Meus avós paternos imigraram da Palestina para o Brasil no início do século passado e se instalaram numa pequena cidade no interior de São Paulo, trabalhando como comerciantes. Vieram com passaportes de cidadãos britânicos.
Depois mudaram-se para a capital e, quando eu era criança, moravam em um prédio de apartamentos na esquina da rua da Cantareira com a Av. Senador Queiróz, bem em frente ao Mercadão. Dali ainda me lembro do perfume dos temperos vendidos a granel nas lojas da rua e das vezes que saí do prédio de canoa nas enchentes do Tamanduateí.
Foram em seguida para Santos em busca de um pouco da tranquilidade que o centro velho de São Paulo já não ofereciam. Nessa época eu devia ter lá meus dez anos, Renato nove e nosso primo Ibrahim 11 e costumávamos passar alguns dias de férias por lá. Íamos à praia pela manhã e às sorveterias à tarde. Vez por outra eles nos davam uns trocados também para gastar no fliperama embaixo do hotel Balneário.
“Roberto gosta de ovo mexido, Renato gosta de quibe, Ibrahim gosta de pizza”. O apartamento era mínimo, mas a mesa era sempre farta. Meu avô saia cedo para caçar siris e catar mariscos na praia em frente ao prédio. Os bichos iam ainda vivos para a panela. Eu gostava mesmo dos ovos mexidos com marisco e comia sempre pegando com pedaços de pão. Guardo o aroma dos molhos da pizza e da massa que também ela usava nas esfirras.
À noite era hora de ouvir histórias, ou parábolas, todas, como as fábulas, com uma moral ao final. Acho que eram quase sempre as mesmas porque só me lembro de umas poucas, repetidas à exaustão como os desenhos e comedy capers da TV.
Uma vez eu vi minha avó atenta ao noticiário que mostrava ao vivo a desocupação de uma escola ou hospital, pelo exército de Israel, com o general Moshe Dayan à frente, no lugar que ela havia vivido a juventude. Chorava atônita. Saiu de lá fazia muito tempo, antes das guerras, do Holocausto, da ocupação judaica. Não via sentido no que acontecia por lá então.
Depois de refeita, nos contou fatos que eram cotidianos no bom relacionamento entre os diversos grupos que viviam alí, especialmente entre os judeus e os cristãos. Se havia inimigos, tinham sido os turcos de tempos anteriores.
Meio século depois e a palavra Paz carece a cada dia de menor significado naquele canto do mundo. A Terra Prometida pelo mesmo Deus da Bíblia, Corão e Torá transformou-se no inferno de Dante. O petróleo ajudou a misturar uma questionável vontade divina com a inexorável ganância humana, travestida do pomposo apelido de geopolítica.
Hoje, em nome de defender a humanidade, um presidente estrangeiro pode determinar a morte sem julgamento de quem entender perigoso e mandar o drone de plantão executar a sentença. Já não há mais fronteiras para a insegurança em todo o Oriente Médio. Fermento para a cultura de lideranças sempre mais radicais.
Olhando pela tela da TV ou pelas postagens das redes sociais, vez por outra uma imagem mais forte da cena de guerra ou da criança refugiada até nos compadece. Mas isso se dispersa depois da próxima notícia sobre a queda do dólar ou o placar do futebol. Tudo se passa muito longe dos nossos sentidos. Sem dor e sem odor.
Que bom se as notícias deste ano só me trouxessem as boas recordações.
Roberto Feres escreve no ac24horas às terças-feiras.