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Dor e amor no tempo em que homens roubavam mulheres – Parte 2

Depois que João matou de peixeira o brabo que roubou e deflorou sua irmã Maria, os irmãos órfãos saíram da região de Lábrea, rio Purus, e subiram para o rio Acre indo morar em um seringal acima da boca do rio Xapuri. Um verdadeiro paraíso. Muita seringa, castanha, terra boa de agricultura, caça e peixe à vontade. Até Maria pescava e matava umas embiaras nas manhãs de domingo quando caçava a ponto com Marfisa e Francisco.


Um dia, na colocação em que eles tinham fincado os barrotes, à margem do rio, apareceu um andarilho, um sujeito que parecia perdido. O nambu Macucau piava quando aquele homem chegou à boca da noite pedindo água e comida. Era um bom sinal. Foi durante o verão que ele apareceu. Veio caminhando pela mata.


Era um sujeito cabeludo, barbudo, maltrapilho, magro de um jeito que parecia um tísico (tuberculoso). A voz era suave, olhar triste, profundo, cheio de dor e amargura de alma. Escondia no peito, assim como Maria, aflição de uma tragédia pessoal. O que aconteceu com aquele homem? Por que andava assim? Era jovem, mas parecia um velho, lembrou Maria.


João era valente, mas farto e generoso. Não negava pouso e comida a ninguém que ele visse com bons olhos e que viesse em paz. Pois ele se agradou do sujeito esquisito, do andarilho. Deu água numa cuia para ele, que bebeu desesperado tal a sede que sentia. Soube-se mais tarde ser um paraibano, de Bananeiras, perto de João Pessoa.


_ João tinha instinto que nem bicho do mato, ele pressentia o perigo, mas não era o caso com aquele homem”, contou Maria. Tinha algo de bom nele, apesar da aparência de um louco varrido.


Enquanto João conversava com ele, Maria e Marfisa espiavam escondidas do quartinho pelas brechas da paxiúba. A mulher não podia dar as caras, principalmente depois do acontecido. João o mandou subir. Naquela noite estrelada de estio comeram na janta arroz, feijão, farinha puba e guisado de porquinho do mato a luz de lamparinas, que ficavam trepadas em cima das travessas da casa, perto da cumeeira. Apesar de ter muita fome, o homem comia devagar saboreando cada colherada que dava.


Quando João acordou pela madrugada para ir cortar seringa, o andarilho já tinha enrolado a rede e rachava lenha de breu com o machado no terreiro, perto de um pilão que havia nos fundos da casa. Tomaram café em silêncio e foram juntos para a estrada de seringa a convite de João. Naquele dia nascia uma grande amizade. João gostou tanto dele que lhe deu umas estradas de seringa para cortar. O contratou como meeiro. João fez mais um defumador de borracha para ele.


Fuga, morte, dor e loucura…a história do andarilho


O nome desse seringueiro era Benício. Saiu fugido da Paraíba aos 18 anos levando com ele um irmão menor de 16 anos por causa do ciúme de um fazendeiro. A mulher desse fazendeiro se apaixonara por ele e lhe dera um relógio caro no dia do seu aniversário. O marido soube, era um cabra muito perigoso, cercado de jagunços. Mandou matar Benício que escapou por pouco fugindo para o Recife, embarcando para Belém, Manaus, Acre indo se embrenhar nas matas do rio Abunã, divisa com a Bolívia.


No ano de 1910 em que Benício e o irmão chegavam pelo rio Purus, no tapiri Maria estava nascendo. Não sabiam que seus destinos se cruzariam. Seus caminhos estavam traçados. Escrito nas estrelas. A diferença de um para o outro era de 18 anos.


No Abunã, onde Benício e o irmão foram cortar seringa, o seringal era controlado pelos irmãos Daniel e Israel Ferreira. Dois pretos gigantes que vieram do Maranhão. Homens valentes, fortes e afamados pelo trabalho, força e coragem. Sobre eles, Maria contou uma lenda que ouviu de Benício anos mais tarde. Ela disse:


_ Quando Daniel e Israel Ferreira chegaram no Abunã no tempo do império abriram uma clareira na mata e fizeram um tapiri com barrotes, caibros e palhas de jarina tecida. Não tinha paredes, só a cobertura e o assoalho de paxiúba. Os dois dormiam em redes lado a lado para se protegerem. Na paxiúba, ao lado das redes, dois rifles papo amarelo e duas peixeiras feitas de aço.


Certa noite, narrou Maria, uma lerda de uma onça pintada macho pulou no assoalho do tapiri para comer os dois irmãos, ali mesmo. Azar dela, as paxiúbas do assoalho afastaram e a onça caiu entre elas, ficando encaixada pela traseira na travessa do pau que prendia as paxiúbas. Na hora do alvoroço, Israel, que tinha dado uma volta seca no rabo da bicha gritou para o irmão:


_ Estou segurando a onça pelo rabo Daniel, desce e mata por baixo do tapiri…


Daniel respondeu:


_ Pode soltar que já sangrei ela, tá morta!


Sim senhor, esses eram os irmãos Ferreiras, maranhenses afamados que Benício e o irmão conviveram até o dia em que teve uma revolta de seringueiros no barracão. Até hoje não se sabe o motivo. Uns dizem que foi por causa de carteado, cachaça e disputas de estradas de seringa. Daniel Ferreira gostava de um carteado.


Naquela manhã de domingo a bala cantou feio. Havia gente correndo para todos os lados. Além dos rifles papo amarelo, os revólveres Colt´s 45 já tinham dado o ar de sua graça nestas terras.


A morte do irmão


Na hora do tiroteio, Benício e o irmão correram para o lado do mato e não do rio como a maioria. Se esconderam atrás da sacupemba de um cumaru ferro enquanto a bala cantava nos ouvidos. De onde estavam dava para ver que os tiros partiram do barracão. Por um minuto houve silêncio, os tiros cessaram, o irmão de Benício foi olhar por cima da sacupemba do Cumaru e levou um tiro na testa de 44, mesmo entre os olhos, caindo morto aos pés dele.


Benício ficou desesperado. Gritava por Deus e chorava segurando o irmão ensanguentado em seus braços, no meio daquele mato. Longe de sua terra natal e de sua família. Passou horas ali com o irmãozinho morto beijando-o. A noite chegou. Com um pequeno facão que levava na cintura, Benício fez uma cova não muito profunda. Enterrou o irmão e foi embora dali, saiu vagando, errante, passou muito tempo perdido na mata. Não se sabe como sobreviveu, como não foi comido pelas onças ou ferroado de cobra. Viver era o castigo por ter trazido o irmão menor.


Também perdeu a noção do tempo. Enfrentou muita fome, sede, chuva e frio. Quando começou a ser visto em colocações, vilarejos, ficava arredio e era tido como um louco tal estado de miséria. Sujo, barbudo, cabeludo e maltrapilho. Um seringueiro que ficara louco com saudades da sua terra. Era o que muitos diziam.


Chegaram a comentar que ele seria o marido de Eloá, o que tinha saído para o corte de seringa, deixando a mulher e filha de dois anos no tapiri. Enquanto a mulher fazia a boia, a criança brincava no terreiro. Um bando de queixada entrou e devorou a criança enquanto a mulher gritava desesperada de cima do tapiri que tinha os barrotes bem alto. Quando o marido voltou do corte encontrou Eloá no terreiro agarrada ao que sobrara da filhinha, quase nada na verdade. Ela ficou louca de dar dó. O marido, também. Era a história que corria nos seringais vizinhos.


Pensaram ser até um pobre de um surdo-mudo. Às vezes era enxotado, tinham medo dele, do paraibano Benício, ser possuído por algum espírito ruim. Foi nessas condições que ele chegou na casa de João, irmão de Maria, nas terras de Xapuri. Um louco, andarilho, maltrapilho e faminto. A perda do irmão o abalou para sempre.  Essa era a sua amargura de alma, a dor que carregou até o dia de sua morte.


Benício e Maria se apaixonam


Benício trabalhou uns quatro anos de meeiro com João. Ficou de casa. Era um sujeito muito trabalhador. Ele e Maria gostavam de ver, no inverno, os navios, gaiolas e lanchas que passavam transportando os seringueiros novos que iam chegando com a 2ª guerra, produtos manufaturados e descendo o rio carregados de castanha, borracha e couro de bichos.


Benício e Maria se apaixonaram, principalmente depois que Benício fez a barba, cortou os cabelos e passou a andar bem-vestido com roupas que João comprou na cidade de Xapuri. Era um homem bonito.


No final de sua vida, o maior remorso de Maria não era por João ter matado de peixeira o homem que a roubou e a deflorou aos 12 anos de idade. Pelo contrário, João fez justiça.  Foi não ter sido Benício o 1º homem da sua vida a tocá-la em um lugar que só quem ama de verdade pode fazê-lo: Na intimidade mais íntima, no espaço sagrado da honra. Depois que ela o conheceu e o amou,  o honrou por todos os dias de sua vida. Ele, também.


Foi por esse tempo, aos 94 anos de idade, que ela contou essa história ao neto. Sentada em uma rede disse:


_ Meu filho, eu preciso lhe confessar uma coisa…seu avô não foi o primeiro homem a ter relações comigo. Um dia eu fui roubada e violentada…


_ Está tudo bem vozinha, já faz tanto tempo, você e o vovô foram tão felizes, se amaram tanto. É uma história tão bonita a de vocês.


Naquele final de tarde Maria chorou profundamente se perdoando de uma culpa que ela nunca teve: Não ter sido Benício o seu primeiro homem. Era só uma menina de 12 anos, não podia fazer nada quando foi roubada. Com o coração em paz ela disse ao neto:


_ Estou farta dos dias, quero que Deus me chame, já vivi muito, quero descansar. Pouco tempo depois descansou…em paz.