Na festa de quatorze anos, no dia sete de outubro, Maria Esperança daria o presente que Alexandre sempre queria: uma coleção de romances de Conan Doyle.
Deixou a lembrança para a semana seguinte, pois não tinha condições psicológicas para celebrar o aniversario do filho, no mesmo instante em que, no branco e frio hospital, tratava de algo terrível para sua vida.
Separada fazia alguns anos, a vendedora de ilusões não se apegou a choros e remorsos ao seu ex-marido. Um casamento que já tinha dado tudo o que tinha de dar, durante seu tempo, não trouxe maiores lamentos a ela. Maria Esperança era bem resolvida nesses assuntos e, quando soube que Fernando frequentava a cama de outras, deu-lhe dois dias para fazer uma curta decisão: ele ou ela saia da casa que tinham se estragado para construir.
Saiu o farmacêutico. Deixou umas roupas velhas perdidas no quarto, uma pensão para terminar de criar o filho único e um cheiro que demorou algumas faxinas para ser tirado de um lar que um dia fingia ser doce.
Depois da separação, Alexandre sofreu muito, sentia um aperto forte no peito, toda vez que sentava para o almoço e não via aquela figura, reclamando do salário que recebia. Aos ouvidos do filho chegavam apenas os murmúrios relativos à dificuldade da vida de uma mãe solteira e dos avisos para que ele fosse diferente do pai.
É verdade que no começo não tinha sido fácil para a recém-separada. Nos primeiros dias, a cama pareceu maior que o normal. Aquela mania de abraçar o marido lá pelas três da manha fora substituída pelo aperto forte ao travesseiro e pelo tatear de uma mão sozinha pela área lisa do lençol azul.
Nas noites que não se encontrava com “hipnos”, era preciso chamar seu filho para dormirem juntos. Uma longa conversa entre os dois dava provas de que, além da mágoa que era grande, havia também o medo do estar sozinha.
Isso demorou apenas alguns meses. Maria Esperança se deu conta de que alguém a prestigiava em seu trabalho. Começou com o convite para dispensar o ônibus para casa, depois uma pizza no sábado e em sequência uma festa da prima do seu novo namorado.
Duas semanas depois, Alexandre já não precisava mais deixar suas leituras de Conan Doyle, para ter que ficar ouvindo a mãe contar casos lascivos do pai. Maria Esperança tinha agora um peito forte para descansar a cabeça, uma boca masculina para beijar, toda vez que confirmasse alguma coisa, e um corpo suficiente e atrativo para seus reclames de mulher.
A empolgação dos primeiros momentos fez com que Maria Esperança, sem perceber, deixasse o filho para segundo plano. Fato forte, pois, depois de saber da mãe o que o pai fora e fizera, o filho solitário nunca mais lhe remeteu a palavra.
Agora Alexandre estava completamente só. Numa casa de duas pessoas, a mãe era tudo para e pelo namorado. Experiente e sensata, sabia que era preciso cativá-lo. Do falido casamento, a insegura mulher trazia a perfeita certeza do que não deveria fazer nesse novo romance.
Alexandre, no começo, achou até bom a nova experiência porque a mãe passava. Mas com os dias, aquela companhia na cama, aquelas conversas, aquele abraço de mãe e um toque acidental dela em suas pernas, quando dormia, começaram a fazer falta. Suas noites não eram mais as mesmas. Sentia saudade daqueles dedos leves peteando seus cabelos, enquanto o polegar roçava-lhe a orelha carinhosamente.
Nascia a convicção de que aquilo deveria voltar. O que estava nascendo entre sua mãe e o outro tinha de terminar, já que tinha lhe tirado de boas e estranhas sensações. Em seu amor confuso, nas fronteiras indefinidas do amor materno e da sedução feminina, o rapaz pretendeu agir.
A empolgação dos primeiros momentos fez com que Maria Esperança, propositalmente, desse mostra de que estava feliz. Se há algo que o bicho homem odeia é ver aquela que um dia estava em sua vida bem melhor agora, fazendo parte da vida de outro.
Fernando era somente fúria. O dicionário do “Aurélio” atualizado não possuía todas as palavras vulgares que ele pretendia usar para sua ex-mulher. Certa vez, no Parque da Maternidade, ao ver Maria Esperança aos beijos, de mãos dadas, sorrindo e tirando pequenas coisinhas do rosto de seu namorado, ou apontando para um pássaro que se exibia numa galho de uma pequena árvore, o ex-marido pensou: “como não tinha percebido que ela gostava do chefe do setor em que trabalhava. Deve fazer muito tempo que eu era traído. Como pude viver com uma mulher que fazia as mesmas coisas que eu? E eu a pensar que era único e maravilhoso? Meu Deus como dói o preço da prepotência! Como dói o enganoso sabor de achar que tudo e todos são por mim”!
Todas as mulheres que passaram em sua vida não foram capazes de apagar as inquietações e curiosidades que tinha sobre a intimidade da Ex. Desmanchava-se em imaginar que, agora, Maria Esperança tinha mais e melhor que antes.
O trabalho na farmácia ficou azedo. Não atendia mais seus clientes com aquela educação falsa de comerciante da saúde, urubu das moléstias e chagas. Afora o dinheiro que traziam com suas doenças e males idiotas, desejava, no fundo que todos morressem. Morte! Palavra que passou a frequentar o imaginário do falso traído. Em seu ódio confuso, nas fronteiras indefinidas da reprovável sensação de posse e da perda da convivência que tinha com ela, o ex-marido pretendeu agir.
No aniversário de Alexandre, em sete de outubro, Maria Esperança resolveu fazer um almoço para as suas duas joias. Foi ao mercado, escolheu produtos, comprou uma série de sabores clássicos e cozinhou como há tempos não fazia.
Na hora de apreciarem os eventos culinários, Alexandre decidiu não sair do quarto. Mordeu-se em seus ciúmes, disfarçados na alegação de uma repentina e estranha indisposição. Segundo ele, sentia dores e males que o faziam se desviar de qualquer ato que desse trabalho aos dentes. Precisava pensar.
Na mesa, com aquela variedade de comida e pratos, apenas Maria Esperança e Bocage. Em nenhum momento, o namorado dela imaginou que a renúncia do filho tinha a ver com sua presença. Não passou pela sua cabeça que ele, em sua indiferença rarefeita, era desenhado mortalmente como uma águia no ninho de uma lebre.
Iniciava o almoço, e uma campanha toca lá fora. Era Fernando que trazia o presente do filho. Trazia uma sacola grande e uma cara de que não tinha gostado de ver um outro homem na cadeira que antes assistia ao futebol quarta à noite.
Naquela manhã, após fechar a farmácia para o público e mandar os funcionários a irem para suas casas, avisou-lhes que gostaria de ficar sozinho. Precisava pensar.
– Filho, tá melhor? Abre! Teu pai te mandou um presente.
– Deixa no sofá, mãe. Quero ficar sozinho. Ficarei bem. Preciso descansar. À noite tem a festa de meu aniversário. Mas pode abrir. O que foi que ele trouxe?
– Vou ver… bom aqui tem um tênis bem bonito, uma camisa azul e um…. “pera aí”… uma embalagem com…. um doce…. é um sonho.
– Sonho?
– Sim filho, teu pai tá ficando doido. Ele sabe que você puxou a mim. Ele sabe que odiamos sonho. Vomito as tripas se ao menos por isso na boca.
A surpresa fez com que Alexandre abrisse a porta, pegasse seus presentes e, depois de vinte minutos, chegasse até sua mãe e dissesse alguns pedidos.
– Joga fora mãe. Isso não é pra nós. Pode ter vindo por engano. Você e eu nunca comeríamos isso. Ele sabe disso.
– Não meu filho, você sabe que nunca gostei de estragar alimento. Perguntarei se o Bocage gosta. Ele pode evitar um estrago dessa natureza.
– Ok!
-Melhoras filho. À noite teremos uma grande festa.
Na festa de quatorze anos que seria realizada à noite, Maria Esperança daria o presente que Alexandre sempre queria: uma coleção de romances de Conan Doyle.
Deixou a lembrança para a semana seguinte, pois não tinha condições psicológicas para celebrar o aniversario do filho, no mesmo instante em que, no hospital, tratava de algo terrível para sua vida. Era demais para ela imaginar o cenário fúnebre que ocorreria 21 dias depois. Desesperada, amargava a sensação de realizar os preparativos para o velório de seu primeiro namorado, Bocage.
Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA f-r-p@bol.com.br
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