Valterlucio Bessa Campelo
Início de governo é sempre crítico, mais ainda quando a sucessão é antagônica ao governo anterior e muito mais quando este ficou lá entronado por muitos anos. A crise se revela de muitos modos. Ela tem, principalmente, uma face política. Como formar base parlamentar sem distribuir fatias de poder, se no formato e cultura brasileira isto é quase obrigatório? Bolsonaro está ardendo na chapa quente por ter se negado a obedecer ipsis literis o modelo histórico. Em governos locais parece ainda mais difícil.
Em primeiro lugar, creio, há de se perseguir as ideias programáticas que, vitoriosas no embate político, precisam ser realizadas na prática. A população vota em pessoas, dizem alguns, mas essas pessoas possuem representação ideológica e isto conta, dizem outros. Fico com os últimos. Então, ainda que aparentemente as pessoas sejam mais visíveis, são as ideias, o rumo, o programa que ao cabo será avaliado, fazendo aí sim, as pessoas se elevarem politicamente. Ou não.
Consequência disso, surge a dura tarefa de equilibrar a distribuição de poder entre os partidos sempre atentos ao tamanho dos pedaços uns dos outros, como crianças cobiçando o bolo do colega no aniversário. Pergunta-se: É legítimo que partidos participem, mediante indicação de seus membros para cargos no governo? Penso que sim. A identidade partidária e ideológica e a própria corrida eleitoral justificam isto. Além do mais, aonde o governante, sozinho, encontraria os quadros dirigentes senão no seio da política? Os espaços meramente técnicos são diminutos e, mesmo assim, precisam ter sentido político. O técnico não é um autômato, ele pensa e age politicamente, pois do seu trabalho, pretensamente neutro, decorrem mudanças políticas importantes.
A parte mais difícil é que algumas vezes a “indicação política” não é só política, é fisiológica e patrimonialista, é desprovida de aderência com a missão do órgão e com os dirigidos, descolada das ideias, o que faz morrer a autoridade, a respeitabilidade e a liderança essenciais na boa gestão.
Esse tipo de prática foi tecnicamente superada já na primeira metade do século passado com a teoria da burocracia de Max Weber. Legalidade, formalidade, divisão do trabalho, impessoalidade, hierarquia, padronização de procedimentos, meritocracia, especialização e profissionalização passaram a embasar a administração. Não previsto, o insulamento burocrático revelou-se danoso, aí veio a governança democrática e, depois, por muitas formas e tendências, o gerencialismo, que hoje já se transforma mediante a revolução de TI. Mesmo assim, muitos princípios da burocracia são fundamentais. Infelizmente, em países e regiões atrasadas, resquícios do patrimonialismo de 100 anos atrás subsistem, havendo quem aproprie o espaço público como seu.
É preciso saber que para as ideias que presidiram o debate público e são responsáveis pela vitória, quanto mais rebaixado o nível dirigente, pior o desempenho e a sua realização. Não apenas por causa do próprio, mas sobretudo por causa do desestímulo causado pela falta de autoridade moral ou intelectual. O servidor público de modo geral amorna, se abate, se constrange, em alguns casos se revolta, quando não reconhece no seu dirigente autoridade intelectual ou moral para o cargo ou para a tarefa incumbida ao grupo. O dirigente precisa ter background mínimo, não pode apresentar-se como “indicado de fulano” e pretender apenas por isto operar transformações seguras, pertinentes, corretas, mudanças que alcancem os resultados que a população espera e paga.
Infelizmente, a abertura proporcionada pela Lei para o prestígio do notório saber, algo em tese bastante defensável, às vezes é usada de modo distorcido, e, de repente, percebe-se que tem notório ignorante na vaga. Aliás, mesmo o dirigente meritoso precisa desenvolver uma liderança capaz de emular as pessoas, de encantá-las com suas ideias, novos projetos e perspectivas, do contrário perde apoio e adesão dentro e fora da instituição que dirige.
O gestor, mesmo amparado em títulos acadêmicos e especializações, mas sem a necessária convivência em grupos diversos, livres e democráticos, arrisca dar com os diplomas n’água por falta de liderança. Aprendi que ideal é que seja ouvido em todo lugar a expressão “agora vai”. Se começarmos a ouvir nos corredores a expressão “não vai pra canto nenhum” ou “não vai dar em nada”, é quase certo que não vai mesmo.
Outro problema a observar é que a substituição de um modo de fazer as coisas implica quase sempre a substituição de quem estava fazendo, gerando compreensíveis reações nos quadros intermediários, ainda mais quando são ideologicamente aparelhados. O confronto de ideias e pessoas novas com velhas ideias e pessoas causa momentaneamente uma certa paralisia, uma mudança de marcha cuja extensão, gravidade e tempo depende de muito esforço técnico e político.
É preciso, pois, se munir de bisturi para remover focos resistentes e inserir material são, tendo sempre como base o conteúdo programático, o que presume gente capaz, gente que conheça a máquina, evitando neófitos que não conhecem sequer o botão liga-desliga. Alguém poderá dizer que estes podem aprender. Sei, mas até lá…
Boas ideias, aplaudidas, votadas e vencedoras não são executadas compulsoriamente como um mandamento encadeado até os níveis mais baixos da hierarquia. Elas precisam de planejamento, organização, controle, avaliação e direção. Dependem, por isto, de quadros intermediários preparados e engajados na realização daquelas ideias.
Então, faz melhor pelo Estado e, penso, por si próprio, o partido que ao endossar uma indicação para função pública, observe uma boa combinação entre política, técnica e probidade. Filtros que parecem óbvios, mas que vez ou outra são negligenciados, gerando resultados funestos que mesmo facilitando a tramitação de determinados temas, atuam como vetor negativo, puxando para baixo o nível da administração. Há casos recentes a apontar, de como o afrouxamento de critérios de gestão fizeram o governante “nadar de braçada” no mar parlamentar e morrer esgotado e sozinho na praia pública.
Valterlucio Bessa Campelo é Engº Agrº, Mestre em Economia Rural.