Às duas e pouco da madrugada, ainda era possível ver estrelas no céu da Vila Restauração, em Marechal Thaumaturgo. Carneirinho colocou uma água no fogo pra fazer o café, enquanto eu juntava as coisas na mochila. Sorriso e nosso barqueiro estavam atrasados. O combinado era sair às três do Porto.
Sorriso chegou sem o barqueiro e avisou que passou na casa dele, mas não conseguiu acorda-lo, uma bebedeira na noite anterior derrubou nosso barqueiro. Com a farofa no saco e de café tomado, fomos atrás de outro barqueiro, para começar o trajeto. Eram cinco horas da manhã quando Mauricelio atracou no porto para seguirmos.
Eu, Sorriso e Mauricelio subimos o Tejo até a entrada do Riozinho, um igarapé bem seco que dá acesso até o início da caminhada. Sorriso se animou com a espuma que descia o igarapé. “Deve ter chovido um pouco nas cabeceiras”, porém não o suficiente para que não tivéssemos que descer da canoa diversas vezes para empurra-la, nas cachoeiras e balseiros.
A cachoeira do inferno é a maior do trajeto e impressiona pela beleza. Mauricelio, que habilmente desviava de todos os balseiros e subia as pedras mesmo com pouca água, já reclamava da volta. Sem minha ajuda e do Sorriso é um pouco mais difícil passar alguns obstáculos, mas é como dizem, pra baixo todo o santo ajuda.
Sorriso apontou de longe a última casa de moradores que existe no Riozinho. “Daqui pra frente não mora mais ninguém”. Em uma das praias que descemos para a canoa seguir, um rastro de veado às margens chamou atenção, assim como algumas pegadas de gente. Acho que os meninos estavam caçando por aqui ontem, afirmou Sorriso me ensinado sobre a caça de canoa com lanterna, às margens do igarapé.
A barraquinha, ponto de saída para a caminhada é uma pequena casinha de madeira, onde alguns atam as redes e passam a noite para sair bem cedo para a caminhada. Já era manhã quando chegamos, aproveitamos para comer uns biscoitos a próxima parada séria no meio do trajeto no Santo Dumont, fronteira de Marechal com Jordão.
Começamos a caminhada num ritmo forte, pelo menos era o que eu achava, Sorriso nunca esboçava cansaço ou coisa parecida, sempre ficava me alugando, perguntando se eu queria voltar. Com uma hora de caminhada a proposta do Sorriso já parecia tentadora, mesmo sendo impossível voltar. A essa hora Mauricelio já estava na metade da viagem de volta para Vila Restauração. Muita taboca serrava o caminho que nos obrigava a andar sempre curvado o que aumentava a dificuldade e meu cansaço.
Rapidamente tomei toda a água que levávamos e ficava perguntando ao Sorriso onde tinha outro igarapé para tomar mais. O calor e umidade eram intensos. O tempo de chuva se formou e o vento balançava as árvores com força. -“Se chover vamos parar?” Perguntou Sorriso. “Podemos ficar num oco de pau! Sempre em frente era meu lema, vamos seguir na chuva, não quero dormir na mata.
A chuva molhava a bota e a mochila que a essa altura parecia pesar uns 500 quilos. Sorriso tomou minha mochila para continuarmos seguindo. Quando chegava em um igarapé eu deitava na água para descansar e pedia a Deus forças para continuar a andando.
O passo já era lento e Sorriso falava em dormimos pelo menos no Santo Dumont. Metade da viagem, eu perguntava o tempo todo se ainda estava longe, ele repetia sempre, daqui umas duas horas chegamos e essas duas horas nunca passavam. Mesmo persistindo na caminhada, parecia que o centro ficava cada vez mais longe. Já chamava o ponto de Centro do Mundo tamanha era a distância para chegar.
A chuva cessou um pouco antes de um igarapé onde bebi uns dois litros d’água. Perguntei mais uma vez ao Sorriso se estava longe, ele repetiu, duas horas. Só se for de relógio de grande, porque essas duas horas não chegam nunca. Enquanto reclamava vi um clarão no meio da mata e lá estava a casinha de madeira, descanso para os viajantes e caçadores chamada Santo Dumont .
Comemorei como se ganhasse uma copa do mundo, subi a pequena escada e desabei deitando no chão frio de madeira. Sorriso tirou a farofa da mochila para almoçarmos, já estávamos com mais de cinco horas de caminhada e passava das uma. Farofa de carne e frango desfiados servidos no saco de plástico temperados com a fome e cansaço, estava deliciosa.
– “E aí? Vamos dormir aqui? Ou tu aguenta chegar no Jordão?”, perguntou Sorriso! Sempre em frente, sigamos. Sorriso avisou que dali pra frente o caminho era melhor, pois a prefeitura do Jordão através do ex-vice prefeito Demir Figueiredo havia limpado a picada na mata. Descobri depois que a esposa do Demir é da restauração e que ele buscou ela de pés e a levou para o Jordão!
O caminho em frente era uma estrada de seringa limpa, porém as subidas de terra eram desafiadoras, a cada ladeira não deixava de reclamar e torcer por terras mais planas. Nessa parte boa vamos sempre correndo pra chegar mais rápido, afirmou Sorriso, que parecia que tinha começado a caminhar naquele momento. Nas encostas de morros o caminho ficava perigoso, ele é estreito e ainda estavam escorregadios da chuva.
Sorriso me contou sobre um casamento coletivo no Jordão que casais da Vila Restauração fizeram. Vieram o caminho de pés os noivos, as noivas de avião. Diz que o casamento foi adiado uns dias por que tinha uns índios brabos rondando o caminho. Fiquei em dúvida! Será que o sorriso estava querendo me fazer medo, ou era mais uma das muitas histórias desse caminho, utilizado principalmente pelos times de futebol do Jordão e da Vila Restauração, que alternavam campeonatos nas cidades.
Uma árvore tombada no meio da trilha me assustou, caiu havia pouco na chuva. Se estivéssemos por ali na hora seria uma tragédia. O sol foi se pondo e os mosquitos começaram a incomodar, assim como as câimbras nas duas pernas. Minha vontade era parar! Vamos dormir aqui gritei para Sorriso! Só falta umas duas horas ele gritou de lá. Sorriso e suas duas horas.
Aqui é o roçado da última casa do ramal, afirmou Sorriso me mostrando uma plantação de macaxeira no meio da mata. Daqui duas horas chegamos! Pensei, por que alguém planta um roçado tão longe!!! Já não tinha sol quando despontamos num clarão! Era o fim da mata, sentei no capim ofegante feliz por ter chegado do outro lado. Sorriso ganhou o capinzal e voltou com uma palma de banana, que havia deixado ali para amadurecer a última vez que esteve por lá.
Agora é só seguir no Ramal, tem um rapaz mais adiante que pode nos levar de moto até a beira do rio. Tirei as botas para seguir na lama enquanto iluminávamos a caminhada com a lanterna do celular do Sorriso. Uma meia hora a frente, encostamos na cada do senhor Gildo Nascimento. Pedi água e perguntei ao filho dele Lucas se nos dava uma carona de moto até a beira do rio. Uns 10 minutinhos adiante.
Do lado de cá do rio era possível ver a cidade de Jordão e a movimentação de domingo na igreja de São Sebastião. O rio Tarauacá estava cheio e não seria possível cruzar de pés como eu havia programado. Pegamos uma canoa emprestada e chegamos, cansados e com fome. Depois de um espetinho na esquina do mercado do Jordão me despedi do Sorriso! Segui para um lado e ele para o outro! Gritei, amanhã nos vemos! Ele sorriu como sempre!
Veja o resumo de cada momento:
Cesário Braga escreve todas às sextas-feiras no ac24horas.com