Na verdade, esta reflexão é apenas um efeito colateral da temática. Como sabemos, Kelsen disse, de forma pessimista, derivada de seu relativismo moral, que a interpretação feita pelos juízes na sentença é um ato de vontade. Mas, qual é a consequência disso? Simples: ao fim e ao cabo, se a sentença judicial é um ato de vontade, produzindo o juiz uma norma individual, então o direito acaba sendo aquilo que os juízes dizem que é. Embora muito discutível, autores como Michel Troper chegam a dizer que, aqui, haveria um ponto de aproximação de Kelsen com o realismo jurídico. Exageros à parte, é inegável que, no resultado final de sua proposta interpretativa, Kelsen acaba por aceitar ao menos parte dessa premissa. Principalmente se tivermos em conta a obra escrita por ele nos tempos em que vivenciou diretamente a experiência do common law.[1]
Neste momento, quero ficar mesmo com a famosa frase que se ouve — e se lê — a todo momento na doutrina e na jurisprudência de Pindorama: o direito é aquilo que os tribunais dizem que é (ou o direito é aquilo que o STF diz que é). Protótipo disso é a Recl 4335-AC, em que há dois votos de ministros repetindo essa máxima, literal ou explicitamente. Poderia também trazer à baila outros acórdãos de vários tribunais da República.
Por amor ao debate, penso que devemos discutir e refletir sobre os efeitos desse enunciado (o direito é aquilo que os tribunais dizem que é). Afinal, o que é o direito? Seria ele, efetivamente, o que o Judiciário diz que é? Kelsen tinha razão ao dizer que a decisão judicial provém de um ato de vontade?
Por trás dessa famosa frase “o direito é o que os tribunais dizem que é” está o velho realismo jurídico (na verdade, não só ele, porque qualquer postura voluntarista acaba produzindo o mesmo resultado). Falemos, então, um pouquinho sobre a frase de Holmes (the law is what the courts say it is[2]). Ela deve ser contextualizada. Na verdade, cuidadosamente contextualizada. Vendo-a repetida por aí, tem-se a impressão que a postura realista de Holmes poderia proporcionar algo de novo no direito de terrae brasilis. Penso, entretanto, que isso nada tem de novo. Peço uma pequena licença para exercitar minha LEER e aqui me repetir: o realismo jurídico (escandinavo e norte-americano) foi uma reação à jurisprudência analítica, forma de positivismo exegético de um Direito produzido pelos juízes no século XIX e no início do século XX. O século XIX teve três formas de positivismo (cfe. Hermenêutica Jurídica e[m] Crise, 11ª. Ed.). Cada um deles gerou a sua antítese, por assim dizer. Holmes foi o precursor do realismo norte-americano, uma forma de antítese a uma das formas de positivismo. E disse o que disse ainda no século XIX.
Interessa-me, apenas — mas, sobretudo — mostrar que a postura realista, nos moldes propagados por Holmes, foi um modo de superar a forma dedutiva de aplicação dos precedentes no common law, que, para usar uma linguagem simples, era tão “dura” quanto o positivismo francês. Logo, ao invés de o juiz ficar vinculado automaticamente aos precedentes, com o realismo jurídico a validade do direito foi transferida para a decisão, ou seja, criou-se uma nova forma de positivismo, o “fático”. Apenas inverteu-se a “pirâmide”: da dedução para a indução. Pode-se chamar a isso também de sociologismo jurídico (no velho direito alternativo também tratava o tema desse modo).
Mas, então, se isso que falei acima tem algum sentido — e penso que tem — qual é a razão pela qual se continua por aqui a sustentar tais teses alienígenas de forma descontextualizada? Essa é que deve ser a indagação dos juristas brasileiros. Não se trata de implicância teórica minha. Trata-se, sim, de discutir as tão importantes condições pelas quais são construídos os discursos de validade do Direito.
Há várias razões para que nos preocupemos. Por exemplo, por trás dessa tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é está um livre-atribuir-de-sentido, que aproxima esse tardio realismo à Escola de Direito Livre e seus sucedâneos (sociologistas, voluntaristas, etc). Sim, isso deve ser dito. E devemos debater isso.
De minha parte, não concordo com a tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é. Fosse isso verdadeiro, não precisaríamos estudar e nem escrever. O direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador (e tampouco na vontade coletiva de um tribunal).
Por tudo isso, a doutrina brasileira deveria estar (mais) atenta. Sejamos claros. Se é verdade que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é e se é verdade que os juízes possuem livre apreciação da prova (sic) ou “livre convencimento” (sic), então para que serve a doutrina? Ela só serve para “copiar” ementas e reproduzir alguns “obter dictum”? Para que serve o “bordão” da “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”?
Pensar que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é constitui uma carta branca ao judiciário. Pensar assim é o mesmo que apostar em uma espécie de “hermenêutica de resultados”, algo do tipo “decido-e-depois-busco-o-fundamento”. É claro que isso pode, por vezes, dar resultados. Afinal, um relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia. O grande problema é que ficamos na dependência não de uma estrutura jurídica de pensamento apta a fornecer sustentáculos à construção de decisões adequadas, mas, sim, de posturas individualistas (ou, se quiserem, solipsistas, para usar uma palavra chata).
Numa palavra: penso que o debate sobre os diferentes modelos de interpretação e de decisão é absolutamente necessário. A questão é sabermos que tipo de direito queremos para o futuro do Brasil. Você gosta de chegar no tribunal e ouvir o funcionário dizer que o processo já está julgado uma semana antes ou dias antes e que a sessão pública é uma espécie de simulacro? Ou gosta de ouvir do julgador algo como “não adianta nada o seu memorial; não mudarei de ideia; tenho a minha convicção pessoal sobre esse assunto”…
Nossa formação jurídica, nosso ensino, nossas práticas, encontram-se arraigadas a um paradigma filosófico ultrapassado. Sei que é difícil — e até antipático — dizer isso, mas falta filosofia. Falta compreensão. Nosso imaginário jurídico está mergulhado na filosofia da consciência (na verdade, na sua vulgata). Nele, cada juiz é o “proprietário dos sentidos”. É um equívoco dizer que sentença vem de sentire. Essa é uma das grandes falácias construídas no Direito.
O direito depende de uma estrutura, de uma intersubjetividade, de padrões interpretativos e não da “vontade”. Por isso, vai aqui a minha contestação à frase famosa de Holmes! De Holmes para cá, já se passaram mais de 100 anos…
Li dia desses uma pesquisa feita no judiciário do Paraná, onde um desembargador disse que não dá para esperar que o juiz se separe de seus conceitos políticos e religiosos, etc. Fiquei pensando: como assim, Excelência? Quer dizer que a causa do cidadão depende do que o juiz pensa sobre o direito? Minha LEER me insta a dizer de novo que: a) juiz tem responsabilidade política; b) ele decide e não escolhe;[3] c) a consciência do juiz não é um ponto cego ou isolado da cultura. Portanto, a frase do desembargador paranaense tem um problema: Ninguém nessa altura do campeonato acha que o juiz é uma alface ou que esteja amarrado aos textos como no iluminismo. Desde há muito que a hermenêutica superou isso, na medida em que a carga de pré-conceitos não é um mal em si, mas é uma aliada. Interpretar não é atribuir sentidos de forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição, que depende da suspensão dos pré-conceitos. Se o juiz não consegue fazer isso, não pode e não deve ser juiz. São os dois corpos do rei, como diria Kantorowicz. As decisões devem obedecer a integridade e a coerência do Direito.
Numa palavra: os dois modos de ver tudo isso
Claro que há dois modos de ver tudo isso: há o ponto de vista interno, do participante, e o ponto de vista externo, do observador. Do ponto de vista endógeno, alguém pode dizer: bobagem isso tudo; isso é assim mesmo; não há o que fazer. Mas, do ponto de vista externo, há o compromisso científico em dizer que “isso não deve ser assim”. O direito não é o que o judiciário diz que é. Se não for por outro motivo, o jurista deve pensar de forma utilitarista: para a sobrevivência do direito e dele mesmo, o direito não pode ser o que o judiciário diz que é. Há mais gente produzindo o direito. Até mesmo o legislador produz direito, se me entendem a fina ironia.
Post scriptum: Afinal, juízes (não) são deuses?
Tudo o que escrevi acima tem a ver com a discussão sobre “se juízes são deuses” (sic). Já se diz por aí que “não, juízes não são deuses”. Portanto, acrescento eu: então, no princípio… não é(ra) o verbo judicial. Bingo. E aleluia, irmãos! Consequentemente, o direito não é o que os tribunais dizem que é. Então minha coluna está coberta de razão. Meu Amigo Néviton Guedes (ler aqui) — com muito mais contundência que eu — diz que “é óbvio que juiz não é Deus”. Mas, indago com meus botões não-divinos: se é (tão) óbvio, por que precisa dizer a todo momento isso? Parece meio freudiano isso. Tem um amigo meu que é juiz e a todo momento diz: “— sou uma pessoa normal, como qualquer outra”. Até já escalei um estagiário para andar ao seu lado para dizer: “— é isso mesmo, Excelência”, tal qual um escravo que andava ao lado dos Césares, quando, depois das batalhas, voltavam e eram saudados como deuses, sendo a tarefa do fâmulo a de dizer, ao pé do ouvido: “— lembra-te que és mortal”. Bem assim. Penso que meu outro amigo, o leitor Sérgio Niemeyer, fez uma excelente apreciação (no bojo da coluna do Néviton) dessa espécie de “ato falho” quando se “confirma”-que-juiz-não-é- deus”.
De minha parte, fazendo uma brincadeira com um famoso quadro de René Magritte (ver aqui), em que, embora retrate fielmente um cachimbo, o enunciado abaixo diz: Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), permito-me dizer para os meus leitores: Juge n’est pas Dieu. Quer dizer: é, mas não é; ou não é, mas é. Ou, mesmo dizendo que não é… lá no fundinho, sabe como é… vá que Deus exista e tenha delegado parte de sua função. Com efeito. Nestes tempos bicudos, o juiz vem sendo alçado a um protagonismo maior do que aquele que bradava Büllow frente ao Imperador no século XIX; então, quando chegam pedidos ao judiciário “tipo multiplicação dos pães e peixes” (a frase é do desembargador Néviton) e pretendentes a aposentadoria rural que não diferenciam um bovino de um equino (conforme bem denuncia o mesmo Néviton), minha pergunta é: por que os juízes não dizem simplesmente não a isso? Afinal, só quem multiplica pão e peixe[4] é Deus (ou seu filho, que, afinal, também é Deus), se me entendem a ironia. De todo modo, essa controvérsia sobre a “divindade do juiz” (sic) já está ficando deveras chata. Ah: no tempo do regime militar, antes das eleições sempre aparecia alguma autoridade para dizer que “a posse dos vencedores estava garantida”. Pois é. Mas, se estava mesmo, por que precisava dizer? Eu e meus amigos do diretório acadêmico dizíamos: “— hum, aí tem coisa. Se eles estão dizendo é porque…”. Dizendo de outro modo e bem simplesinho: se juiz não é deus, por que precisamos dizer que não é?
Falta só aparecer no twitter a seguinte “rechtegui”: #juiz não é Deus. Ou em francês, mais chique! # Juge n’est pas Dieu!
[1] Refiro-me ao livro Teoria Geral do Direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Por certo, não seria possível aproximar Kelsen do realismo jurídico se tivéssemos como horizonte o problema do método de investigação do direito sugerido por cada uma dessas vertentes teóricas. Certamente, Kelsen acharia o método do realismo naturalista demais; sociologista demais; pouco adequado para os propósitos do seu normativismo. Porém, quando o jusfilósofo procura descrever o modo como o ordenamento funciona em sua estrutura dinâmica, ele acaba por aceitar, em alguns aspectos, teses que possuem alguma vinculação com o realismo jurídico. Exemplo típico seria o caso em que ele aceita uma decisão judicial tomada sem amparo em nenhuma norma geral anterior mas que se encontre já imunizada pela coisa julgada. Para Kelsen, esse caso já não seria uma problema ou, nos suas palavras, “passa a não ter importância jurídica” (Teoria Geral do Direito e do Estado. op., cit., p. 224). Mais adiante, contudo, apresenta ele a seguinte ressalva: “mas esse fato não justifica a suposição de que não existem normas jurídicas gerais determinando as decisões dos tribunais, de que o Direito consiste apenas em decisões de tribunal”. De todo modo, é importante frisar que, ao mesmo tempo em que Kelsen rechaça a tese de que o Direito não pode ser descrito apenas como o resultado de decisões dos tribunais, ele afirma que, entre a norma geral a ser aplicada e a norma individual a ser criada pela sentença, existe um espaço semântico a ser preenchido pela discricionariedade do órgão aplicador. Aqui está o ovo da serpente! A disputa conceitual, sobre ser ou não o direito “apenas aquilo que os tribunais dizem que é” acaba sendo, ao final, uma questão menor.
[2] “One Nation Indivisible, With Liberty And Justice For All”: Lessons From The American Experience For New Democracies. WALD, Patricia M., Fordham Law Review, Volume 59; Issue 2; Article 3.
[3] Antes que alguém venha de novo com a ladainha de que “ele critica, mas não apresenta soluções”, sugiro a leitura no mínimo do capitulo 6º. Do livro Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, RT, 2014.
[4] Já o dinheiro da Viúva para pagar as aposentadorias rurais e outras tantas despesas decorrentes de decisões judiciais é impossível de ser multiplicado como na parábola da multiplicação dos peixes e dos pães.
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