Curiosamente, com a proximidade das eleições e a corrida pelo voto, no país inteiro candidatos e partidos que deveriam aproveitar a oportunidade para afirmar e expandir a sua ideologia, passaram a omitir-se desse tipo de debate. É como o sujeito esconder a própria identidade na hora de pedir o emprego. O empregador, neste caso, o eleitor, se arrisca a “contratar” gato por lebre.
Ideologia não é roupa, é pele, se for muito profunda, é carne, não dá pra mudar de uma hora pra outra ou dizer que não tem. Todos têm a sua e negar isto, reduzindo o debate eleitoral, por exemplo, à zeladoria da cidade ou à quantidade de creches que as famílias precisam é uma estratégia que só pode resultar em despolitização da sociedade.
Sucintamente, como o espaço permite e, fugindo do academicismo que normalmente envolve um tema tão amplo, pode-se dizer, grosso modo, que ideologia é a visão de mundo que determinado sujeito, ou um grupo (partidos políticos, por exemplo), adota como conjunto organizado de ideias, valores e princípios capaz de mover as transformações sociais. Em termos ainda mais simples para facilitar o entendimento, diria que a minha ideologia é a lente, intelectualmente formada, com a qual enxergo o mundo e suas transformações.
Sendo assim, parece estranho escolher nas eleições alguém que esconde sua ideologia. Vou correr o risco de eleger alguém que enxerga a realidade com lentes de cores e alcance muito diferentes das minhas? Farei isso só por causa de uma provável pavimentação na minha rua? Isso não é política, pelo contrário, é mera trama eleitoral despolitizante, é gerencialismo raso que se pode arguir em seminários de franquias, mas não na disputa entre partidos políticos.
Virou costume candidatos de pouco apego às próprias ideias, ou delas envergonhados, apresentarem como desculpa que as eleições municipais não são adequadas ao debate ideológico, que os eleitores de prefeito e de vereador estão interessados mesmo é na iluminação da rua, na coleta de lixo, na pintura do meio fio etc. Pode ser, mas isso apenas denota o desconhecimento da real importância da política, e um candidato em campanha não deveria ajudar na despolitização da sociedade. Pelo contrário, cabe ao candidato e aos partidos educar o eleitor no sentido de realizar escolhas claras, conscientes e, neste processo, quem sabe, convencê-lo a adotar a sua visão de mundo.
O discurso recorrente de que o debate ideológico é coisa pra se ver na eleição nacional, equivale a tratar o eleitor como estúpido na tentativa, talvez, de ludibriá-lo, escondendo a verdadeira face do candidato. É um recurso eleitoral que encontra paralelo na República Velha, quando se instituiu o “voto de cabresto”. A rigor, considerados os momentos históricos, qual a diferença entre a promessa de doação de uma ovelha em 1920 e a promessa de uma rua asfaltada em 2020?
A transferência do debate ideológico para a disputa nacional, significa perder a melhor chance de tratar diretamente com o cidadão e mostrar-lhe com clareza as diferenças entre os candidatos a partir de seus princípios, valores e ideário. Não podemos esperar o vento soprar em Brasília para tomarmos a nossa direção, para fazermos escolhas políticas. Pelo contrário, temos que fazer Brasília seguir o rumo que determinamos desde aqui, onde a vida pulsa e as ideias colidem ou se harmonizam.
Não creio que se possa ajudar a transformar a sociedade em qualquer sentido desideologizado a política, com candidatos escondendo quem verdadeiramente são e o que pensam sobre ela. Não há chance de dar certo. Em qualquer sentido que se proponha a realizar mudanças reais, consequentes e perenes, elas devem começar no bairro, na vila, no município e assim por diante, expressando o conteúdo ideológico da mudança. Sem isso, é eleição de condomínio, não merece ser chamada de política.
Quando digo que ideologia é pele, não afirmo que ela tenha que ser eterna, imutável, que o sujeito não possa rever seus conceitos e alterar sua visão de mundo. Quero dizer que cada um de nós, candidato ou não, tem uma história que não se esfumaça na nova filiação a uma legenda partidária ou a uma coligação, somos o que pensamos, o que fizemos, no que acreditamos, enfim, temos um conteúdo filosófico, ético, moral e político que não pode ficar pendurado no cabide para vestirmos depois das eleições conforme o resultado.
É necessário que a população julgue cada candidato, cada projeto administrativo e cada programa de governo em sua moldura que, neste caso, é a ideologia subjacente. Não há, como sugerem alguns, neutralidade ideológica na eleição municipal. Essa presunção um insulto à inteligência das pessoas e um desprezo ao eleitor.
Percebo, de outra parte, um certo “medinho” do acirramento do debate político. Diferentemente de muita gente que conheço, pessoas sempre muito bem intencionadas, penso que a tal polarização política, obviamente assegurada a civilidade no trato interpessoal, faz deste um dos momentos mais ricos da democracia brasileira. Aliás, nos ensina a História que não é na calmaria dos consensos que a sociedade avança. Então, por que temos que esconder nossa ideologia, conter nossas diferenças essenciais e nos enfiar na contabilidade de quem promete mais e melhor?
Avisemos a todos os candidatos: Político é o que sois, uma ideologia política é o que tens, sua história política é o que trazes! Tenho certo que, independentemente da cidade brasileira e do contexto local, será decepcionante o resultado eleitoral que representar unicamente a força do ajuntamento de lideranças e não a vitória das ideias que juntam os cidadãos.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às sextas-feiras no ac24horas.