Ela completou 79 anos no úlrtimo sábado (20), e apesar das muitas lutas que coleciona ao longo de quase oito décadas, mantém a elegância de outrora, quando literalmente sacudiu o país ao se tornar a primeira mulher a governar um estado brasileiro.
O dia histórico: 14 de maio de 1986. Trajando um comportado e elegante vestido azul, ela passou em revista as tropas, arrancando aplausos da multidão que se aglomerava nas escadarias do Palácio Rio Branco para prestigiar a cerimônia.
A comemoração foi além do ato oficial. Após as solenidades de praxe, um churrasco foi oferecido ao povo no Horto Florestal. Ao menos vinte bois foram doados para garantir a comilança. À noite teve festa de gala no Círculo Militar, restrita a convidados.
A capital acreana parou nesse dia. Todos os estados brasileiros mandaram representantes. O movimento feminista estava em alta na ocasião e ninguém queria fazer desfeita.
– Eu me arrepio todinha. É difícil descrever o que sentir naquele dia. Foi coisa de Deus mesmo. Eu não era filha de político. Meus pais eram pobres e vinha de um município sem muita expressão. Estava escrito. Tinha que ser-, diz.
Longe do glamour, dos flashes e holofotes daquela época, se dedicando integralmente a família, a ex-governadora Iolanda Lima, recebeu ac24horas em sua residência, em Rio Branco, para falar sobre os episódios que marcaram a sua vida pública.
A memória, todavia, já não é mais a mesma. Vítima de um Acidente Vascular Cerebral Isquêmico, em 2010, a ex-governadora recorre aos álbuns de fotografias e registros históricos, para não deixar escapar nenhuma informação.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
A família
Iolanda Ferreira Lima nasceu em Manoel Urbano-AC, no dia 20 de junho de 1936. É a primogênita do total de dez filhos do cearense Horácio Lima e da imigrante árabe Nazira Anute Lima. Os irmãos: Silvia, Inalda, Ismênia, Jeferson, Dione, Luzia, Moema, Seluta e Sandra.
Ela faz questão de incluir na lista a meia irmã Maristela. O pai era viúvo e trouxe a filha do primeiro casamento para morar com a mãe de Iolanda, assim cresceram juntos, e para ela não há qualquer distinção.
Incluindo a meia irmã, do total de 10 irmãos, apenas sete estão vivos. Jeferson, o único filho homem do casal Horário e Nazira, faleceu aos quinze anos de idade, vítima de barriga d’água. Inalda e Sandra morreram no início desse ano.
Inalda morava no Rio de Janeiro e foi vítima de parada cardíaca aos 75 anos. A caçula Sandra era professora de Sociologia e Espanhol e morreu aos 61 anos em decorrência de um câncer no cérebro. As duas mortes foram registradas num curto intervalo de dois meses e abalaram a rotina da ex-governadora, que não consegue esconder a tristeza.
‘’A gente ainda nem bem tinha se recuperado da morte da Inalda, quando a Sandra faleceu. Sempre é difícil enterrar um ente querido’’, lamenta.
Alfabetiza pela mãe
Na época do nascimento de Iolanda, o município de Manoel Urbano chamava-se Vila Castelo, e fazia parte das terras do Seringal Alto Rio Purus. Os pais viviam do corte de seringa e da plantação de subsistência.
A família vivia praticamente isolada e as crianças não tinham acesso à escola em decorrência da falta de estrada, que só era aberta por um curto período durante o verão. Para estudar era necessário se mudar para Sena Madureira, o município mais próximo.
Em virtude das circunstancias, a ex-governadora foi alfabetizada pela própria mãe, que mesmo nunca ter freqüentado uma sala de aula, aprendeu a ler e a escrever durante o período que trabalhou como empregada doméstica na casa de um médico, em Sena Madureira. Dona Nazira sabia da importância dos estudos e o pouco conhecimento que tinha repassou aos filhos.
– Minha mãe era uma pessoa simples, mas tinha sede de saber, desejo de aprender. Ela dizia ao meu avô que queria conhecer um doutor. Ai ela foi para Sena Madureira trabalhar na casa de um médico. Lá aprendeu a ler, escrever, bordar, costurar e tudo isso passou para a gente -, conta.
Após aprender as primeiras letras com a mãe, Iolanda deixa Vila Castelo e vai para Sena Madureira, onde inicia a escola normal em regime de internato no Instituto Santa Juliana, de responsabilidade das irmãs Servas de Maria Reparadora. A escola normal é o que corresponde hoje ao ensino fundamental.
Empregada doméstica e operadora de caixa
Ocorre, que naquele tempo não tinha segundo grau (atual ensino médio) nas escolas do interior e para se manter na capital Rio Branco e dar continuidade aos estudos, Iolanda foi obrigada a seguir os passos da mãe e trabalhar como empregada doméstica para garantir teto e alimentação.
– Não tinha segundo grau. Era tudo muito difícil naquele período. Para o filho de um pobre estudar era necessário muito sacrifício. O filho do rico pegava o avião e ia estudar fora, só voltando formado, com o canudo na mão. A minha realidade era outra bem diferente-, argumenta.
– Terminei o segundo grau e levei um tempão para entrar na faculdade porque não tinha. Enquanto isso fui trabalhar nas Lojas Pernambucanas, fiquei três anos como caixa, acho que foi aí, eu me relacionado com as pessoas que comecei a gostar da política-; confidencia.
Sonho engavetado
Antes de tentar a sorte na capital acreana, Iolanda foi para o Rio de Janeiro, onde morava uma tia por parte de mãe, na tentativa de realizar o sonho de ser aeromoça internacional ou seguir carreira de modelo.
Beleza e determinação não lhe faltavam, porém, o sonho foi engavetado após uma conversa com um amigo da família bastante conhecedor da realidade cariosa. Ele teria dito:
– Iolanda, você é muito bonita e também inteligente, mas isso aqui não é para uma moça de família.
O conselho surtiu o efeito de um balde de água fria e a bela jovem acreana retorna a Rio Branco, onde começa sua participação na política partidária.
A convite do saudoso Rui Lino, a jovem Iolanda foi trabalhar como secretária no Diretório Estadual do PTB e não demorou muito para ter participação ativa na vida política do partido.
– O Rui Lino, pai da Regina, foi presidente do PTB. Eu era muito observadora, escrevia discursos e tudo aquilo foi despertando em mim a vontade de participar cada vez mais da política-; frisa.
Geraldo Fleming
Iolanda Lima é viúva de Geraldo Fleming, médico veterinário do Exército Brasileiro, com pós graduação na Argentina e no Uruguai. Veio para o Acre integrando uma equipe de cinco tenentes, cuja missão era construir o Quarto Batalhão de Infantaria e Selva, 4º BIS.
Não precisou andar muito para conhecer a jovem que viria a ser a sua futura esposa e seu passaporte para a política.
– Eu morava ali onde é o hotel Guapindaia. Estava pintando a parede, de pincel na mão, quando escutei aquele barulho da motocicleta dele parando. Foi amor a primeira vista do homem, mas eu ainda passei três meses pensando, ele era baixinho, e eu não pensava em casamento, essas coisas, mas depois aceitei-; conta.
A ex-governadora recorda com carinho o início do relacionamento com o ex-deputado e até brinca sobre os reais interesses do então oficial do exército.
– Eu disse rapaz tu és interesseiro hein! Me observou trabalhando no diretório do PTB, já sabia minha ficha completa, política na alma, por isso tanto interesse-, ironiza.
Aprovação do Exército
Brincadeiras à parte, se Fleming se aproximou de Iolanda pensando na política, foi ele na verdade quem foi usado como isca pelo PTB, partido de oposição à época, ao qual a namorada Iolanda era militante.
Na condição de militar, ele era o candidato perfeito para o partido, taxado de clandestino, para receber o apoio do Exército.
– Começam os preparativos da convenção. O Raimundo Melo saiu laçando gente para ser candidato. Ninguém queria ser candidato. O PTB era considerado partido comunista. Então, veio a idéia de chamar o Fleming para ser candidato que o apoio do exército era garantido-, explica.
Geraldo aceitou o convite e fez uma consulta formal ao comandante do Exército no Acre, que prontamente respondeu: ‘’ Se o nosso militar tem condições, em questões de moralidade, nós somos obrigados a liberar’’.
Assim, por influência de Iolanda, Fleming inicia sua carreira política filiado ao PTB em 1961, sendo eleito deputado estadual no ano seguinte.
E por ironia do destino, o militar também precisou pedir autorização novamente ao Exército para casar com Iolanda. ‘’ Tive que fornecer o meu currículo para os militares, eles queriam saber quem era Iolanda, só depois pude casar’’, revela.
Vereadora e advogada
Apesar da sua participação ativa na política, Iolanda só veio a disputar um mandato em 1972, quando foi eleita vereadora de Rio Branco, pelo PMDB, sendo reeleita para o mandato seguinte, chegando à presidência da Câmara Municipal.
Foi nesse período, que ela decidiu dar continuidade aos estudos, optando pela faculdade de Direito na UFAC, e justifica sua escolha:
– Como é que o cidadão que faz a lei não conhece a lei, eu achava isso muito esquisito, nunca quis atuar não, meu interesse era apenas saber como as coisas funcionavam. Atuei algumas vezes na área de família, o divórcio de uma amiga, essas coisas assim, só pra ajudar -, conta, informando sua OAB/AC, nº 273.
Em 1978 foi eleita deputada estadual e em 1982, vice-governador na chapa de Nabor Júnior, vindo a assumir o governo com a ida do titular para disputar o Senado Federal em 1986.
Dona Laudi decide indicação
Todavia, a indicação de Iolanda para compor a chapa majoritária do PMDB, na condição de vice-governadora, o que acabaria lhe conduzindo ao cargo de governadora, não aconteceu assim de forma harmônica e unânime como se pensa.
Uma mulher teve participação decisiva na questão. Ninguém menos que Dona Laudi, esposa do saudoso Raimundo Melo e mãe de Flaviano Melo, lideranças políticas importantes dentro do PMDB.
– Existia uma campanha contra em andamento. A convenção começava as oito da manhã e na noite anterior tinha um grupo formado, disposto a melar a minha candidatura. Raimundo Melo, Cadaxo, Aragão, o mais danado era o Aragão. O problema todo era porque eu era mulher-, diz.
As reclamações também eram direcionadas ao marido, Geraldo Fleming, vindas de correligionários do PTB. ‘’Olha Fleming, essa mulher fazendo campanha em todo quanto’’, teria reclamado Natalino de Brito do PTB.
– Cinco horas da manhã do dia da convenção, o telefone toca , era a dona Laudy, disse minha filha você vai ser a candidata a vice governadora, o Raimundo vai votar em você. Ela resolveu a parada. Foi decisiva. Nunca pensei que fosse sofrer rejeição por ser mulher- desabafa.
O vendedor de prego e a doméstica
Iolanda e Nabor eram o que se pode chamar de uma chapa sem expressão. Ela, apesar de ser professora e advogada, tinha o estigma da menina pobre, a ex-empregada doméstica, filha de uma simples dona de casa e um seringueiro.
Nabor, natural de Tarauacá, tinha um pequeno comércio na beira do rio Acre, nas proximidades da ponte Joaquim Macedo, onde comercializava prego, martelo e serrote, dentre outros apetrechos.
– O Fleming era capitão do exército, mas também não ganhava muito, todas as portas que a gente chegava estava fechada, era proibido abrir as portas para o PMDB-, lembra, relatando ainda que uma vez a comitiva jantou jambo em Manco Lima porque não tinha lugar para o PMDB comer.
Ao final da campanha, a surpresa, a chapa de Nabor e Iolanda não só saiu vitoriosa, como fez deputados federais, doze estaduais e os dois senadores. ‘’ O Nabor tinha toda a chance de governar, e aprendi, quando o povo quer ninguém segura’’.
Bota fora na segurança
Iolanda se popularizou na política em virtude do seu pulso firme. Um dos episódios marcantes durante o governo de Nabor Junior foi o episódio que resultou na demissão do secretário de Segurança.
– Um policial civil espancou um estudante da Casa do Estudante e o caso me foi relatado pelo comandante da PM, que era o Gualter. Imediatamente mandei chamar o secretário da pasta, que não lembro o nome, e este mandou um recado desaforado, dizendo que não ia me receber porque governador para ele era só o Nabor- informa.
Iolanda assumia o governo interinamente e não pensou duas vezes ao determinar que o comandante da PM tinha 20 minutos para arrombar a porta da secretaria de Segurança para que ela empossasse o novo secretário.
– O secretário não pode ser prepotente, tem que ter respeito. Nabor estava em Brasília, eu estava a frente do governo naquele momento, então diante das circunstancias fiz a demissão e empossei Castelo Branco.
A gestão Iolanda Lima
Durante seus 300 dias de governo, Iolanda buscou desenvolver um mandato popular, investindo em obras de grande alcance social. Em virtude do curto tempo de governo, projetos como a construção da Fundação Hospital do Acre (Fundhacre), iniciada durante a sua gestão foram concluídos no governo de Flaviano Melo.
Dentre os investimentos concluídos em seu governo, destaca-se a implantação da Delegacia Especializada em Atendimento da Mulher, e a pavimentação dos trechos entre Rio Branco e Porto Acre e Senador Guiomard e Plácido de Castro.
Um dos projetos que ela lamenta não ter tido continuidade é o da construção de um estádio de futebol lá pelas bandas do bairro Alto alegre , com capacidade para 17 mil pessoas, cujo investimento total era de 170 milhões de cruzados.
– Nós ainda iniciamos a obra. Ao menos vinte milhões de cruzados ficaram enterrados lá, mas o meu sucessor achou melhor construir casas populares no local-, esclarece.
Quebra do monopólio das empresas de ônibus na capital
Esse talvez seja o episódio mais marcante na vida política de Iolanda, registrado durante a sua passagem pela prefeitura de Rio Branco, durante a gestão do prefeito Jorge Kalume. Iolanda é a vice-prefeita e assume interinamente a gestão municipal durante uma crise no sistema de transporte coletivo, com direito a quebra-quebra de ônibus e outras badernas.
– Sabe o que acontecia, eu não me envolvia muito com a prefeitura dele. Tinha meu gabinete montado, ele me respeitava muito, mas eu não sabia o que era essa vida municipal, como funcionava tudo. Então a cidade ficou totalmente paralisada por uns 15 dias, quebradeira de ônibus e muita confusão. Ai ele disse: minha filha já estou nessa idade, estou indo para Brasília, o que você fizer eu assino embaixo! -explica.
O que a prefeita interina não sabia era do grande esquema de corrupção que estava enraizado por trás do sistema de transporte coletivo de Rio Branco, culminando com a evasão de tributos municipais, que até então não eram recolhidos, gerando um grande prejuízo ao município.
– Quando eu fui verificar não tinha um ônibus registrado, não ficava um real de imposto no município, eles lucravam tudo. O esquema era forte e financiava campanhas de alguns vereadores, ex-prefeitos, mas o Kalume não apoiava, então eu baixei um decreto suspendendo a concessão, mas dando um prazo para todos se regularizasse, caso quisessem-, esclarece.
– Naquela época fiquei sabendo que eles tinham uma mala cheia de dólares para me entregar. Soube até de assessor que ganhou carro zero. A policia federal monitorou tudo e confirmou as ameaças depois de um recado que eu recebi de uma parente de um empresário do ramo – diz, acrescentando que hoje não faria mais o que fez, porque perdeu parte da sua liberdade e colocou em risco pessoas que ama.
Os últimos dias ao lado de Fleming
Iolanda e Fleming não tiveram filhos biológicos. O motivo, segundo ela, era a esterilidade do marido, decorrente de uma caxumba, contraída por ele aos 15 anos se idade. Todavia, o casal decidiu pela adoção e assim constituiu sua família, reconhecendo duas crianças.
O fim do casamento veio pouco antes de Iolanda assumir o governo, agravado pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas, que resultaram numa série de complicações na saúde de Fleming.
– A gente morou junto cinco anos estando separado. Quando eu assumi o governo já estava separada, mas o povo era muito machista, então fizemos um acordo amigável- conta.
Com o fim do casamento, Geraldo volta a morar no Rio de Janeiro, mas com o agravamento do seu quaro clinico, a pedido dos filhos, Iolanda trouxe o ex-marido para ficar sob seus cuidados na fazenda da família na estrada de Porto Acre, onde ele viveu seus últimos dias, falecendo em 1991, em decorrência de uma cirrose hepática.
– Ele passava a noite ouvindo Menino da Porteira, do Sérgio Reis. Nunca reclamou de nada, foi de uma grandeza sem igual, a minha presença e dos filhos era tudo. Ele gostava que pegasse na cabeça dele, e assim foi em paz, graças a Deus.
Assalto muda a rotina da ex-governadora
– Hoje é difícil a gente sair, pegar o ônibus sem medo. Eu era uma pessoa muito popular, Vinha de Porto Acre, trazia seringueiro , borracha, galinha,tudo na carroceria do meu carro. Hoje a gente tem que andar de fumê, não pode mais oferecer carona-, declara entristecida Iolanda, ao informar que perdeu um patrimônio de 40 anos durante um assalto na sua fazenda.
De acordo com ela, só não levaram o trator. O resto dos bens materiais foram todos. Encostaram o caminhão e fizeram a festa. Desgostosa com o episódio, a ex-governadora se desfez de tudo a baixo preço e voltou a morar na cidade. Hoje, se dedica integralmente aos filhos, netos e bisnetos.
Amor pela vida e pelo próximo
‘’O importante é amar e ser amado, é a melhor coisa da vida, porque se você esta amando não importa se vão falar, o importante é ser feliz’’, aconselha.
Recado as mulheres
‘’As mulheres devem participar mais da vida política de suas cidades, seus estados, do seu país. Não podem ter vergonha de expor suas idéias, seus projetos. Hoje a situação é diferente e bem mais favorável, mas nem por isso a luta a menor, e somente unidas e bem representadas às mulheres podem continuar garantindo suas conquistas. Mulheres não se acomodem, vamos à luta’’, finaliza.