Everaldo voltava para casa lá pelas seis e meia da tarde. Morador do final do Taquari, o pedreiro conduzia sua bicicleta de forma cuidadosa, pois sabia que a rua principal do bairro, além de cheia de buracos, recebe motoristas mal educados, sem qualquer preocupação com aqueles que estão nas paralelas da Baguari.
Chovia. Chovia aquele sereno continuo e gradual, incapaz de molhar por completo, tornando a rota melada e levemente perigosa.
Perto a uma escola municipal, uma mercearia que invadia o meio fio, a julgar pelos materiais espalhados na rua, realizava obras de ampliação em suas dependências. Particularizando o que é de todos, areia, barro e restos de madeiras diminuíam ainda mais o espaço da Baguari.
Vinha seu Everaldo com toda atenção do mundo, quando uma motocicleta, insatisfeita com a lentidão de um caminhão pipa, ultrapassa pela esquerda e não consegue desviar do corpo do pedreiro que, uniformemente, cai no chão próximo às ripas e ferros, resíduos da construção que ocorria.
O motoqueiro muito pouco sofreu do merecido, mas o ciclista dava ideias que não tinha ficado bem. Desmaiado na lama, Everaldo tinha um corte imenso na perna esquerda, raladuras profundas no peito e a cabeça jorrando sangue, com a mesma força da água dos gêiseres da Nova Zelândia.
Cinco marchas e alguns instantes deixaram o motoqueiro já próximo à rotatória da Arena, virando para a Amadeu Barbosa, nem se lembrando do estrago que acabara de cometer.
Quem ouviu o barulho correu para ver o que acontecia. O sangue denso, misturando-se com água suja, dava à cena um feitio que atraia quem adorava presenciar desgraça. O chuvisco fino não impediu que crianças, velhos e desocupados realizasse para seu Everaldo uma sinistra ciranda.
Depois de três horas chegava a ambulância com profissionais que se perguntavam por que um acidente desse acontecia logo naquela hora chuvosa. A enfermeira tinha feito o cabelo um dia antes e o auxiliar dela tinha um encontro mais tarde com a recepcionista do hospital.
Uma hora depois, sem sua carteira que continha cem reais, sem sua sandália havaiana e sem seu relógio, comprado de um marreteiro perto do Colégio Acreano, um tal de Everaldo se encontrava pelos corredores do Pronto Socorro, esperando pelo médico que tinha ido fazer um lanchinho com suas auxiliares. A moça da limpeza não se conformava com isso. Tinha acabado de limpar aquela área, teria de fazer tudo de novo outra vez.
Quando o médico chegou, atento e preocupado com o que acontecia, encaminhou o moribundo ao necrotério, para que os atos ordinários fossem feitos. A família, lá fora, tinha sido informada que todos os procedimentos foram realizados, que tinham tentado reanimá-lo várias vezes, mas que o acidente tinha sido muito grave, fazendo com que o paciente não resistisse. Dado a triste notícia, os funcionários do hospital voltaram a jogar “Paciência” no computador.
Sem poder arcar com o sepulcro, a família recebeu de um assessor de um vereador, um caixão de compensado e uns santinhos, caso viesse esquecer-se do nome daquele bom parlamentar.
Na sala da casa pobre e rala do defunto, tendo à frente um pano azul arranhado pelo tempo, a micro cerimônia ocorria sem grandes surpresas. Ao redor do corpo dele, algumas flores tiradas pela vizinha de seu feio jardim davam um ar mais bonito ao velório. Um chá de cidreira, numa panela sem cabo, estava sendo servido para os participantes fúnebres.
Dos três ou quatro que dividiam o choro e os lamentos tímidos, estava Seu Lourival, informando falsamente a viúva, em cochichos, alguns detalhes de sua presença: Everaldo devia cento e cinquenta reais de fiado em seu comércio.
Como é de acontecer com quem pouco na vida tem, o pedreiro fora enterrado em uma vala comum de anônimos que necessitavam ter, mesmo na morte, uma maior confraternização. “Defuntos pobres de toda a Rio Branco, uni-vos’.
Mas se Everaldo fosse rico.
Imediatamente após o acidente, em menos de vinte minutos, o Doutor Everaldo estaria numa clínica particular, esperando uma UTI aérea que aquecia os motores no aeroporto, a fim de levá-lo a um hospital mais bem preparado em Brasília ou São Paulo.
Os jornais interromperiam a programação para noticiar o fato que comoveria a cidade. Nos cultos e outas reuniões religiosas, o terrível e lamentável incidente já teria sido revelado e, em vozes lacrimosas, os líderes pediriam para que os fieis orassem por aquele bom homem.
No face book a noticia já estaria no mural de quase todo mundo. Alguns com frases melancólicas e esperançosas: “estamos orando”, “torcemos por você, meu grande amigo”, “tudo irá dar certo, confie em Deus, Deus sabe o que faz”.
Os mais próximos resolveriam acompanhar, em vigília, as tomadas sucessivas dos plantões televisivos, informando a cada 20 minutos o estado de saúde do Doutor Everaldo. A jornalista sempre com otimismo e aquela cara de pesar, diziam que a equipe médica não mediria esforços para controlar o inchaço no cérebro do paciente, para que depois pudessem realizar as cirurgias necessárias.
Dois meses depois, o Doutor Everaldo estaria na televisão agradecendo a Deus e aos amigos pelas orações que ajudaram a salvar sua vida. Ainda não estava completamente curado, mas dizia que técnicas avançadas de medicina estavam sendo testadas em Israel e, com a progressiva melhora, estaria se dirigindo a esse país.
Um ano depois, doutor Everaldo estaria no parque de diversões com os netinhos, comprando doces e brincando nos aparelhos infantis. O vovô era só ternura com as criancinhas. Dava-lhes CARINHO, ATENÇÃO E AMOR. Necessidades básicas de qualquer ser humano. Independentemente de ter ou não dinheiro. Independentemente de morar ou não no Taquari.
FRANCISCO RODRIGUES f-r-p@bol.com.br
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