Há mais de 10 anos a imprensa nacional vem requentando notícias sobre uma antiga e inquestionável realidade: o gado está tomando o lugar das seringueiras na Reserva Extrativista Chico Mendes, a mais conhecida unidade federal de conservação de uso sustentável do Brasil. Também não é novidade a razão mostrada na mídia pela qual os moradores da reserva vão, gradualmente, cedendo espaço às pastagens em suas colocações: a falta de expectativa gerada pela ausência de políticas públicas que garantam a valorização e a consolidação do modo extrativista de produção. Apesar do cenário desalentador ampliado pelas queimadas que explodiram na Resex em 2019, representantes do legado de Chico Mendes afirmam que o movimento extrativista respira e ainda consegue enxergar uma luz a brilhar no fim do varadouro de seringa e de castanha.
Entre os principais produtos extrativistas, a castanha, que já chegou a ser vendida ao preço médio de R$ 110 a lata de 10 quilos, ficou, na safra deste ano, na média de R$ 55, de acordo com a Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre – a Cooperacre. Não há previsão para reação a curto prazo do preço do produto no mercado, que está abarrotado em razão da supersafra de 2018, que bateu a casa de 1 milhão de latas. Em 2019, a safra também foi alta, girando em torno das 700 mil latas. Ainda com o preço em baixa, a noz amazônica responde pela segunda fonte de receita na economia do município, atrás do gado, de acordo com Tião Aquino, membro do Conselho de Gestão da Cooperacre.
A borracha também perdeu a força com a interrupção da compra do látex dos extrativistas da UC pela fábrica Natex, ainda em 2016. O impulso do momento em Xapuri se dá por um contrato com a empresa francesa Veja, que produz sapatos orgânicos para o mercado europeu. Em 2019, a Cooperacre vai entregar 270 toneladas de Cernambi Virgem Prensado (CVP) para a indústria, que é, atualmente, quem melhor paga aos extrativistas pela prestação de serviços ambientais – compensação por práticas de conservação de áreas de preservação. Os serviços ambientais são definidos como “iniciativas individuais ou coletivas que podem favorecer a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos”, segundo o Projeto de Lei 312/15.
A Veja paga atualmente o preço de R$ 5,52 pelo quilo do CVP, que no mercado atual custa R$ 2,50. Com o incentivo de R$ 1,00 pela qualidade do produto feito pela cooperativa somado às subvenções federal e estadual, o seringueiro está recebendo hoje o valor de R$ 12,50 pelo quilo da borracha natural. Recém-criada, a Cooperxapuri – Cooperativa Agroextrativista de Xapuri – já comprou neste ano 60 toneladas de borracha de uma meta de 100 toneladas para cumprir com o contrato Cooperacre/Veja, o que promoverá a movimentação de R$ 1,2 milhão na economia local.
“Nós temos a convicção de que mesmo com as dificuldades que o setor extrativista vem enfrentando nos últimos anos ainda vale a pena investir e acreditar na maneira tradicional de produção. Precisamos, para isso, da ajuda do governo com relação à liberação dos recursos referentes aos subsídios garantidos por lei, mas, acima de tudo, precisamos que o próprio seringueiro faça a sua parte, seja retomando o interesse em produzir, seja se preocupando com a manutenção da floresta. O gado deve ser apenas uma atividade complementar, como regulamenta o Plano de utilização da Reserva Extrativista Chico Mendes”, explica Tião Aquino, que também é o presidente da Cooperxapuri.
Outra esperança de fôlego para a borracha é a retomada da produção de preservativos pela nova gestora da fábrica governamental agora administrada por meio de uma Parceria Público-Privada. A Indústria de Produtos de Látex da Amazônia anunciou recentemente que vai reativar a linha de produção no próximo dia 25 de setembro. A direção do empreendimento já está negociando com os seringueiros de Xapuri a compra de matéria-prima prometendo pagamento à vista pela produção, o que é uma novidade. Não há ainda previsão do preço que a fábrica pagará ao produtor pelo látex, mas para o presidente da Produtos de Látex da Amazônia, Émerson Feitosa, fatores como o pagamento na entrega e o recebimento do produto na colocação serão incentivos para o seringueiro vender para a indústria.
“Talvez não possamos competir em preço com a Cooperxapuri, mas temos a nossa proposta. E a nossa intenção, realmente, não é competir, mas agregar. Acreditamos que é plenamente viável para o seringueiro produzir para a cooperativa e para a fábrica”, afirmou.
Polêmico, o Manejo Florestal Madeireiro também prossegue, a se perceber pelas enormes carretas bitrem que trafegam pela BR-317 e chegam carregadas de toras à antiga Fábrica de Tacos construída pelo governo do Estado em 2007. Rebatizado como Complexo Industrial Madeireiro de Xapuri, o empreendimento foi assumido por uma empresa que investiu R$ 13 milhões para retomar o negócio. Uma das principais fontes de matéria-prima do complexo é a madeira retirada da Resex CM via plano de manejo. Segundo diz o presidente da Cooperativa dos Produtores Florestais Comunitários (Cooperfloresta), Francisco Barbosa de Aquino, o Daú, quase 100 famílias são beneficiadas pelo plano comunitário que garante participação nos lucros da comercialização da madeira a todos os envolvidos na atividade.
“O manejo continua a ser praticado dentro das normas do plano comunitário, onde 97 famílias estão sendo diretamente beneficiadas pela exploração da madeira. O grande problema que o manejo enfrenta na atualidade é a exploração ilegal. A madeira está sendo traficada hoje em dia como se fosse drogas. Até o Polo Moveleiro de Xapuri está comprando madeira ilegal”, denunciou.
O gado na Resex
Moldada nos ideais do líder sindical Chico Mendes de assegurar a permanência dos seringueiros em suas colocações ameaçadas pela expansão de grandes pastagens, pela especulação fundiária e pelo desmatamento, a Reserva Extrativista Chico Mendes não conseguiu durante os quase 30 anos de sua existência se assentar sobre um modelo de uso que garantisse, de maneira efetiva e definitiva, a sua conservação combinada com a garantia de sobrevivência digna para os seus habitantes sem a necessidade de se apelar para a prática de atividades contrárias ao pensamento que impulsionou a sua criação, em março de 1990.
O resultado mais visível dessa realidade é a adesão à pequena pecuária, uma atividade que gera um reforço substancial na renda do extrativista, mas que também promove as práticas do desmatamento e das queimadas induzidas. Com 1.900 famílias estabelecidas nos 7 municípios acreanos por onde distribui os seus quase 1 milhão de hectares, segundo dados do último cadastro feito pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a reserva já apresentava, em 2008, passados 20 anos da morte de Mendes, um desmatamento 11 vezes maior do que o que havia na sua criação, e o gado chegava a quase 10 mil cabeças. Em 2017, o desmatamento alcançou 6,5% da área total, segundo o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), se aproximando perigosamente do limite imposto pelo plano de manejo da área, que é de 10% de desmatamento.
Júlio Barbosa de Aquino, que foi prefeito de Xapuri por dois mandatos, é hoje o secretário-geral da Associação dos Moradores e Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes (Amoprex), a maior organização de habitantes da Unidade de Conservação. Aquino chama a atenção para a invasão da reserva por pecuaristas que estão no entorno da UC. Os moradores investem na formação de pastagens para alugar aos fazendeiros que estão no entorno da Resex. O negócio é aparentemente mais rentável e de retorno mais rápido para as famílias, que também passaram a experimentar de um novo padrão de consumismo a partir da abertura de estradas e da chegada da energia elétrica por meio do programa Luz para Todos.
“Nós somos de acordo com que o seringueiro tenha essa melhoria na sua qualidade de vida, que tenha a motocicleta, a geladeira, a televisão e o ramal passando na porta de sua colocação. Mas precisamos entender também que tudo isso tem de vir acompanhado do pensamento de que temos que preservar a floresta. O extrativista pode ter o gadinho dele para as emergências, mas que esse gado seja dele e não de gente de fora da Resex, como vem acontecendo”, complementa.
Loteamento de Colocações
Outra ameaça denunciada pelo secretário-geral da Amoprex é o loteamento de colocações de seringa que vêm ocorrendo dentro e fora da reserva promovido pelo próprio seringueiro, que vende pedaços da sua área, apesar dessa prática ser estritamente proibida pelo Plano de Utilização. Ele reafirma o que vem sendo dito reiteradamente por estudiosos do assunto e veiculado por setores da mídia que cobrem a Amazônia.
“A Resex Chico Mendes está sendo invadida de maneira direta, por pessoas sem nenhuma ligação com a história extrativista, que compram áreas de legítimos moradores, apesar da proibição, e introduzem um pensamento dissonante do ideal de uso sustentável. Com essa fragmentação, aumenta o número de famílias em uma mesma área e, consequentemente, aumenta o desmatamento” diz Júlio Barbosa.
O ex-prefeito afirma também que o resultado ainda não divulgado de um levantamento ocupacional feito recentemente pelo ICMBio vai ser assustador. O último cadastro feito pelo órgão, em 2009, apontava para a existência de 1.900 famílias extrativistas na Resex CM. Agora, ele crê que haja entre 2.500 a 3.000 famílias instaladas na UC, a maioria sem nenhuma relação com a história de luta que resultou na criação da reserva.
“Essas pessoas chegam aqui com a intenção de desmatar e de destruir o que resta de floresta nas colocações que são loteadas ilegalmente. O resultado disso são as queimadas que são produzidas pelo desmatamento para a formação de pastagens. Ninguém queima para plantar arroz, mandioca ou milho, as queimadas estão diretamente ligadas ao desmatamento para a expansão das pastagens”, explicou.
O seringueiro diz que a maior parte dos problemas que a Reserva Extrativista enfrenta se dão por conta da ausência de fiscalização e monitoramento. Segundo ele, o órgão criado para ser o guardião da Unidade de Conservação é inoperante. Com escritório estabelecido apenas em Rio Branco e contando com pouco mais de meia dúzia de fiscais e funcionários administrativos, O ICMBio não consegue cuidar de uma área de quase 1 milhão de hectares espalhados por sete municípios acreanos.
“Com relação ao ICMBio, nós estamos vivendo a pior situação porque os técnicos e analistas ambientais do órgão sempre tiveram muitas dificuldades de trabalho por falta de estrutura. Até mesmo as reuniões do Conselho Deliberativo são um deus nos acuda para acontecer em razão da falta de recursos. Então, nesse momento em que o governo federal busca a qualquer custo fragilizar todas as políticas voltadas para a questão do meio ambiente e da sustentabilidade, como é o caso do Conama, que é um órgão importantíssimo para a regulamentação das leis seja no plano federal, estadual e municipal, não podemos imaginar que o ICMBio vá conseguir dar conta de uma reserva como é a Chico Mendes”, concluiu.
Procurada pela reportagem, a Coordenação Regional do ICMBio no Acre (CR1) informou que, para a obtenção de qualquer informação a respeito da atuação do Instituto, o único caminho é a solicitação via documento oficial à direção do órgão em Brasília. Quanto à concessão de entrevistas, a informação foi de que os servidores do ICMBio, inclusive o coordenador, Tiago Juruá, são orientados a atender pedidos da imprensa apenas com “autorização hierárquica”.