Encontrei pela primeira vez a haitiana Nadine Taleis ao visitar um abrigo improvisado para refugiados e imigrantes em Brasileia (AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia, em 2013.
Fazia dois meses que Nadine dividia com outras 1.300 pessoas aquele espaço, um ginásio com dois banheiros que comportava não mais do que 200. Amontoados em colchões cercados por um esgoto a céu aberto, eles aguardavam a documentação para viajar a outras partes do Brasil ou torciam para ser recrutados por empresários que visitavam o local atrás de trabalhadores braçais.
Franzina e cega, Nadine havia sido rejeitada em todas as seleções. Sua esperança era arranjar um emprego como massagista, ofício aprendido anos antes na República Dominicana, para onde fugiu após o terremoto em 2010 que devastou o Haiti.
Passados cinco anos de nosso encontro, Nadine, hoje com 35 anos, acaba de se formar na faculdade de Direito, foi aprovada no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), está a caminho de se naturalizar brasileira e pretende prestar concurso para juíza.
“Aquele momento no abrigo foi o segundo terremoto na minha vida”, ela recorda em entrevista à BBC News Brasil. As condições em Brasileia haviam feito o governo do Acre decretar estado de emergência.
Para estar ali, Nadine havia voado da República Dominicana para o Equador e, de lá, viajado de ônibus até a fronteira do Brasil com o Peru – rota percorrida por milhares de estrangeiros que buscavam o Brasil naqueles anos, quando a economia crescia e o futuro do país parecia mais promissor.
Ao ingressar no país, porém, chocou-se com as dificuldades impostas aos recém-chegados.
“Não pensei que situação fosse ficar tão precária no Acre. Mas aprendi muito ali, me ajudou muito a crescer.”
A sorte da haitiana começou a mudar quando um funcionário do abrigo lhe pôs em contato com parentes que viviam no Distrito Federal – onde, segundo ele, Nadine teria mais oportunidades e poderia até realizar o desejo de cursar uma faculdade.
Chamou a atenção do homem a facilidade da haitiana com línguas: além do creole e do francês, idiomas oficiais do Haiti, ela falava espanhol – idioma da República Dominicana – e tinha boas noções de inglês, que aprendera ao trabalhar num call center.
Ela aceitou a sugestão do funcionário e partiu para o Distrito Federal atrás da família. Foi tão bem recebida que logo passou a se referir a seus anfitriões, o casal Carlos e Loide Wanderley, como pai e mãe.
“Sem eles, teria sido muito difícil conquistar o que conquistei”, afirma.
Os pais biológicos da haitiana morreram quando ela era menina. Segundo Nadine, seu pai, que era político, foi assassinado por opositores. A perda fez com que a mãe ficasse deprimida e morresse menos de um ano depois.
Ela foi criada por um avô, morto em fevereiro deste ano, e hoje mantém contato com poucos parentes distantes que moram na República Dominicana.
Sem dinheiro para comer
Foi com o dinheiro que sua mãe brasileira lhe dava para comer e alugar uma quitinete que Nadine pagou as primeiras mensalidades do curso de Direito da Faculdade Mauá, na cidade-satélite de Vicente Pires.
No início, assistiu às aulas sem que os pais adotivos soubessem, pois não queria que se sentissem pressionados a ajudá-la com os custos. “Não gosto de pedir, de ser vista como coitada.”
Nadine diz que passou dias sem comer nada para economizar. Ela só enchia o estômago aos domingos, quando os pais lhe traziam comida ao buscá-la para o culto no Ministério Grão de Mostarda, igreja evangélica frequentada pela família e que ela também adotou, embora seja adventista.
Logo, porém, a direção da faculdade se impressionou com a história de vida da haitiana e resolveu lhe oferecer uma bolsa integral, além de um estágio na própria instituição.
Só então ela contou à família brasileira que estava fazendo o curso – e deixou de passar fome para cobrir as mensalidades.
Com apenas 15% da visão, Nadine gravava todas as aulas e estudava com o auxílio de um programa de computador que lia os livros para ela.
Ela diz que uma única vez sofreu racismo e xenofobia na faculdade, mas prefere não dar detalhes da ocasião porque não gosta de se “colocar como vítima” e porque o episódio teria sido um ponto fora da curva.
“Minha cor é muito bonita, mas infelizmente há pessoas que acham que negros e brancos são diferentes. Essas pessoas são doentes, elas é que são as vítimas.”
Nadine diz que sua maior dificuldade no cotidiano era realizar provas, quando dependia de colegas que lessem as perguntas.
“Se tiver uma vírgula e a pessoa não der a ênfase certa, você erra a questão.” Ela respondia as provas oralmente ou no computador.
Apesar dos desafios, foi aprovada em todas as disciplinas e começou a se preparar para o exame da OAB de junho deste ano.
Como era a primeira vez que faria o exame, sabia que havia boas chances de ser reprovada. Em 2017, um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou que 75% dos bacharéis em Direito faziam três exames até serem aprovados.
“Felizmente a banca me pôs uma pessoa que lia muito bem – ela tinha paciência, lia e relia quando eu pedia.”
Após a segunda fase, Nadine ficou tão tensa que adoeceu.
“Estava em casa, com febre, quando uma amiga me ligou: ‘Nadine, cadê o churrasco?’ Eu respondi: ‘Como assim, churrasco? Eu nem sei se passei’. E ela: ‘Você já passou, acabei de ver seu nome, parabéns!’ Foi um dos melhores dias da minha vida.”
Naquela prova, 77,3% dos candidatos foram reprovados, segundo o blog Exame da Ordem, especializado no concurso.
Registrada na OAB, Nadine está apta a exercer a advocacia no Brasil. Seus próximos objetivos são trabalhar num escritório de direito tributário e se naturalizar brasileira – direito concedido a estrangeiros que vivam no país há pelo menos quatro anos, falem português e não tenham condenações penais.
As metas indicam um desvio nos planos que Nadine tinha logo após entrar na faculdade de Direito.
Em 2015, quando voltamos a conversar para uma nova reportagem à BBC News Brasil, Nadine me disse que pretendia se tornar diplomata.
Hoje ela diz que a situação no país natal piorou tanto que perdeu a vontade de voltar. Em 2017, uma missão militar da ONU no Haiti (Minustah) chefiada pelo Brasil foi encerrada após vigorar por 13 anos.
“Mesmo na época da Minustah, os bandidos mandavam”, diz Nadine. “Agora é ainda pior, e os bandidos estão mais armados que a polícia.”
Os planos de se naturalizar brasileira e de trabalhar como advogada são condições para que ela possa alçar voos ainda mais altos.
Daqui a alguns anos, Nadine quer prestar concurso para a Advogacia-Geral da União (AGU), onde espera adquirir a experiência necessária para seu objetivo maior: tornar-se juíza.
Ela diz ter como exemplo na carreira o ex-juiz – e futuro ministro da Justiça – Sérgio Moro, que julgou boa parte das ações da Operação Lava Jato na primeira instância.
“Quando você é juiz, você não conseque satisfazer todos, mas tem de ter coragem para encarar. Sérgio Moro tem coragem”, opina.
Sobre a vitória de Jair Bolsonaro, prefere não opinar.
“Não tenho preferências políticas. Se o Bolsonaro fizer o Brasil crescer, para mim será bom.”
Nadine diz ter sido pega de surpresa pela crise econômica em que o Brasil mergulhou poucos anos após sua chegada. Ela conta que chegou a questionar a decisão de se mudar para o país.
“Acho que eu teria mais oportunidades se tivesse migrado para os Estados Unidos ou para o Canadá, mas aqui eu tenho amizades, aqui eu ganhei uma família. E isso vale mais do que qualquer coisa.”
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