– Amor, você não acha estranho o comportamento de Ricardo?
– Estranho, se brincasse de boneca! Não me venha com suas besteiras hoje!
– Mas ele destrói todos os seus brinquedos e além do mais….
– Para Fátima! Os brinquedos são dele. Tu só tens de deixar de ser besta e parar de comprar. Quero ver se ele vai continuar fazendo isso, quando não tiver mais nenhum.
– Mas ele não tem mais nenhum!
– Tá, tá, tá… então para com essa ladainha, que pra mim tu tá buscando calo em gota de óleo.
Não era por acaso que o nome dele era Virgulino. Era mais fácil vergar o gelo, dobrar o vento ou amarrar a água, do que mudar uma opinião dele. Suas convicções eram tão rígidas quanto seus ossos. Quebrá-las doía tanto quanto parti-los. A teimosia era de família. Na genealogia da pirraça, poderia se encontrar explicações para tamanho aferro.
O batismo se deu por que o pai, vislumbrado com as peripécias do rei do cangaço, fora um amante sagaz da literatura de cordel nordestino, comum até os anos 70.
Com a massificação da televisão, esse tipo de entretenimento foi perdendo paulatinamente espaço. O advento do computador e seus desdobramentos virtuais puseram a última pá de barro no caixão daqueles livrinhos preto e branco com desenhos multiangular. Só os nossos avós ainda se lembram disso!
Já com idade avançada, naquela fase de passar o dia quase todo se embalando na varanda, só falando da vida dos outros, enquanto espera o câncer chegar, antes mesmo de nascer, Seu Virgulino, tinha publicado para o mundo familiar que o seu último filho seria político. Era um sonho antigo, decorrente da insatisfação de ter dois outros filhos perdidos nessas “fuleragens” de arquitetura e psicologia.
A pressão era extrema! Diariamente o rapaz carregava o mundo nas costas. Brincar na rua, nem pensar. Jogar futebol por horas a fio, nunca. Aproveitar a adolescência com práticas tolas e equivocadas, não tinha direito. A vida dele se orientou para o desejo do pai.
Ricardo teve as melhores escolas, professor particular, material de apoio e o ambiente adequado para que pudesse realizar o sonho alheio. A voz do menino tinha de vestir sempre palavras difíceis que lhe demonstrasse afinidade com o mundo das oratórias e dos códigos. A postura perseguida pelo pai em carões e demorados sermões era a de um velho de sua idade.
Nessa maratona de conceitos e admoestações, tudo correria bem, se a vontade do patriarca fosse acorde com os desideratos do filho. Mas isso não aconteceu!
Com 18 anos, Ricardo pensou e disse: quero ser cabeleireiro, versar-me na moda, atingir o nível dos grandes mestres dessa arte. As tesouras realizariam seu sonho. Giletes e fofocas quentes me darão a chance de realizar o que sempre busquei.
Nada de Voltaire, nada de Cesare Beccaria, nem pensar em Locke ou Rousseau, o filho caçula tinha como ídolos Marco Antonio de Biaggi, Wanderley Nunes, Nilton Tampa e outros que fazem dos cabelos o caminho certo do seu ganha pão e prestígio.
Seu Virgulino morreu antes do filho fazer o curso no SENAC. Levou para o além um desgosto tão profundo que ninguém nunca entenderia o amargo de sua frase usada, toda vez que via a sua decepção andando pela casa: “seu filho da puta”!
Ricardo fora o melhor aluno. Destacou-se nos movimentos das mãos, perfilhou o andar e os dizeres dos que comungam esse ofício e, como um ano, já estava fazendo fila no SEBRAE para abrir seu próprio negócio.
Vencidas as demoras burocráticas, o salão de beleza “Richard Fashion” iniciou suas atividades, próximo ao Terminal Urbano. Era um cantinho apertado, quente, mas visto por milhares de pessoas que raspavam os pés e se banhavam no sol escaldante de Rio Branco.
O primeiro cliente foi um rapaz de talvez uns vinte anos. Depois de gastar a língua e a tesoura, tudo certo! O corte do malandro estava no vasto repertório do profissional. A satisfação foi singular, pois Ricardo não teve grandes surpresas. A única alegria do cabeleireiro fora saber que aquele cheiro de quem não usa creme de axila tinha ido embora com o seu dono.
O segundo cliente foi uma moça empavonada. Dessas que se descuidam do resto do corpo e acham que na cabeça está a fonte de todas as suas atenções e das buscas masculinas. Apesar de ser advertida de que não era essa a finalidade do salão, Richard modificou a lata da cliente sem muitos verbos ou urbanismo. Também não teve como lograr êxito, seguia em ritmo de espera sufocante.
Após alguns momentos de reflexão e tédio, Ricardo vê adentrar em seu estabelecimento um senhor cansado e absorto, rosto rasgado pelas rugas, já dobrando a pele e os olhos, dando prova da crueldade do tempo.
Após parabenizar o profissional pelo corte, sugeriu-lhe que demonstrasse sua arte também em outras regiões “capilares”: Ricardo fora convidado a estender sua empresa também para a barba do cliente que crescia rala e disforme.
A hora tinha chegado! Depois de tanta espera, depois de tanto esforço, tanta dedicação, persistência em não se apartar de seu sonho, Richard poderia concretizar sua mais interna vontade.
Feito!
A navalha corria indiferente sobre a face do senhor que já aparentava um certo sono. Guiada por mãos hábeis e voláteis, cobrindo-lhe de sabão, pouco a pouco, o rosto do cliente se despedia dos pelos grossos e brancos.
Enquanto terminava o queixo e as partes anexas às orelhas, Ricardo, filho de Virgulino, respirou forte e tensamente. Fechou os olhos, sorriu levemente e juntou a lâmina ao pescoço do cliente que se despedia da vida e de quase todo seu sangue.
Ricardo realizou seu sonho. Ricardo era agora, só agora, feliz! Não fora o que o pai tinha pra ele, mas matou apenas uma pessoa.
Boa eleições para todos!
Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA [email protected]