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Mucuras de palitó

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Seu Lázaro finalmente desvendou o mistério que estava deixando todos encucados.  Eram mucuras que aterrorizavam os galinheiros da comunidade do Belo Jardim que vive do outro lado do Igarapé Judia.


A noite passada tinha sido de perdas irreparáveis: nove ovos, seis pintos e quatro frangos, que já ensaiavam os primeiros cacarejos, foram capturados pelos marsupiais assassinos, deixando a estimada criação ainda menor. Em suave mudança ambiental, pouco a pouco, o capim do quintal ganhava força, devido à ausência de bicos a romper-lhe do solo amiúde.

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Pela manhã, o vizinho veio lamentar o fato ocorrido na casa de seu Lázaro e comunicar-lhe que, além dele, o Compadre Oliveira, Seu Zé do Carvão, o Padeiro, o Benedito e outros tantos, também foram vítimas do mesmo tipo de furto.


Estes, diferente daquele, imaginavam que a falta de suas galinhas se devia a algum “abençoado” do bairro que teimava a frequentar os seus galinheiros, no intuito de buscar, nele, elementos que lhe garantissem a continuidade de algum vício.


Um bairro que surgiu sem qualquer planejamento prévio, atolado em problemas de saneamento básico e infraestrutura, natural que acolhesse uma leva considerável de desordeiros. Aproveitando o descaso e o abandono das autoridades públicas, os malfeitores viam, naquela imensidão amazônica, um ótimo refúgio para suas práticas delituosas, fortalezas intransponíveis que lhes asseguram o crime.


Ninguém conhece o Belo Jardim todo. Uma divisão boba o torna em três apenas para esconder a ideia clara de uma vastidão verde, cuja mata sempre busca resistir ao povoamento desordenado de milhares de pessoas carentes que chegam todos os dias de vários pontos do Acre.


Esquecidos e desprezados, essa massa de miséria se une friamente com algumas luxuosas chácaras de pessoas que vestem caminhonetes traçadas e têm discretos programas sociais e churrasco de fim de semana.


Já anoitecia quando todos da região tomavam um café na casa de Seu Lázaro, esperando formar quórum suficiente para debater quais os procedimentos a serem tomados, a fim de eliminar aquele mal, destruidor de uma atividade que, para alguns, era a razão da própria sobrevivência. Devido aos furtos, por exemplo, Benedito não pode trocar os dentes esse mês. Iria continuar rindo com o auxilio de uma mão sobre a boca.


Mais de trinta pessoas estavam na frente da casa do líder, comentando as perdas e os prejuízos advindos das cruéis mucuras. Alguns mais exagerados até relatavam cenas de heroicas lutas travadas por seus valentes galos contra as feras noturnas, mártires imortais que jamais poderiam ser esquecidos. Outros recém-convertidos a uma pequena igreja aberta na comunidade acreditavam que isso era sinal do fim dos tempos e que o maligno certamente tinha participação no evento.


A reunião surtiu efeito. Lázaro orientou, dividiu, aconselhou e deu dicas para o que deveria ser feito. Os galinheiros teriam sua segurança reforçada, os cachorros dormiriam próximos e estava estabelecido que todos buscariam a cama somente depois de uma da manhã. Era uma forma de diminuir o tempo de ação dos ladrões feios e fedorentos.


A engenharia ficava por conta daqueles que sabiam manejar bem o serrote. As madeiras necessárias seriam retiradas das propriedades de quem as tivessem e todos ajudariam no carregamento e no transporte. Por sorteio, apenas uma casa manteria o galinheiro nas atuais condições. Isso porque imaginavam que poderiam reunir em um só lugar a marcha de mucura e, assim, poder abatê-las sem piedade ou receios.


Materializado o plano, pela manhã, no quintal de Seu Oliveira, mais de quinze mucuras, estiradas mortas no chão, serviam de exibição para a comunidade, plenamente satisfeita com o desfecho do drama. As primeiras moscas já começavam a pousar nas carcaças, quando os participantes foram alertados do grande almoço que iria acontecer na casa de seu Lázaro.

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A festa entrou pela noite. Às dez horas, a maioria já estava bêbada e sorridente. Ao som de Amado Batista e afins dançavam celebrando a doce vitória. Lá pelas duas da manhã decidiram encerrar os festejos. Estavam todos simpáticos demais e as primeiras brigas já tinham sido apartadas, pois alguns sem freios na língua começaram a revelar segredos íntimos da comunidade.


Era início de janeiro. Mais uma vez o Belo Jardim iria mergulhar no profundo abismo de ruas lamacentas, poços e charcos impenetráveis. Distantes de quaisquer indícios de asfaltos ou ruas atijoladas, os moradores isolados precisavam de bons motivos para deixar suas casas nesse longo período de inverno.


Na mente de Lázaro uma ideia lhe fez pensar bastante: porque não aproveitavam a força, mostrada na solução do problema com as mucuras, para reivindicar melhorias para o bairro? Com o empenho similar, poderiam parar a cidade em protestos e manifestações. O bairro seria lembrado, seus problemas solucionados e seu povo assistido.


Convicto do que fazer, Lázaro convidou todos para uma reunião em sua casa. Um assunto muito importante deveria ser tratado. Ninguém poderia faltar.


Diante de mais de cem pessoas, Lázaro estava irreconhecível. Discursava como o orador Demóstenes, fazendo chorar corações e empurrando para o combate uma multidão de esquecidos. Combinaram ocupar, na próxima segunda feira, a Rua Rui Barbosa em frente à Prefeitura, no intuito de mostrar toda a humilhação, abandono e descaso do poder público para com aqueles moradores.


No dia acordado, apenas três pessoas estavam lá. Lázaro, Seu Oliveira e Zé do carvão.


O primeiro tinha chegado cedo, pensado os procedimentos e avaliado que o quartel da polícia era muito próximo do que iria acontecer. Temeu por alguns dos seus que se mostrassem mais exaltados.


O segundo não iria demorar muito ali. Justificou que precisava receber as migalhas de sua aposentadoria e reclamava de uma dor incômoda no “espinhaço” e nos “quartos”.


O terceiro tinha vindo pagar uma conta e aproveitou o caixa eletrônico dentro da prefeitura para realizar a operação. Vendo o fracasso do movimento, resolveu voltar para casa antes que chegasse mais gente.


Todos os faltosos imaginavam que não tinham forças, nem jeito para agir em questões como aquela.


Os recém-convertidos à igreja pentecostal da comunidade foram orientados a não se meter com esse tipo de coisa. Nas vozes de seu mestre maior, o pastor repetia a frase que os havia desestimulado: “meu reino não é desse mundo”.


Os outros, ausentes ao protesto, sentiram que políticos eram personagens distantes de sua vida normal. Em suas casas, felizes pela morte dos bichos que matavam suas preciosas galinhas, sabiam que não era bom bulir com algumas espécies de mucuras. Poderiam ser piores e mais fedorentas que as que atacavam seus galinheiros.


Não estavam totalmente errados.


FRANCISCO RODRIGUES   –   f-r-p@bol.com.br


 


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