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Diário do Acre: Igarapé Vai Se Ver – Rio Branco II

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A noite parece que foi curta, quando pisquei já era dia, guardamos a dormida e fomos nós organizar para sair. Quando fui tomar banho cedo percebi que o banheiro era um dos que o CTA (Centro de Trabalhadores da Amazônia) havia feito na Resex. Senti orgulho, porque já trabalhei no CTA, quando falei isso ao “Diploma”, imediatamente me perguntou da Júlia e pediu que levasse um abraço.


Sentamos na cozinha para tomar café e a risadagem era grande. Noca nos falava do homem mais bruto que ele conhecia na região. Contou que “certa vez saiu pra comprar castanha com um comprador amigo e encostou na casa desse véi. Depois do acordo firmado, o chefe da compra deixou dois peões quebrando as castanhas no barracão do véi. Os peões nó cego que eram, escreveram no barracão que o véi num era homem e ainda lhe roubaram um machado quando se foram. O véi não lia, mas um dia sua mulher foi lá e lhe contou o que tinha escrito. O véi ficou enfurecido jurando todos.


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No ano seguinte o comprador desavisado foi por lá, não conseguiu nem descer do barco, o véi estava brabo no terreiro querendo limpar sua honra com os fatos do comprador, já que não sabia onde andava os peões. Depois de muita conversa, Noca disse que conseguiu apazigua já que o comprador não tinha nada a ver. Infeliz, o comprador ainda teve a coragem de tentar pôr preço na castanha do véi e o viu tacar fogo no barracão com castanha e tudo, praguejando que preferia ver as castanha queimarem que vender pra ele de novo”.


“Vamos”, alertou Antônio do Bill que conhece a distância e sabe o desafio da viagem de volta. Descemos e seguimos a pé para o centro do Belém. Uma picada larga na mata de várzea com água e lama era o caminho. “Esse é o ramal”, me disse o Diploma, apresentando, “quando o igarapé alaga, a água passa por aqui e é melhor andar de canoa no ramal do que no igarapé”. Quem foi o esperto que decidiu fazer ramal na margem do igarapé? Questionei. O ICMBIO, respondeu ele de lá, observando que não foi por falta de aviso da comunidade que apontou o melhor local.


Os meninos me alugavam na caminhada, passei a viagem inteira olhando para as margens do igarapé atrás de uma onça e pedindo pro Noca encontrar uma, já que ele é meio mateiro também. Já pensou encontrar ela nessa mata dizia o Josa? Ela vai pegar só tu, Josa que caminha com mais dificuldades, a gente some na carreira. O caminho acaba numa ladeira de onde já se vê a igreja da comunidade. Azul como o céu, o prédio da Assembleia de Deus sempre bem cuidado é referência em muitas comunidades por todo o Acre.


Arrodeamos uns cachorros e finalmente chegamos na casa do seu Luiz Ribeiro. Era cedo mais parecia que ia ter uma festa por lá, pois em todos os cantos que se olhava havia amigos e parentes do Luiz. “Vamos embarcar um castanha”, avisou Luiz enquanto a mesa estava sendo posta para o café da manhã.


Rapidinho uma roda se formou e a conversa fluía por todos os lados. Josa aproveitou para falar do sindicato, que teria eleição e que o sonho de fazer um sindicato mais representativo e próximo dos trabalhadores e trabalhadoras não podia morrer. Antônio do Bill também deu seu discurso e todos dividiam o sonho de construir dias melhores para aquela comunidade tão distante dos centros urbanos.


“Vamos comer? Já está na mesa”, avisaram da cozinha. Era o verdadeiro quebra jejum: arroz, feijão, farofa e porco. Um banquete já no café da manhã. “Eu gosto da casa cheia e da mesa farta”, avisou Luiz enquanto se servia. Ligou o som com um louvor pra animar o café, todos se serviram e se abancavam pela varanda, sentei num saco de castanha enquanto comia do porco cozido e conversava sobre a comunidade.



Josa se admirou do som do Luiz, ele pra se gabar aproveitou pra contar uma história. “Certa vez fui esperar na baginha aqui perto de casa e pedi pra ninguém ligar o som, pra eu ouvir as pacas roendo. Mas, menino já se viu, né! Pensa o que não, a menina ligou o som, aí alteou, eu atrás de ouvir roendo e não ouvia nada. Começou uma zoada de folhas remexendo num arrastado, eu pensei comigo é uma pico de jaca, armei a espingarda, quando eu reparei com a lanterna, as pacas estavam grudadas dançando”. Todos riram alto com seu Luiz contando e dançando.


A conversa estava ótima, mas tínhamos que voltar. O igarapé secou quase meio metro e já prevíamos uma volta mais complicada. Nos despedimos e demos meia volta no caminho. Diploma chamou pra almoçar em sua casa, bati no vaso da farofa e disse pra ele não se preocupar.



Com o igarapé mais seco galhos e árvores surgiram e formavam balseiros ainda maiores, tornando a viagem igarapé abaixo ainda mais difícil. Fizemos duas forquilhas com galhos para facilitar o controle do barco, fiquei com uma, Josa com a outra e Noca foi pra proa com facão em mãos. A cada balseiro era uma luta descendo, cortando e empurrando.


Na comunidade Cumaru paramos para visitar o Victor, presidente do núcleo de base da RESEX Chico Mendes em Rio Branco. Lembrei que tinha conhecido seu pai, que presidiu a associação antes dele. Nunca esqueci o nome da associação, era tão longe e esquecida que eles se intitulavam “Os Desprezados do Vai Se Ver”. Victo assumiu depois que seu pai faleceu, mas, me disse como era difícil lhe dar com a associação sem o devido apoio do ICMBIO.

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Já estava ficando tarde e a volta era longa, apertamos o paço para descer antes de anoitecer. A ideia era pegar a gasolina e seguir até a casa do Augusto no riozinho. Peguei um sinalzinho de internet em uma escola e fui me atualizar sobre as notícias. Uma emergência surgiu e decidi voltar direto pra casa do Noca, remarcando a visita no Augusto para depois. Aproveitei que tinha uma gasolina entocada e resolvi fazer uma doação para a comunidade do Vai Se Ver que estava precisando do combustível para limpar o igarapé dos galhos e árvores com os motosserras.


Mesmo correndo, despontamos no riozinho quando já era noite, as lanternas iluminavam nosso caminho em uma noite sem lua. Atracamos no porto do Noca bem tarde, mas ainda com tempo para voltar para a cidade. Antônio do Bill resolveu dormir por lá, segui com Josa rumo zona urbana de Rio Branco, conforme íamos avançando na Transacreana, a paisagem ia mudando, a floresta e campo acolhedores iam dando espaço para as casas e prédios, na rotários da saída parece que entramos em outro mundo, também cheio de histórias, mas onde não é possível ver um casal de pacas a dançar.



Cesário Braga escreve todas às sextas-feiras no ac24horas.com


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