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Vigiai e Orai

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Não imagino possa haver profissões mais desumanas que essas que fazem o sujeito perder a noite toda. Dessas que fazem reverter o normal ciclo biológico que foi adquirido há milhares de ano pelo homem. É de pronto terrível expor suas forças laborais com a presença do sol e baixar às profundezas do sono na presença da lua.


Alguns haverão de dizer: mais desumano é o desemprego, a carência de uma renda fixa, a solidão de um bolso vazio. Estão corretos! E mais corretos estariam se desemprego fosse uma profissão. Por isso ratifico: trocar a noite pelo dia é cruel é de efeitos à saúde danosos e nocivos que um dia ainda haverão de se revelar.


Valdemar há mais de quinze anos não sabia o que era dormir bem à noite. Vigia de profissão, trabalhava numa concessionária de automóveis, onde zelava pelos valiosos pertences que lá se encontravam. Carros novos e batidos, peças automotivas e mais o resto passavam pelos olhos atentos dele e de seu amigo que revezavam intermitentemente essa amarga labuta.

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Fazia cinco que Valdemar tinha separado da esposa. Jamais perdoou a ideia dela em convidar para a cama pessoas estranhas. Se ao menos não tivesse descoberto a traição, ainda estariam juntos. Mas chegar mais cedo que o habitual e ver dois corpos deitados, exaustos e ainda por cima o amante usando blusas que Valdemar tinha ganhado de sua mãe era realmente o cúmulo.


Ficou com a filha Janaina e com a ciência de que a esposa fazia isso com os homens que frequentavam seu quarto apenas para se vingar de toda a raiva que a sogra lhe tinha feito. Pelo estado em que se encontrava o conjunto de roupa, a adúltera tinha realizado o ato muitas vezes. Bastante.


Janaina era dezesseis e já começava a trazer preocupação para o vigia. Tomando a si próprio como exemplo, aconselhava a filha adolescente que os homens não prestam, não valem nada e têm interesses que destroem os sonhos de uma mulher honesta. No fundo, dizia o cauteloso pai, o gênero masculino se dispõe a fazer tudo por um prêmio: o corpo de uma mulher, sem demonstrar um braço de compromisso.


Na noite em que ficava em casa, a filha seguia até altas horas nas novelas e filmes, tudo na mais perfeita harmonia. Porém quando o pai trabalhava, a moça quebrava as algemas, saía do ninho e fugia da prisão.


Passou a namorar, aprendeu a beber, convidar as amigas para sua casa e realizar festas com o pessoal do bairro. Logo se envolveu com pessoas que Valdemar não queria. Era a destruição da obra do pai, a desconsideração de tudo o que ele tinha feito para proteger e afastá-la de males tão sutis.


Atento aos boatos, o vigia combinou com o amigo para trocar o plantão e, ao chegar a sua casa lá pelas duas da manha, duvidou se não tinha entrado em uma boate, ou numa distribuidora de bebidas.


Após a expulsão dos não convidados, do show que deu e da surra que efetuou na filha, deixou claro que entregaria a malcriada para mãe, cuja última notícia dava conta de estar vendendo o corpo pelos garimpos de Porto Velho.


Nem precisou disso tudo!  Recebeu, em menos de um mês, carta de uma outra ex-mulher, explicando que precisava transferir a guarda do filho que tiveram no passado, pois não pretendia perder mais um casamento.


Por ter chegado aos dezoito, o marido de sua ex-mulher não queria mais continuar dividindo o mesmo banheiro da casa. Disse à esposa que apenas um homem viveria ali. Uma semana depois, Valdemar tinha mais uma atenção a dispensar, mais uma boca a se dirigir à mesa: o filho regresso.


Janaina não gostava do irmão. Não o via há tempos. As poucas lembranças que tinha dele não eram boas. As raras vezes em que ele tinha ido visitá-los causavam ciúmes na caçula e irritação pelos sermões que sofria quando fazia algo de errado e ele contava ao pai.


A primeira coisa que o vigia pensou ao aceitar criar o filho novamente foi nessa sua qualidade de delator. Além do amor que tinha por ele, o pai viu uma chance de sempre estar a par do que aconteceria em sua casa. Raimundo daria todas as informações do que a filha pretendesse fazer. Se não teve mãe, Janaina teria agora dois pais.


Raimundo trouxe paz à família. Valdemar podia agora trabalhar despreocupado, sem vexames ou qualquer sentimentos indicadores de falta paterna. Passou a fazer algo que raras vezes ousava: dormir por toda a noite no posto de trabalho, sem nem se preocupar com os gatunos da ocasião.

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Com o irmão sempre perto, a casa do vigia voltou à normalidade. As festam se encerraram, não havia mais bagunça e Janaina teve de aprender a viver como antigamente. À duras penas, aprendeu a gostar do irmão, pois sabia que qualquer vacilo seu, o pai seria o primeiro a tomar conhecimento.


Quatro meses depois, Valdemar estava em um hospital público temeroso pela saúde da filha. Tinham acordado cedo, aqueles sintomas apresentados por ela eram estranhos para ele. Como aos homens de seu perfil, nunca presenciou algo parecido.


Como teve um pouco de sorte, após três horas de longa espera, Janaina tinha sido atendida pelo médico. Na presença dele, a moça, após uma natural relutância, teve coragem de contar tudo o que estava ocorrendo. Sem demonstrar espanto algum, talvez por não conhecer de alguns detalhes, a autoridade em saúde mandou chamar o vigia, a fim de tratar de assuntos rotineiros.


Ao apertar a mão do pai da paciente, o doutor convidou-o para sentar. Como é comum nesses casos, o médico gastou longo tempo explicando o que se passava com a filha. Modelou alguns cuidados, indicou três ou quatro remédios de nomes difíceis e, como se fizesse um apanhado de tudo, disse: parabéns, sua filha será mãe.


Repetiu mais umas duas vezes o que os exames indicaram, enquanto se dirigia para abrir a porta ao pasmado senhor. A menina que tinha dois pais teria agora um filho de um deles. Não há nada que possa reunir tanto uma boa família.


FRANCISCO RODRIGUES      [email protected]


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