Em termos metafóricos, para que o conceito seja compreendido da forma a mais adequada possível, podemos considerar dois tipos de aprendizagem: a focada e a difusa. Muitos argumentarão, com razão, que isso não é aprendizagem, mas um dos diversos tipos de memória existentes no vasto catálogo taxonômico neurológico. O que queremos marcar com essa definição é justamente a ideia de aprendizagem como caminho que as sinapses percorrem no cérebro para construir o que sabemos, seja para manter esse saber provisoriamente, seja para sua manutenção permanente. É que aprender é percorrer um caminho, uma trilha, o que está de acordo com outra metáfora que utilizamos antes, que aprender é fazer sulcos no cérebro, da mesma forma que o fazemos quando tentamos escrever nas areias da praia ante a negativa do vento em tornar nosso escrito visível permanentemente. Neste sentido, este ensaio tem como objetivo mostrar como funciona a aprendizagem focada.
Eu não suportava cozinhar. Hoje, é uma das minhas fontes de prazer, da mesma forma que o constrangimento do lavar louça, limpar a casa, lavar roupa e inúmeras outras tarefas tiveram a mesma transformação em mim. Quando iniciei a trajetória de transformação de ódio em prazer, se fosse fazer um ensopado de peixe, primeiro cortava todos os temperos e lavava o peixe, depois punha a panela no fogo médio, acrescentava uma boa dose de óleo de soja que, aquecida, dourava uma cebola picotada. Como a cebola secava, mesmo ante todo o óleo, colocava um tomate picotado para hidratar e quando começava a ter consistência, acrescentava colorau. Como o colorau secava o conteúdo da panela, acrescentava água e o restante das verduras, especialmente salsinha. Quando começava a ferver, punha o peixe e deixava ferver por 5 minutos e apagava o fogo. Se quisesse caldo grosso, acrescentava duas colheres de farinha de mandioca em foco brando e mexia por mais 3 minutos. As pessoas achavam maravilhoso o meu peixe cozido.
Um dia, porém, pediram que eu fizesse um ensopado de carne. Sem que pudesse dizer não, cortei os mesmos temperos que usava para os peixes e também lavei a carne (atitude considerada um crime pelos especialistas). Antes de colocar a cebola, acrescentei alho, na mesma quantidade de óleo, cebola e colorau, seguidos de um pouco água (para o colorau não grudar e queimar o fundo da panela) e verduras. Em seguida coloquei a carne com um pouco de pimenta e cominho em pó, virando de vez em quando, para que o tempero aderisse a ela. Depois que tivesse aderido, acrescentava mais água e deixava ferver na pressão por 25 minutos, quando acrescentava batata, cenoura e abóbora em cubos e repolho. Afora o excesso de gordura que caracterizava visualmente meu ensopado de carne, todos aprovavam seu sabor.
Esses dois exemplos mostram claramente como é a aprendizagem focada em ação. Se fizéssemos um fluxograma das atividades executadas por mim, poucas diferenças significativas seriam vistas no processo de produção dos pratos (carne e peixe ensopados). Essas poucas diferenças também seriam encontradas no meu cérebro relativas aos caminhos que as ligações entre meus neurônios fariam para atualizar em mim aquilo que ele já sabia. Como eu tinha tido várias experiências em fazer ensopado de peixe antes, a cada vez que as repeti reforçava o caminho em forma de sulcos no meu cérebro, que é feito através de ligações físico-químicas chamadas sinapses.
Mas eu nunca tinha feito ensopado de carne antes. O que fez o meu cérebro? Sugeriu (e eu segui) o mesmo caminho que ele já conhecia. Contudo, eu desconfiava de que aquela não seria a trilha mais adequada para fazer a carne. O que fez novamente meu cérebro? Sugeriu pequenas alterações, como colocar alho antes da cebola (cebola gruda na panela, se colocada antes do alho), colocar pouca água antes de colocar as outras verduras para que fosse formado um pequeno caldo para eu fazer o tempero pegar na carne, especialmente o cominho, que meu cérebro até hoje considera elemento essencial para fazer carnes. De forma diferente, não vejo a menor chance de um dia eu colocar farinha de mandioca para fazer o ensopado de carne ficar com caldo grosso – para mim, caldo grosso é coisa de peixe e derivados, como frutos do mar.
A aprendizagem focada se caracteriza pela sugestão do cérebro em oferecer os caminhos que já conhece para resolver todos os tipos de problemas. É como se fosse possível uma solução única para todos os tipos de problemas, naturalmente que problemas correlatos (cozinhar carne é correlato de cozinhar peixe, que é correlato de cozinhar mariscos, que deve ser correlato de cozinhar dinossauros). É como se houvesse possibilidade de ensinar matemática do mesmo jeito que se ensina português ou filosofia. Aprendizagem focada é isso: o foco é aquilo que já se sabe, o caminho que já se percorreu, a solução que já possuímos. Aprendizagem focada é mais do que isso: sem perceber, aplicamos a mesma explicação para todos os tipos de problemas, tanto da minha quando da área dos outros, e nem percebemos o quão tolo isso parece ser.
Alguém poderia perguntar, de forma muito inteligente, se eu sempre soube cozinhar peixe. A resposta é não. A pergunta poderia ser refeita no sentido filosófico: já nasci sabendo cozinhar peixe? A resposta é a mesma. Eu aprendi a cozinhar. Aliás, eu não suportava sequer a ideia de cozinhar. Aprendi a fazer o ensopado aprendendo a fazer com muito cuidado cada detalhe do procedimento, passo a passo, várias vezes. Refiz o procedimentos dezenas de vezes, alterei o conteúdo de cada etapa trocentas vezes. Muitos conhecimentos focados nasceram difusos, veremos mais adiante.
A cada vez que eu procedia diferente, meu cérebro ficava confuso, de forma que na experiência seguinte ele não sabia como fazer aquela atividade alterada. Então eu consultava minhas anotações. Até um ponto em que nada praticamente se alterou, que é o estado de hoje. E isso permanecerá assim até que um abalo me force a alterá-lo. Se pequenas alterações forem suficientes, continuo no modo focado; se não forem, terei que começar tudo de novo. Agora, com a aprendizagem difusa, com suas dificuldades e complexidades. Exatamente como eu aprendi a cozinhar.
Daniel Silva é PhD, professor, pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e escreve todas às sextas-ferias no ac24horas.