Por Erick Venâncio
Há 30 anos Zuenir Ventura publicou um livro intitulado 1968: o ano que não terminou. Nele, o autor aborda os fatos ocorridos naquele ano peculiar. A cultura pop capitaneada por Beatles, Rolling Stones, Caetano, Gil, Chico, etc, e a contracultura hippie, o período mais duro da ditadura militar no Brasil, com a promulgação do AI-5, fala de um mundo imerso nos horrores da Guerra do Vietnã e atônito diante do assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, além de uma sucessão espetacular de movimentos de jovens que foram às ruas contra o abuso de poder, qualquer poder, de direita ou de esquerda.
2020 certamente é um ano que também não terminará, pois o aprendizado que estamos a assimilar hoje se projetará para o futuro.
Quem, há sessenta dias atrás, poderia cogitar que passaríamos pelo que estamos a viver hoje? Quem imaginaria que uma crise sanitária se espraiaria por todo o Mundo e modificaria o nosso padrão de convívio e relacionamento interpessoal, mudaria hábitos de consumo e de segurança sanitária; mostraria que, em alguma medida, somos capazes de rapidamente nos amoldarmos a um novo estilo de vida, no qual os deliveries, lives e videoconferências, antes ferramentas de segundo plano, seriam essenciais à nossa sobrevivência.
Contudo, a reboque desse novo jeito de viver e ver o mundo veio algo que, infelizmente, já vem, há tempos, se enraizando em nossa sociedade: o sectarismo.
Assim, num mundo que é cinza por natureza, se notabilizaram aqueles que só conseguem enxerga-lo em preto ou branco. Fulano, ou só é bom ou mau. Sicrano, ou só é certo ou errado. Ou se é pró-saúde ou pró-economia.
E assim, num momento que demanda tanto esforço coletivo e união, temos nos afastado cada vez mais da racionalidade, da solidariedade, do diálogo e da temperança, tanto quanto nos aproximado de oportunismos, radicalismos e polarizações.
Nesse trilho, algumas pessoas que não conseguem entender a exata dimensão da responsabilidade de suas funções públicas ou institucionais, sequer se esforçam para compreender e se sensibilizar com o outro lado da moeda.
Aqui no Acre temos visto um esforço extraordinário de governos, indistintamente, seja do estado ou dos municípios, no sentido de preservar vidas, com a tomada de diversas medidas que, se não são aquelas que todos entendem como adequadas, se apresentam no propósito de possibilitar que enfrentemos esse dificílimo momento.
A crise econômica que veio na esteira da pandemia atinge diretamente e sem exceção todos os setores da economia e, via de consequência, empregos, que todos os dias estão a desaparecer diante da exponencial retração da atividade econômica.
Talvez felizmente, cá entre nós temos uma realidade na qual o estado ainda é o principal indutor da economia, pois o dinheiro por ele injetado, seja através de investimentos, seja por meio do funcionalismo público ou do pagamento de programas de transferência de renda, é o que nos sustenta.
Nesse sentido, a manutenção do pagamento de salários, benefícios, pensões e bolsas é algo que exerce um papel relevantíssimo em nossa economia local. Por isso mesmo, o esforço dos gestores públicos em manter o pagamento de salários não pode ser contrastado por oportunismos corporativos ou políticos de ampliar vantagens (ainda que justas e devidas), pois estamos a viver um momento de guerra pela sobrevivência.
Por outro lado, é necessário que também se olhe para aqueles que não estão no serviço público. Pequenos empresários, comerciantes, prestadores de serviços, profissionais liberais e tantos outros que empreendem, geram empregos, mas que estão a definhar em meio à paralização, e que também precisam da mão protetora do estado em todos os seus níveis.
Por isso, é necessária a edificação de amplo pacto local, no qual todos os poderes, instituições e entidades privadas sentem à mesa, discutam olho no olho, entendam e respeitem a visão de cada um, compartilhem dados e conheçam, reciprocamente, a realidade da economia e da saúde pública.
Só assim será factível erguer coletivamente o consenso do possível, com a construção de um plano de saída que, sem sacrificar vidas, possibilite com que paulatinamente as atividades econômicas sejam retomadas.
É chegada a hora de abandonar o ringue e tomar assento à mesa, a fim de que possamos, com espírito público, sensibilidade e responsabilidade, enxergar algum horizonte e salvar o futuro dos nossos filhos.
Erick Venâncio Lima do Nascimento
Presidente da OAB/AC