Quem mora em quarteirão tem ao menos duas coisas na vida: contas pra pagar e coragem pra viver.
Não faz muito tempo que se verifica a tentativa de retirar do mundo dos pobres esse nome. Antigamente era tudo quarteirão. Hoje, um banheiro coletivo de alvenaria para cem pessoas, um muro “meia boca”, uma calçada com lajotas picadas num cimento roto, e pronto! A choça já passa a ser chamada de outra coisa.
Ninguém mais quer dizer: moro num quarteirão. Agora, e talvez com a ajuda das imobiliárias que sofisticaram os nomes das palhoças que vendem, as pessoas se orgulham em dizer que alugaram um apartamento por ser mais prático e adequado ao ritmo do mundo moderno.
Nos lugares mais distantes do poder público, ainda encontramos os legítimos quarteirões. Vá ao bairro Cidade Nova e você verá que não minto.
Feitos de madeiras apodrecidas pelo tempo, cobertos com as, comprovadamente, cada dia mais raras, folhas de zinco, desenhados em um “quatro por quatro” básico expoente de um simples vão com uma janela e uma porta, ligadas por traiçoeiros trapiches, essas moradias oferecem indelicados transtornos que só não são menores do que os trazidos pela carência natural de recurso que essa gente apresenta.
Aquele domingo era atípico, Raimundo tinha recebido um dinheiro da limpeza de uns quintais feita há mais de dois meses. Pagou o aluguel atrasado, comprou dois copos de vidro e mais umas louças na loja do R$ 1,99, destruiu um fiado no boteco do seu Mazinho e até deixou a mulher comprar umas costelas pra assar na churrasqueira improvisada do quarteirão: dois tijolos e uma grade de um forno de um fogão velho jogado no lixo perto.
Para beber, repartiram as despesas de tal forma que deu muito bem para comprar duas “Quinta das flores”, dez garrafas de Pitú e, para a moça do quarto ao lado, que tinha feito aniversário na semana, três latinhas de cervejas.
A festa reunia quase todos do quarteirão. As mulheres que tinham patroas, os “boqueiros” fracassados do tráfico, os malandros de mão leve, o braçal do Mercado Novo, o marreteiro de relógio “suíço”, o vendedor de colchas e espelhos do carrinho de mão, o desesperado sem emprego e até o vaidoso segurança de eventos noturno estava participando.
A alegria não tinha fim. Riam alto! Contavam casos vividos por eles com todo o lirismo necessário. As empregadas faziam uma disputa para saber qual a dona de casa mais boazinha. O ladrão orientava os possíveis alvos a atingirem. Os traficantes “barrelas” lembravam quem tinha acabado de cair. Todos estavam felizes dançando sem pudor. O som do segurança tocava os sucessos da coleção do camelô que iria ser vendido depois nas proximidades do terminal.
Lá pelas quatro da tarde, algo inusitado acontece: faltava energia. Depois dos indispensáveis gritos e vaias, os promotores do evento foram conferir se o fio que fazia o “gato” não tinha se desprendido. Como havia um pé de castanhola perto do poste, às vezes, um vento mais atrevido evidenciava o mau contato que os deixava sem “luz”.
Não era o arame farpado o problema. Tinha realmente faltado energia. O desapontamento começou a aparecer. Já embriagados, liderados por Raimundo, disseram mil coisas da Eletroacre, da Prefeitura e do Governo. A seu modo, expandiram suas queixas, fizeram conclusões do tanto que são renegados.
A rua nunca recebeu um asfalto, a agua e a luz eram ligações diretas, viviam numa merda de moradia, o dono da palhoça se aproveitava sexualmente das que não conseguiam pagar o aluguel. Quando chovia tinham que afastar e juntar partes dos moveis velhos e varrer os farelos do fraco compensado, enfim, o álcool deu-lhes condições de enxergar o drama que viviam.
-Vamos interditar a rua principal! Ninguém vai passar por lá! Alguém tem bônus para ligar para o jornal pra eles filmarem o esgoto a céu aberto, o barranco caindo e a pobreza que tem aqui? – incitou Raimundo, tomando mais uma dose do vinho que começava a esquentar.
– É isso mesmo! Já chega! O Raimundo tem razão. Não existimos para esse bando de FDP. Vamos tocar o terror hoje. Ninguém vai passar não, e quem quiser embaçar a gente quebra o carro. – confirmou o camelô, dando provas de que apoiava o líder.
Havia ali uns vinte no churrasco. Quando começaram a marchar para a rua principal, foram, aos poucos, unindo-se ao movimento crianças magras e feias, adolescentes curiosos, desocupados e quem mais quisesse comprovar que alguma coisa diferente iria acontecer.
Raimundo ia à frente do motim. Sempre gritando, vamos lá, vamos lá. Já chega de sofrimento. Chegou a nossa vez. Se precisar, a gente invade a rodoviária, atravessa a ponte e toca fogo no Palácio e na Assembleia. Quem sabe, se o fogo não mata os ratos de lá!
Vinte minutos atrapalhando o trânsito foi o suficiente para que a polícia chegasse e acabasse com a manifestação. A repórter ficou boquiaberta com as justificativas do único preso: o líder que visivelmente embriagado dava provas de que tinham lá suas razões.
Quando a viatura chegou, poucos tinham ficado. Os que achavam que deviam alguma coisa sumiram rapidamente, voltaram para beber e comentar o ocorrido com o pobre homem. Apenas as mulheres acompanhavam até o fim, protestando e lamentando a prisão de Raimundo. Não sabiam elas que a polícia é frequentadora assídua dos locais que o Estado não vai.
Na cela da delegacia, zonzo ainda com as orientações que recebeu na cabeça, Raimundo recebia a visita de duas pessoas. Uma era a de um político que havia se comovido com a oratória do preso. Queria seu apoio para as próximas eleições. A outra era um pastor dessas igrejas evangélicas que pregam a teologia da prosperidade. Pretendendo ampliar a “palavra” naquela comunidade, gostaria de fazer dele um instrumento para a causa.
Raimundo aceitou os dois convites. Depois de três meses, longe daquele quarteirão horroroso, vivendo e tendo outra realidade, Raimundo tentava convencer os seus ex-amigos de que a democracia, o debate, o respeito, os bons modos e a confiança espiritual são as chaves para a cidadania e felicidade humana.
FRANCISCO RODRIGUES – [email protected]