildes, moram em regiões mais pobres, na periferia. Esses bairros são domínio do crime organizado. Não são casos atípicos. Costumam acontecer bastante. É uma dinâmica de todas as facções.”
Com a posse das casas pelos criminosos, as facções entendem que os bairros se tornam menos vulneráveis diante de uma tentativa de tomada de território por facções rivais. “Familiares me afirmam que são extorquidos sempre. Que determinada facção manda alguém ir na casa deles e pede dinheiro, sob ameaça de morte do familiar que está preso”, complementou a magistrada.
Ainda segundo a juíza, há denúncias de que esses roubos de casas “ocorrem nos bairros de Calafate, Taquari, Belo Jardim, Santo Afonso, Vila Acre, Sobral, São Francisco. Todos bairros periféricos que são dominados por uma facção ou por outra”.
Luana Campos afirmou, também, que a polícia age nessas áreas apenas por meio de operações policiais. “Só. Não existe base nem ronda. A polícia pede para a Justiça a expedição de cem mandados de busca e apreensão, digamos. Ela prende alguns, o Ministério Público denuncia todos e, no fim, são dez condenados”.
O secretário Ricardo Brandão afirmou que “de fato, nos bairros periféricos não existem bases comunitárias, contudo é mantido policiamento constante, diuturnamente”. Ainda segundo ele, Rio Branco “é dividida em cinco áreas de segurança pública. E cada uma dessas áreas é subdividida em subáreas, para as quais têm guarnições com responsabilidade territorial específica”.
Até 2011, o estado não havia registrado nenhuma facção criminosa atuando na região. Em 2013, foi identificada uma célula do PCC (Primeiro Comando da Capital) dentro do complexo prisional Francisco de Oliveira Conde, que fica em Rio Branco. Entre 2015 e 2016, chegou o CV (Comando Vermelho).
Descontentes com burocracias impostas pelo PCC –como pedir autorização para matar, por exemplo–, alguns presos deixaram a facção paulista e criaram o B13 (Bonde dos 13). O PCC, como ficou fragilizado, decidiu se aliar ao B13 para fazer frente ao CV.
Depois, o Bonde dos 13 ainda teve uma dissidência. Alguns criminosos deixaram o B13 para criar a facção Ifara. Atualmente, as aliadas Bonde dos 13 e PCC, além da independente Ifara, fazem frente ao CV no estado.
“As facções vieram para cá por causa da fronteira. E pela facilidade de entrada e de saída do país. Temos duas fronteiras, com Peru e Bolívia. Ficam nas cidades do Acre de Cruzeiro do Sul e Brasiléia. Há vários chefes de facções que atuavam nessas duas cidades que cumprem pena aqui em Rio Branco”, explicou a juíza Luana Campos.
Do Comando Vermelho, são cerca de 900 presos no complexo penitenciário de Rio Branco. Os demais, das três facções juntas, somam cerca de 1.500. “Os integrantes que estão na rua nós não temos uma métrica de quantos são. Mas sabemos, realmente, que as facções dominam. Dominam bairros locais”, explicou a magistrada.
“Aqui em Rio Branco, por exemplo, existe o bairro Calafate, dominado pelo Comando Vermelho. O Taquari é dominado pelo Bonde dos 13. Vão dividindo as áreas. E aí, quando uma facção tenta tomar outra área, há tiroteio. Nós tivemos um episódio recente, na Sapolândia, e houve uma guerra. A facção rival acabou nem conseguindo tomar o bairro, mas houve um tiroteio grande”, exemplificou a juíza.
O promotor Bernardo Albano afirmou que, em 2013, houve a primeira operação visando desarticular uma célula do PCC no estado. Depois, surgiram operações contra as outras. “Todas elas têm características de facção que buscam domínio de rotas relacionadas a drogas. A partir do ano de 2016 e de 2017, ocorreu uma situação mais intensa. Com o racha entre CV e PCC, houve um realinhamento, como em todos os estados. Não foi diferente aqui”, disse.
O Acre registrou uma crescente no número de roubos e de assassinatos nos últimos anos. De acordo com último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2018, entre 2016 e 2017 teve um aumento de quase 40% no número de homicídios dolosos no estado. Com relação aos roubos, não é possível fazer um comparativo porque o governo não havia divulgado os números de 2016.
“Os roubos são a mando das facções. Para você ingressar numa facção aqui, você tem que cometer algum crime. Ou um homicídio ou um roubo. Qualquer facção que seja. Isso fez aumentar o número de roubos. Com base nisso, a segurança local optou por impor mais rigor nos presídios, mas isso não ajudou em nada, não, só acirrou os ânimos”, disse a juíza Luana Campos.
O secretário Ricardo Brandão rebateu a informação de que o crime está aumentando no Acre. “Se olhar o radar de homicídios, nosso estado é o terceiro em maior número de redução desse tipo de crime, com índice superior a 30% no período de janeiro a agosto, em comparação ao mesmo período do ano de 2018. Com relação aos crimes contra o patrimônio, também estamos com redução média de 20% em comparação ao mesmo período do ano passado”, afirmou.
“Há uma facilidade muito grande de deslocamento. É uma ponte. Você entra na Bolívia por uma ponte e ninguém te fiscaliza. Eu já fui várias vezes para a Bolívia, porque lá tem um centro comercial. Você entra e sai sem ninguém te fiscalizar. Além disso, os traficantes também entram e saem do Brasil pelos rios que atravessam o Acre. Por Santa Rosa do Purus, onde a Polícia Federal já pegou muita droga ali. E tem os ramais: pequenas estradas que os traficantes fazem por dentro da mata até dar acesso às BRs”, disse a magistrada.
“A polícia sempre age de forma ostensiva. Vai ao local depois que acontece. Falta um trabalho de inteligência e investigativo. A polícia sempre aponta que todo mundo é líder. Precisa investigar melhor para poder saber melhor sobre a estrutura”, complementou.
Segundo ela, a falha na investigação, além de não combater o crime organizado de forma efetiva, contribui com o encarceramento em massa, que, por sua vez, passa a oferecer mão de obra às facções.
“Quando você joga um jovem dentro de um pavilhão de Comando Vermelho, ele vai ser doutrinado. Não tem como. E a população gosta disso, isso que é lamentável. A sociedade não entende que não temos prisão perpétua no Brasil, nós temos tempo de cumprimento de pena e aquele cidadão uma hora vai sair. E vai sair sem ter sido ressocializado. Muito provavelmente, uma pessoa pior do que entrou. E volta cometendo um crime pior do que tinha cometido antes”, disse.
O secretário estadual Ricardo Brandão disse que o estado está criando o programa Acre pela Vida, “que integra um conjunto de instituições policiais e não policiais, que, por meio da transversalidade das políticas públicas, irá ampliar a capacidade preventiva e agir sobre as causas reais da violência e da criminalidade”.
Texto e fotos: UOL
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