A aprendizagem difusa é a grande dificuldade para a maioria dos seres humanos. Talvez a grande razão seja o próprio comportamento do cérebro, que tem como característica principal a busca de utilizar esquemas já conhecidos para lidar com todos os tipos de desafios. É como se houvesse a possibilidade de todo problema ser resolvido sempre com o único e mesmo esquema, único e mesmo caminho. Infelizmente, quase todos os grandes obstáculos por que temos que passar ao longo da vida exigem procedimentos diferentes do estoque de conhecimento cerebral disponível. Eles exigem que nos aventuremos de construir novos procedimentos o que, em termos de metáfora neurológica, significa cavar novos caminhos no cérebro, relacionar os neurônios de forma diferente ou ativar novas relações neuronais. Muitas vezes, ou quase sempre, esses neurônios estão muito distantes daqueles que costumeiramente usamos, de maneira que isso caracteriza a ideia de difusão: espalhamento, dispersão. É preciso, portanto, construir sentidos para que algo possa se estabelecer em forma de aprendizagem. Assim, este ensaio tem como objetivo explicar a aprendizagem difusa.
Quem está acostumado a ver alguém dirigir um automóvel toma essa habilidade como algo natural, tão comum quanto andar. Contudo, se decide passar pelo processo de aquisição da capacidade de conduzir um veículo, começa a perceber que aquilo que se lhe pareceu normal não o é, pelo menos não da forma como imaginava, em que bastava entrar no carro, acionar a chave e sair dirigindo. É preciso compreender a dinâmica da troca de marchas, o que se dá no campo da cognição, combinada com o manuseio do câmbio, por parte das mãos, de forma simultânea com o acionamento da embreagem e acelerados, com os pés. Mas não é apenas isso, cognição e domínio dos membros inferiores e superiores precisam trabalhar de forma sincronizada com o agravante de que procedimentos de segurança precisam ser observados o tempo todo.
No exato instante em que se pratica a aquisição da habilidade de direção, essa aprendizagem é completamente diferente de quase tudo o que já se aprendeu na vida. Tanto é assim que a maioria dos que pretendem ser habilitados é reprovada nos testes oficiais, de maneira que não é incomum encontrarem-se pessoas que repetiram as tentativas dezenas de vezes e tão poucos serem os que foram bem sucedidas na primeira delas. Aprender a dirigir encerra tantos desafios de organização neuronal quanto andar de bicicleta porque é um aprendizado diferente de todos os outros. E a grande razão dessa diferença é a necessidade de domínios de esquemas lógicos e do corpo distintos de forma sincronizada completamente diferentes de outros aprendizados anteriores. O aprendizado requer relacionamentos neuronais diferentes, sendo necessário um novo caminho das ligações das células cerebrais.
Aprender matemática e ciência é mais difícil do que todos os outros aprendizados que se realizou na vida. Muito mais do que dirigir e andar de bicicleta. Muito mais difícil, também, do que foi aprender a falar e andar, os dois grandes desafios de lidar com a aprendizagem difusa que os seres humanos têm que enfrentar e superar em primeiro lugar. A ciência diz que a dificuldade natural de se aprender matemática reside no fato de se lidar com fenômenos abstratos. Ainda que se veja e reconheça o número 2, é difícil compreender que tanto o símbolo quanto a ideia é uma invenção, uma convecção que os seres humanos inventaram para compreender a lógica das coisas que vemos. O número 2 pode ser uma coisa para quase todo o mundo, mas não para os cientistas da matemática, assim como a expressão f(x) = 2×2 – 3x + 2 não é a somatória dos números e sinais que ela contém. Não é fácil entender que isso é uma forma de explicar o mundo, explicação daquilo que é real, através de um artifício inventado, como as palavras e as frases.
A aprendizagem difusa é parecida, portanto, com o desvendar de segredos. Só que, no máximo, se sabe o contorno da solução, mas não se tem a menor ideia de como chegar até lá. Eu poderia escrever um poema tão belo quanto os de Fernando Pessoa ou pintar um quadro de tanta emoção quando os de Salvador Dali. O poema e o quadro são reais, mas não o seu conteúdo. E muito menos os caminhos, passo a passo, que me levarão a colocar no papel ou na tela aquilo que eu sequer sei os escopos, os contornos e até mesmo os temas. Para complicar, inúmeros dos nossos problemas e desafios são extremamente vagos, como é o caso da família que precisava dar um basta aos sofrimentos de que reclamava. O que é dar um basta? Isso é possível? O que seria aceitável para tal? Como proceder?
O que talvez diferencie as pessoas bem sucedidas das normais seja justamente a aptidão para lidar com questões complexas sem que se abatam pelo sofrimento. Cientistas e gênios fazem parte dessa elite cada vez mais crescente de pessoas que estão dispostas a enfrentar seus desafios e aprender como superá-los. E a ciência tem uma mãozinha muito eficiente neste sentido, através da combinação de esquemas focados mesclados com saltos em direção a esquemas difusos. É que a busca por similaridades tem a capacidade de nos fazer perceber as inconsistências de etapas conhecidas quando aplicadas para questões novas. É nesse momento que se dá o salto daquele esquema de relações neuronais para outro, o que equivale a dizer daquela etapa da solução para outra. Isso significa reconhecer que, futuramente, será necessário procurar a vinculação entre as etapas do salto.
O que queremos que seja compreendido aqui, contudo, é o reconhecimento de que nossos esquemas de lidar com as coisas são limitados. Há sempre inúmeros casos que exigem procedimentos completamente diferentes de tudo o que já se sabe e que está registrado no nosso cérebro. Esses casos são um desafio para o indivíduo construir novos esquemas neuronais, testá-los, retificá-los, escavá-los várias vezes, até que se tornem tão profundos que permitam a circulação da corrente elétrica das sinapses no estabelecimento de um caminho seguro. Quando isso acontece, transformamos a aprendizagem difusa em focada. E estamos aptos a ensiná-la a qualquer a quase todos.
Daniel Silva é PhD, professor, pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e escreve às sextas-feiras no ac24horas.