Menu

Pesquisar
Close this search box.

JOSÉ MEIRELLES – O homem branco do mato

Meireles_12



Texto: DULCINÉIA AZEVEDO
Fotos: VALCEMIR MENDES


Fui ao encontro de José Carlos dos Reis Meirelles Junior, por volta das 9h da manhã da segunda quinta-feira (9) do mês de julho, depois de uma prévia conversa por telefone sobre a entrevista. O primeiro contato havia sido feito no dia anterior, quando o abordei de supetão durante uma caminhada no centro de Rio Branco.


De longe o avistei, ladeira acima na Rua Floriano Peixoto, calça jeans, camisa de algodão, mochila nas costas, passos apressados. Impossível ficar inerte e não buscar contato com o sertanista mais comentado dentro e fora do país. Até porque até então só o conhecia das muitas publicações acerca do trabalho desenvolvido por ele com os índios isolados.


Naquele momento, ficar frente a frente com Meirelles era literalmente similar a um primeiro contato com um índio isolado. Não hesitei e depois de uma rápida apresentação, solicitei a entrevista. Ele acenou positivamente e pediu que ligasse mais tarde para confirmar horário e local. Tudo acertado.


Meireles_03E lá estava eu, acompanhada do repórter fotográfico Valcemir Mendes, a caminho de uma entrevista com o famoso sertanista, o nosso homem branco do mato, que apesar de parecer arredio à primeira vista, logo iria se revelar carismático e acolhedor, mas dono de uma língua afiada e rápida como uma flecha.


O bate-papo com Meirelles aconteceu num imóvel alugado, uma espécie de casa de passagem, onde ele fica em suas raras passagens pela cidade, afinal de contas, é no mato, apesar de já está aposentado da FUNAI depois de 40 anos de trabalho continuo, que ele ainda passa a maior parte do tempo.


Apesar da casa ser de alvenaria, o ambiente lembra o campo. Um canteiro foi erguido pelo sertanista logo na entrada, onde ele cultiva condimentos como orégano, alecrim, dentre outras variedades. Uma mesa de cedro com dois bancos completam o cenário. No interior, poucos pertences, apenas o necessário à subsistência.


– Eu não tenho carro, não tenho casa, não tenho nada, eu tenho a minha mochila para viajar, uma meia dúzia de cuecas, umas três camisas, umas duas calças jeans e pronto! Eu prefiro sair para jantar com um amigo e comer uma comida de cem reais, comprar um bom livro do que comprar uma camisa de marca. Prá quê eu vou querer esse monte de coisas, onde é que eu vou botar quando eu virar paú? Não vou levar nada -, justifica.


Para quem não conhece a expressão, “paú” é um tipo de adubo natural coletado na mata, geralmente proveniente de palheiras em decomposição e que misturado a terra é muito utilizado para o cultivo de verduras, plantas e hortaliças.


E foi assim, neste ambiente familiar, entre um cigarro e outro e sob a guarda do cachorro de estimação da neta, que Meirelles nos recebeu para falar sobre o seu trabalho com os índios isolados, cujos principais pontos você acompanha a seguir.


A origem familiar


José Carlos dos Reis Meirelles Junior (1948) é natural de Santa Rita do Passa Quatro, no interior de São Paulo, onde o pai era dono de uma fazendinha e mantinha uma pequena criação de gado.


É o mais velho de quatro irmãos, motivo pelo qual se intitula a ‘’experiência’’ da família. Cresceu no meio rural e mudou para Guaratinguetá para cursar Engenharia Mecânica na Universidade, filiada à USP de São Paulo.
Meireles_04


ac24horas: Então, os índios entraram na sua vida por acaso?


Meirelles: ‘’Não foi por acaso. Cresci no meio rural, tendo contato com a mata. Gostava do assunto, lia muito. Passava as férias no mato, pescando, caçando. Até que um dia levei um tiro de um irmão sem querer, fui parar no hospital, passei dois meses pensando na vida, no final escapei do tiro e da Engenharia’’.


Ao deixar o hospital, Meirelles decide trancar o curso de Engenharia e prestar concurso para ingresso no quadro funcional da Fundação Nacional do Índio, a FUNAI.


– No terceiro ano de curso decidi deixar desse negócio de ser engenheiro e fiz o concurso da FUNAI no final da década de 70, passei e fui trabalhar no Maranhão, onde permaneci até 1976, quando vim para o Acre- ,conta.


ac24horas: Um episódio que ganhou grande repercussão na mídia, já na década de 80, foi o fato de você ter matado um índio para defender um parente. Como foi isso?


Meirelles: ‘’Foi legitima defesa, foi um acidente. Ninguém estava procurando índio nenhum, aconteceu. O engraçado é que você faz tudo certo à vida toda, ai faz uma cagada e o que fica é a cagada, todo jornalista pergunta sobre isso, é incrível, mas foi esclarecido, fiz relatório para a FUNAI e infelizmente não tinha alternativa, foi legitima defesa’’.


Aposentado da FUNAI, depois de quarenta anos convivendo com índios na Amazônia, subindo e descendo rios, pousando aqui e acolá, José Carlos Meirelles é reconhecidamente um dos maiores especialistas do Brasil em índios isolados. Não é por acaso que é a ele que o governo recorre todas as vezes que necessita de um especialista no assunto.


Meireles_05– Eu não estou mais numa idade de bater ponto. Quando tem algo prá fazer, eu faço. Viajo passo dois meses na mata, o tempo que for preciso. Se não tem diária eu vou do mesmo jeito. Isso não serve de empecilho na minha cabeça. Eu faço as coisas que eu gosto, e quando a gente faz o que gosta, não é trabalho, é diversão-, observa.


ac24horas: No início da nossa conversa você declarou que é habilitado, mas optou por não ter carro, não fica difícil viver na cidade dessa maneira?


Meirelles: ‘’Sinceramente, pra quer diabos em quero um carro em Rio Branco? Estou com mais de 60 anos, não pago ônibus, o coletivo passa praticamente na porta da minha casa, prá quer eu quero mais um filho na minha vida, IPVA, gasolina, o cacete e tal?’’


Flechado no rio Envira


O sertanista é idealizador da Frente de Proteção Etno-ambiental do rio Envira, onde atuou por mais de duas décadas a serviço da FUNAI e faz visitas constantes a serviço do governo do Acre.


E foi lá, durante uma das suas viagens pelo rio Envira, no ano de 2004, que ele foi atingido por uma flechada, que por pouco não lhe tirou a vida. E durante a nossa conversa uma revelação surpreendente:


– já sei quem me flechou, somos amigos e tudo. É integrante do grupo de índios isolados que fizemos contato no ano passado. Ele disse ‘’eu pensei que você era igual ao pessoal que estava nos matando, se soubesse que era legal, não tinha flechado’’. Na verdade eles estavam assustados pelos ataques sofridos na área deles, provavelmente por madeireiros e cocaleiros do Peru-, esclarece.


Entre a vida e a morte


O ataque a José Carlos Meirelles aconteceu num dia de domingo. A base da FUNAI estava fechada e as probabilidades de socorro eram mínimas. A cidade mais próxima era Feijó. Não existe ligação terrestre com a região. O deslocamento por água demoraria no mínimo oito dias de canoa.


– Eu estava sentado na canoa quando fui acertado. A pena na ponta da flecha é torta para assegurar que ela não mude de direção após ser lançada. Ele mirou no peito, mas prá minha sorte errou e acertou no rosto, trespassando a bochecha-, descreve.


A flecha que atingiu Meirelles estava preparada com uma substancia anticoagulante na ponta, utilizada pelos índios durante a caçada. É uma forma que eles encontram de garantir que a presa sangre até morrer, mesmo que a flecha não penetre o suficiente para matar ao primeiro contato.


– o médico que me atendeu disse ‘’que merda tinha nessa flecha que não pára de sair sangue. A minha sorte é que o atendimento foi no mesmo dia, quando o socorro chegou a minha pressão já estava em seis, ou seja, eu estava apagando, morrendo-, relembra.


Meireles_06


Operação de resgate


Por um momento, Meirelles demonstra emoção, e faz questão de registrar uma intervenção que, segundo ele, foi decisiva para salvar sua vida. ‘’O meu resgate eu devo ao Tião, se não fosse ele, eu estava morto’’, declara.


Na época do ataque, a filha de Meirelles (Paula), que também desenvolve trabalhos com indígenas, estava com ele na base do Envira e ao ficar sabendo do ataque contatou o irmão Artur que estava trabalhando no rio Javari, no Amazonas. O jovem tinha sistema de radio 24h com Tabatinga-AM e emitiu o pedido de socorro.


– O Tião à época era senador da República e estava em Rio Branco, tão logo foi avisado pelo Jorge que estava no governo, ele ligou para o ministro do Exercito e teve início a missão de resgate que saiu de Rondônia-; conta.


Não demorou muito para um helicóptero do exercito, com medico, enfermeira, plasma e tudo mais, chegar ao local onde Meirelles estava. ‘’Quando o socorro chegou eu estava com o pezinho na cova, é só isso que eu devo ao Tião, a vida, nada mais ‘’, brinca aliviado.


O senador Jorge Viana, segundo o sertanista, mantém uma ligação afetiva com a região do Envira. Chegou a passar três dias na base quando era governador e ficou muito impressionado com o que viu, tanto no tocante ao trabalho realizado como da falta de estrutura dos servidores da FUNAI.


Meireles_07Barulho positivo


Meirelles foi salvo e a flechada acabou surtindo efeito positivo. É que a FUNAI que até então fazia ouvidos moucos para a reivindicação da construção da nova base, solicitada por ele, decidiu abrir o cofre.


– A FUNAI sempre alegava falta de dinheiro. Eu aproveitei a zoada da flechada que saiu no jornal e a gente conseguiu concluir a base. Então foi uma boa flechada-. Ironiza.


ac24horas: Você se considera um cara teimoso por continuar nessa luta mesmo depois de quase ter morrido flechado?


Meirelles: Teimoso não, me considero persistente. Viver é perigoso. Toda profissão tem seus riscos. O cara que trabalha com energia está sujeito a levar um choque, quem trabalha com índios isolados pode levar uma flechada, mas isso não acontece todo dia’’.


ac24horas: No ano passado, um grupo de índios isolados fez contato com os brancos, você sabe de onde estariam vindo esses indígenas?


Meirelles: ‘’ Eu estava lá no dia do contato. Esses índios não são nem do Peru, nem do Brasil, eles estão no Brasil ou no Peru, eles são anteriores a fronteira. Eles moram na divisa do Brasil com o Peru, no paralelo 10 graus, onde estão localizadas as cabeceiras dos rios Juruá, Madeira, Purus e o Envira no meio. Todos esses rios nascem no Peru, numa mesma região, eles se juntam lá acima da base onde eu morei, é lá que os índios se esconderam para não serem dizimados’’. O isolamento é voluntário. Os indígenas ficam isolados por opção própria. Essa região fica muito distante e até 1988 não se tinha notícia da existência de branco, habitavam apenas índios isolados.


Efeitos negativos da Interoceânica


No sentir de Meirelles, a abertura da estrada Interoceânica facilitou o acesso de madeireiros e traficantes peruanos às regiões isoladas, onde antes os índios se sentiam protegidos.


– A Interoceânica é feita. Ela atravessa os rios Tahuamanu, Lãs Piedras, Los Amigos e Madre de Dios. A partir de então houve a penetração de madeireiras ilegais, porque até então eles não tinham como chegar lá. Agora tem. A partir do ano 2000, começou a descer madeira serrada pelo rio Envira. Do lado de lá tem o Parque Nacional do Alto Purus, área intangível, e até onde eu sei índio não tem motosserra nem serra para extração de mogno-. Justifica.


ac24horas: Então a rodovia Interoceânica facilitou a ocupação de empreendimentos irregulares na região antes habitada apenas por índios?


Meirelles: ‘’Os produtores de coca do Peru descobriram a America. A área dos índios isolados é intangível, ninguém vai lá, então os traficantes se sentem protegidos, e por conta disso começaram a atirar nos índios, matar os índios e tal, eles contaram para a gente’’.


Meireles_08


Os relatos do horror


As informações a que se refere Meirelles foram repassadas pelo grupo de índios isolados que fez contato no ano passado. Os relatos revelam a matança nos índios até então refugiados na fronteira do Brasil com o Peru.


– Eles contaram prá gente que os invasores já chegaram atirando. Eles correram e depois voltaram para enterrar os mortos. Era tanta gente que muitos eram enterrados na mesma cova, e mesmo assim ainda restaram corpos que acabaram sendo devorados pelos urubus-, informa.


Para Meirelles, o processo de genocídio dos índios no Brasil depois de 500 anos de colonização não mudou nada. O grupo de isolados que fez contato no interior do Acre, por exemplo, era de quase 50 pessoas e não tinha quase idosos nem mulheres, a maioria foi morta.


De acordo com o indigenista, quando Cabral chegou ao Brasil estimasse que existissem cerca de oito milhões de índios no território brasileiro, destes restou quase um milhão.


– É um processo silencioso. Você mata um índio isolado, joga dento de um buraco, quem é que vai ficar sabendo? Ele não vai lá na delegacia dizer que mataram o pai dele! Ninguém fica sabendo. Além de tudo, no Peru, ainda tem outra questão que é a exploração de petróleo em área de isolados’’, revela.


Meireles_10Quarteto do mal


José Meirelles cita o que ele considera quatro personagens muito interessantes na Amazônia peruana: madeireiro ilegal, cocaleiro, garimpo e multinacionais de petróleo.


– A Interoceânica, no final das contas, foi que patrocinou tudo isso. A minha opinião em particular é que na Amazônia, toda vez que se faz um projeto de infraestrutura, seja estrada, hidrelétrica, seja o que for, às pessoas que moram perto, ao invés de beneficiadas, viram vitimas. Esse filme eu vejo há 45 anos de andanças pela Amazônia e olha que eu já andei muito-, argumenta.


A grilagem de terra é outro grave problema. ‘’Ninguém compra terra na Amazônia, ao menos eu não conheço ninguém que comprou. O cara chega, mete a picada, grila, e já é dono. Depois de 10 anos o governo vai e regulariza. O que ele fez, matou gente, matou posseiro, matou índio, botou herbicida de avião, isso não interessa. Não estou falando que todo mundo é assim, mas é o que vem acontecendo há muito tempo e os índios que não tem nada a ver com isso ficam no meio dessa embolada’’.


ac24horas: A FUNAI, como instituição que cuida das questões indígenas em âmbito nacional, tem ajudado a encaminhá-las?


Meirelles: ‘’Essa questão ultrapassa a competência institucional da FUNAI. São coisas que têm que ser discutidas entre dois países, Brasil e Peru. Agora mesmo a FUNAI está fazendo um memorando de intenções para o Ministério da Cultura, mas essas coisas são muito complicadas, muito demoradas. Devemos discutir e planejar, mas se a discussão for muito longa, quanto acabar não tem mais índios. Resolvido o problema’’.


Política de globalização


“Mas é complicado uma instituição do governo que é a FUNAI, e todos os outros governos municipais e estaduais que se preocupam com os índios fazerem frente a política nova da globalização, ou seja, o progresso a qualquer custo. Então os culpados de tudo isso somos nós. Se você fizer uma triagem na sua casa vai percebe que 90 por cento do que tem é desnecessário’’.


Lição de índio


‘’Descobri que prá gente viver não precisa de tanta coisa. Não estou dizendo para as pessoas tirarem a roupa, os homens amarrarem o pinto e as mulheres colocarem uma tanga, e sairem por ai pelados. Não sou xiita a esse ponto, mas acho que é possível viver bem sem ter muita tralha’’.


ac24horas: Ao longo desses 45 anos andando pela Amazônia você deve ter tido muitas experiências que marcaram a sua vida? Cite algumas?


Meirelles: ‘’O que marcou a minha vida foi essa convivência que eu tive com esses povos. A gente fala muito em democracia. O que afinal é democracia? Respeitar as diferenças. Hoje você tem que ser igual a todo mundo, você não pode ser diferente. E nessa convivência de tantos anos, eles nunca quiseram que eu fosse índio. Nunca quiseram me modificar’’.


Meireles_09


Dividindo o pão


‘’Eles não são muito adiantados tecnologicamente, mas em compensação, se tem comida, todo mundo come. As mulheres não cozinham só para os maridos, elas cozinham prá todo mundo. Eu já escutei índio que foi pra cidade dizer: puxa vocês são ruins mesmo, uns comendo e outros passando fome.’’


Mensagem para o homem branco


‘’Se é que o nosso mundo civilizado está tão preocupado com a ecologia, com a sustentabilidade do planeta e com a biodiversidade, está todo mundo tão preocupado com isso, pelo menos em discurso, comece a se preocupar na pratica, em casa, consumir menos energia, gastar menos petróleo, comprar menos coisas, não ficar refém do shopping, é por ai’’.


Meireles_11PINGA FOGO


Religião


‘’Sou ateu, apesar de conviver com povos de diferentes religiões, que acreditam em muitos deuses, mas particularmente sou ateu convicto’’.


Política


‘’Costumo dizer que sou filiado ao PCdoB, Partido dos Caboclos Brabos’’.


Esportes


‘’Gosto de Futebol. Torço pelo São Paulo’’.


Morte


“Eu não digo que estou envelhecendo, estou entardecendo. Sempre brinco com os meus amigos: se um jacaré não me comer, o que vai ser uma boa morte; uma onça; um pau cair na minha cabeça, tudo bem. Viro paú por lá. Mas se enterrarem por aqui escrevam no meu epitáfio…Aqui Jaz José Carlos dos Reis Meirelles Junior muito contra a sua vontade’’ (risos)