Nasci em Brasiléia, na famosa “Rua da Goiaba”, poucos dias antes de o Brasil se tornar tricampeão mundial de futebol com a melhor seleção de todos os tempos. Filho de mãe preta e pai muito branco, fui parido em casa, como era costume na época – contar com hospital era luxo demais para uma cidadezinha com menos de 5 mil habitantes, incrustada no meio da mata.
Das minhas primeiras lembranças, guardo a liberdade de brincar na rua e tomar banho de rio. Também lembro da fome e da chegada das levas de seringueiros, que, dali em diante, passariam a viver na cidade, quase sempre em condições deploráveis e sem qualquer perspectiva de futuro. Eram as vítimas precoces da futura transformação dos seringais de borracha em fazendas de gado.
Ser da Amazônia, naquele momento, era um misto de tristeza pelo abandono das autoridades e alegria por viver em um lugar repleto de diversidade e abundância. Éramos guiados pela sabedoria simples de quem aprendeu a sobreviver na floresta. Jogar bola na quadra do “Grupo Escolar” e fazer guerra de goiaba no “Goiabal” faziam parte de uma infância intensa e despreocupada. Como as coisas mudaram rápido! De repente, o que era virtude e beleza virou problema e sinônimo de atraso. A vida simples começou a mudar com a chegada da televisão e a ideologia do desmatamento e da pecuária.
Derrubar e queimar passaram a ser vistos como “benfeitorias”, maneiras de agregar valor à propriedade. A floresta nativa foi relegada a “um lugar sem nada, só mato”, como passamos a ouvir dos recém-chegados. Infelizmente. Pela TV, a série americana “Dallas” fazia a imaginação das crianças viajar no lombo de cavalos de raça, através de vastos campos de grama baixa e verde. Nosso modo de viver mudou, e passamos a acreditar que tudo o que estava para trás devia ser esquecido, enquanto nos preparávamos para o novo mundo que a TV anunciava.
A partir daí, ser da Amazônia no Alto Acre passou a reunir o ressentimento do abandono com a busca frenética pelo progresso e por um novo estilo de vida – mesmo com a resistência dos seringueiros organizados no Sindicato de Trabalhadores Rurais. Com o tempo, a cultura do gado e, mais recentemente, o “agronegócio” da soja e do milho transformaram nossa mentalidade e nossa visão sobre a Amazônia.
Hoje, não nos vemos mais como floresta, rios e biodiversidade. Queremos, na verdade, ser uma extensão de Rondônia, que por sua vez já é um prolongamento do cerrado mato-grossense.
Se há uma explicação para tanta derrubada, queimada, ar envenenado por fuligem e escassez de água nos rios e nas torneiras, é o nosso desejo por progresso. Basta
fazer uma pesquisa no Google Earth e comparar a cobertura florestal da região leste do Acre (de Porto Acre a Assis Brasil, passando por Rio Branco e arredores) entre 1975 e 2022 para ver o que aconteceu. Se estiver ainda mais curioso, faça o mesmo para Rondônia e o norte de Mato Grosso. Aí você entenderá o porquê de tudo isso.
Ser da Amazônia já foi sinônimo de proximidade com a natureza e de uma pobreza humilde, como a realidade da minha família em Brasiléia. Hoje, ser da Amazônia é respirar ar poluído, viver cercado pela pobreza e pela violência, com a natureza cada vez mais distante – a começar pela água que já quase não escorre no rio.