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Reflexões sobre o xixi (e orgulho!?) das pessoas LGBTQIA+

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O mês de junho foi marcado por uma série de arco-íris e publicações nas redes sociais de órgãos públicos e empresas que afirmam garantir a diversidade e a pluralidade em suas instituições, mas o direito mais básico e natural das pessoas transexuais — o de usar o banheiro em paz! — ainda não é garantido. Há orgulho a ser comemorado?


O RE 845.779/SC, selecionado com repercussão geral para tratar do tema, está parado no STF (Supremo Tribunal Federal), com vista ao ministro Luiz Fux, há oito anos, desde 2015. Enquanto isso, centenas de mulheres e homens transexuais têm infecção urinária por conter o fluxo urinário e fecal em razão da violência a que as pessoas trans são submetidas ao (não) usar o banheiro. O caso em discussão trata da discriminação sofrida por uma mulher transexual em um shopping de Florianópolis, em 2008.


Na Antiguidade, em civilizações como a Grécia e Roma, havia uma certa tolerância em relação à fluidez de gênero e à diversidade de identidades, mas com a ascensão do cristianismo na Europa, a visão binária estrita de gênero se consolidou e as pessoas trans começaram a enfrentar perseguição e repressão. Na Idade Média, eram frequentemente associadas à bruxaria e heresia e foram alvo de punições severas pela igreja e pelo Estado. Já no início da Era Moderna, com o surgimento das primeiras teorias médicas e científicas, patologizou-se a identidade trans, como um desvio ou transtorno mental, o que demandaria tratamento e isolamento em vez de respeito e proteção.

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Porém, a luta pelos direitos das pessoas LGTQIA+ começou a ganhar visibilidade e força nas décadas de 1960 e 1970, impulsionada pelos movimentos pelos direitos civis e pelos direitos das mulheres. Organizações ativistas foram formadas e passaram a lutar pela igualdade de direitos, pelo reconhecimento legal e pela despatologização de orientações sexuais e identidades de gênero diversas do padrão cisheteronormativo.


Apesar de tudo, o Brasil passa, nos últimos anos, por uma onda conservadora e retrógrada: a ofensiva antitrans e anti-LGBTQIA+ identifica que no primeiro trimestre desse ano, foi apresentado um projeto de lei por dia em todo o Brasil [1].


Sob essa conjuntura, foram registrados vários casos de repressão e violência na utilização de banheiros públicos: um aspecto básico da vida cotidiana torna-se fonte de dificuldades e constrangimentos às pessoas que divergem do sexo biológico ao tentar usar essas instalações.


Em alguns lugares, leis e políticas discriminatórias tentam impor restrições e exigências arbitrárias com base no sexo atribuído no nascimento e negam a identidade de gênero das pessoas trans. Recentemente, o TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) declarou inconstitucional lei do município de São Bernardo do Campo que proibia a instalação de banheiros unissex ou compartilháveis nos estabelecimentos, ou espaços públicos, ou privados do município (ADI 2023.0000384580, relator desembargador Vianna Cotrim, j. 10/05/2023).


Estigmas continuam a ser construídos em ambientes que deveriam ser acolhedores e pertencentes à sociedade em geral. Há um jogo de poder que afeta diretamente os corpos de crianças travestis e transexuais. Essas crianças enfrentam uma série de complicações no trato urinário e outras áreas ao longo de suas vidas, amplificadas pelo simples ato de usar o banheiro, o qual se torna um desafio diário que demanda coragem e enfrentamento.


E por que isso incomoda tanto? A relação estabelecida e reforçada entre aqueles que estão inseridos nos limites do sistema estabelecido e aqueles que são considerados “outsiders” está tão enraizada que “invadir” e transitar por esse espaço exige que travestis, transexuais e outras pessoas trans abdiquem de suas identidades de gênero e se submetam a um modelo de vigilância que as aponta como estrangeiras, diferentes, excluídas.


Muitos oponentes da inclusão de pessoas trans em banheiros com base em sua identidade de gênero levantam preocupações infundadas em relação à segurança e à privacidade. Porém, ao examinar os dados disponíveis (e basta de negacionismo!), não há evidências que respaldam a afirmação de que permitir que pessoas trans usem os banheiros que correspondem à sua identidade de gênero aumente o risco de violência ou assédio.


Inclusive, várias organizações de direitos humanos, como a American Civil Liberties Union (Aclu) [2] e a Human Rights Campaign (HRC) [3], afirmam que não há relatos significativos de incidentes de violência ou abuso cometidos por pessoas trans em banheiros. Além disso, já existem medidas adequadas para garantir a privacidade e o conforto de todas as pessoas em banheiros, como o uso de cabines individuais e a manutenção da privacidade em espaços compartilhados.


Na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o caso emblemático a respeito do direito a não discriminação por razão de orientação sexual ou identidade de gênero é o Atala Riffo vs. Chile, em que se impugna decisão da Suprema Corte do Chile que concedeu a guarda das três filhas de Karen Atala ao pai, sob o argumento de que a mãe, em razão da união afetiva com pessoa do mesmo sexo, não poderia manter a custódia das crianças.


A Corte entendeu que houve violação ao princípio da igualdade e não discriminação e afirmou que o direito a não discriminação pautado na orientação sexual não se limita à condição de ser homossexual, mas inclui outras expressões ligadas ao projeto de vida de cada indivíduo (incluída a identidade de gênero).


Afirmou que as alegações por parte de um Estado de não existência de consenso quanto aos direitos das minorias sexuais não podem ser consideradas como um argumento válido para negar-lhes seus direitos humanos, ou para perpetuar e reproduzir a discriminação que há muito tais minorias sofrem.


O direito à igualdade e a não discriminação foram reforçados como jus cogens, e assentado que uma distinção que carece de justificação objetiva e razoável é efetivamente discriminatória e que o Estado, no exercício do controle social, deve agir nos limites da razoabilidade e proporcionalidade, e levar em conta cada uma das pessoas que será atingida por tal decisão ou ação.

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Por isso, deve ser proibida qualquer norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais ou por particulares, que diminua ou restrinja, de qualquer modo, os direitos de uma pessoa a partir de sua orientação sexual ou identidade de gênero.


Na Opinião Consultiva 24/17, a Corte IDH abordou as questões sobre a identidade de gênero, igualdade e não discriminação a uniões homoafetivas. Para a Corte, é possível que uma pessoa seja discriminada a partir da percepção social a respeito de sua relação com um grupo social, independentemente da realidade ou ainda com a autoidentificação da pessoa.


Essa “discriminação por percepção” tem o efeito de impedir ou prejudicar o gozo de direitos humanos e, por isso, a proteção da identidade deve abarcar a identidade social, de modo que a expressão de gênero é uma categoria protegida pela Convenção Americana de Direitos Humanos.


A Corte reconheceu que a identidade de gênero compõe o “direito à identidade”, protegido pelo artigo 13 da CADH (liberdade de expressão). Além disso, tal direito é um instrumento para o exercício de outros, como direito à personalidade, ao nome, à nacionalidade, entre outros. Assim, o direito de decidir autonomamente sobre a identidade de gênero encontra-se protegido pela CADH, em especial nos artigos referentes à liberdade (artigo 7º), privacidade (artigo 11.2), personalidade (artigo 3º) e ao direito ao nome (artigo 18).


Mais recentemente, no caso Azul Rojas Marín vs. Peru (sentença de 12/03/2020), em contexto de violações de direitos da população LGBTQI no Peru cometidos por agentes estatais, a Corte IDH reafirmou sua jurisprudência sobre o direito à igualdade e não discriminação derivadas de orientação sexual e identidade de gênero, considerando que a violência contra pessoas LGBTQI tem um aspecto simbólico e comunica uma mensagem de exclusão e subordinação.


No Brasil, foi, evidentemente, o STF que garantiu os direitos mais básicos à comunidade LGTBQIA+: foi garantida a união estável e o casamento homoafetivos; a alteração de prenome e sexo para pessoas trans, independentemente de cirurgia de afirmação de gênero; a doação de sangue por homens gays; a possibilidade de ensino de gênero nas escolas; a adoção por casais homoafetivos; o enquadramento da LGBTfobia como conduta equiparada ao crime de racismo; a vedação à “terapia de reversão sexual”, conhecida como “cura gay”.


Há ainda outros caminhos importantes a serem conquistados: a inclusão dos marcadores no Censo Demográfico; a utilização do nome social no CadÚnico; o registro da violência nos órgãos oficiais e a capacitação das polícias.


Não há tempo, contudo, para aguardar que mais comemorações coloridas celebrem o mês do orgulho enquanto as pessoas transexuais ainda não podem fazer suas necessidades fisiológicas em banheiros de acordo com as suas identidades de gênero.



Lucas Costa Almeida Dias é procurador da República no Acre e coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF).


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