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O crédito que consome

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Por Márcia Tolotti


Se o crédito é uma ferramenta que pode promover o crescimento, por que tem se transformado em uma armadilha que leva milhares de pessoas ao endividamento financeiro? Será o crédito um vilão da atualidade?


Crédito tem,ao menos, duas abordagens: uma do lado do credor, outra do devedor. De acordo com o dicionário de economia de Paulo Sandroni, para o credor “crédito é o direito de receber o que se emprestou”. Para o devedor“é umatransação comercial em que um comprador recebe imediatamente um bem ou serviço, mas só fará o pagamento depois de algum tempo. O crédito inclui confiança, expressa na promessa de pagamento, e tempo entre aquisição e a liquidação da dívida”.

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Então, podemos pensar quemilhares de brasileiros “traem” a confiança dos credores? Por que estão inadimplentes?Temos algumas hipóteses:


Primeira, o crédito é uma mercadoria vendida pelo mercado e como é comum a toda venda, existe publicidade e ações de (neuro)marketing divulgando e “seduzindo”,inclusive, para o produto crédito.


Segunda, a ascensão ao crédito, não corresponde a elevação da educação financeira. Desta forma, as pessoas passaram a ter possibilidade de adquirir bens e serviços sem ter o nível adequado de informações sobre os reais efeitos dos contratos – de crédito/ financiamento – que estão se comprometendo.


Terceira, o “jeitinho brasileiro” e a quase certeza de impunidade,segundo o antropólogo Roberto DaMatta,facilita a banalização em ser devedor,:
“Como é que reagimos diante de “proibido estacionar”, “proibido fumar” ou diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma multa automática? Nos Estados Unidos, na França ou Inglaterra, as regras ou são obedecidas ou não existem.Ficamos sempre confundidos e, ao mesmo tempo, fascinados com a chamada disciplina existente nesses países. Nessas sociedades, a lei não é feita para explorar ou submeter o cidadão, é um instrumento que faz a sociedade funcionar bem. A destruição do privilégio engendrou uma justiça ágil, que não aceita o mais-ou-menos e as indefectíveis gradações e hierarquias que normalmente acompanham a ritualização legal brasileira, que para todos os delitos estabelece virtualmente um peso e uma escala. No Brasil, entre o “pode” e o “não pode” encontramos um “jeito” o “jeitinho””.


Construir um elo de ligação entre o crédito enquanto mercadoria, a insuficiência de educação financeira e a impunidade diante dos compromissos não é apenas uma construção teórica, mas uma constatação da relação que a sociedade brasileira estabelece com as finanças pessoais. Curiosamente, uma das razões para que o crédito pessoal tivesse sido criado foi para dar oportunidade de alavancar negócios e gerar novas formas de renda. Paradoxalmente, o crédito está sendo utilizado para aquisição de bens de consumo não duráveis ou semiduráveis.


Endividamento Financeiro x Afetivo: a dívida como uma fonte constante de lucro


“A dívida é a nova gordura”, disse alguém recentemente. O que me levou a pensar que, não faz muito tempo, gordura era o cigarro, e antes, o cigarro era a bebida, e antes, era a prostituição. E a prostituição, hoje, é a dívida: e assim, continuamos em círculos. O que todas essas coisas têm em comum é que, a seu tempo, cada uma delas foi considerada o pior de todos os pecados até entrar numa fase de ser considerada algo na moda, se não totalmente inofensiva. Houve um tempo em que as pessoas tomavam as maiores precauções para evitar cair em dívida”. Margaret Atwood


Se a dívida deixou de ser um problema ou uma falta moral, no que ela se transformou? Numa demanda, numa expectativa da sociedade de consumidores em que adquirir produtos ou serviços mesmo sem dinheiro – popularmente chamados de desejos do consumo –torna a dívida uma fonte constante e permanente de lucro. O mercado precisa dos devedores e no dizer de Zygmunt Bauman “o devedor ideal é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas (…) há um adestramento para a arte de “viver em dívida” e de forma permanente”. Estamos nos tornando dependentes do crédito, da vida acima das possibilidades e estamos criando um exército de endividados. Sem uma leitura mais distanciada ou crítica, acreditamos que somos livres por exercer o suposto livre arbítrio diante das compras. Será que não nos deixamos absorver por uma forma sofisticada de alienação? Será que o consumo não é a nova religião? Partilhamos a concepção de que vivemos uma época de egoísmo, hipnotizados pelas sensações que o ato de comprar promove no corpo, quando libera dopamina; na sociedade, quando nos torna supostamente poderosos e, dentro de nós mesmos por nos vermos como livres e capazes:


“Viver em rebanho fingindo ser livre nada mais mostra que uma relação consigo catastroficamente alienada, uma vez que supõe ter erigido como regra de vida uma relação mentirosa consigo mesmo. E a partir daí, com os outros. Na realidade, visamos, antes de tudo, fazer com que entrem no grande rebanho dos consumidores. É pelo egoísmo que se deve agarrar os indivíduos para arrebanhá-los, pois é o meio mais econômico e mais racional de ampliar as bases de um conjunto de pessoas permanentemente levadas para necessidades reais, ou quase sempre, supostas”. Dani-Robert Dufour


Então, se estamos diante de um projeto articulado ou não, pouco importa. O fato é que perdemos a referência do que efetivamente é significativo em nossas vidas e daquilo que é manipulação mercadológica. E para aqueles que se levantam contratais argumentos e defendem o fato de que não somos obrigados a nada, salientando que escolhemos racionalmente comprar e tomamos a decisão de utilizar o crédito por conta própria, concordamos em parte.


De fato, racionalmente exercemos uma suposta liberdade, porém emocionalmente estamos sendo acionados nas camadas mais profundas das nossas emoções e psique. O (neuro)marketing tem utilizado técnicas que nos convocam, sem que saibamos, para adquirir, mais e mais. As crianças categorizadas enquanto consumidores infantis, terão menos recursos internos para criarem defesas por estarem mais suscetíveis as perversões praticadas pelo mercado. Mas isso tudo pode ser desacreditado se não tivermos como parâmetro que as dívidas financeiras são, em grande parte, decorrentes das dívidas afetivas. Qual o grau de interferência real da tristeza, angústia, falta, insegurança, baixa autovalorização, culpa, raiva e tantos outros afetos diante do ato de comprar? Será que estamos preparados para fazer esta análise? E até que ponto que a impossibilidade de ter algo concreto – suposto objeto de desejo – interfere na constituição da estrutura de personalidade?


Concluímos que se nunca tivemos tanto acesso a bens, produtos, serviços e nunca fomos tão insatisfeitos, é sinal de que existe algum grande equívoco da humanidade. Estamos tonando a capacidade de adquirir algum objeto de consumo, como um valor social, cultural e mental. Sobretudo, estamos mensurando quem somos a partir daquilo que possuímos, a qualquer custo; o custo monetário com juros altíssimos e o custo emocional estamos pagando com nossa insatisfação, infelicidade e consumindo até nosso amor-próprio.

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