Najla Passos
Por Carta Maior
BRASÍLIA – Brasileia é uma pequena cidade de 20 mil habitantes cravada no sul do Acre, na fronteira com a Bolívia. É bem provável que a imensa maioria dos brasileiros jamais tenha ouvido falar dela. Fora das fronteiras locais, porém, o município faz sucesso. A cidade é a porta de entrada no Brasil de uma rota de imigração ilegal de haitianos para o país.
Hoje, a cidade hospeda 810 haitianos. Uma população que, fugida de um dos lugares mais pobres do mundo, e onde o Brasil é uma referência por comandar tropas de paz das Nações Unidas, sonha com a cidadania brasileira, que lhes daria o direito de trabalhar, de estudar, de usufruir o Sistema Único de Saúde (SUS), enfim, de viver legalmente no país.
O Brasil, porém, não possui um tratado internacional que exima os haitianos de visto de permanência. Eles também não podem ser enquadrados no conceito de “refugiado”, definido pela Convenção de Genebra, que considera como tal toda pessoa obrigada a sair de seu país, sozinha ou em grupo, devido a perseguições de caráter político, racial, de gênero ou religioso.
O combustível da fuga é a miséria. E, quando cruzam a fronteira da Bolívia o Brasil, os haitianos assumem a condição de imigrantes ilegais. Uma situação que também causa problemas para autoridades públicas brasileiras.
Em Brasiléia, 600 haitianos estão hospedados em um hotel do município com despesas pagas pelo governo do Acre. Recebem duas refeições diárias, além de café da manhã. Tudo isso significa um gasto mensal de R$ 1 milhão para os cofres de um dos estados mais pobres do país.
E este não é, nem de longe, o maior problema. “O hotel em que eles estão alojados tem capacidade para 80 pessoas e estão vivendo 800. Não há como cozinhar para tanta gente, os banheiros não comportam. Daqui a pouco, a epidemia de cólera que assola o Haiti chegará até lá”, afirma o senador acreano Aníbal Diniz (PT).
Entre os hóspedes, há 17 mulheres grávidas e crianças em idade escolar. Em Brasiléia, os sistemas públicos de educação e saúde não têm como atender tanta gente. Para conseguir documentos como CPF (Cadastro de Pessoa Física) e carteira de trabalho, precisam esperar cerca de um mês. E as perspectivas são de que o número de haitianos no município aumente cada vez mais.
Informações da Agência Brasileira de Informação (ABIN) e da Polícia Federal (PF) revelam que há 50 haitianos do lado boliviano da fronteira aguardando uma oportunidade para entrar no país. E outros que 200 já deixaram Porto Príncipe, a capital devastada do Haiti, em direção ao Brasil.
A rota identificada pelas autoridades brasileiras mostra que, do Haiti, os imigrantes ilegais seguem para a República Dominicana, que divide a Ilha de São Domingos com o Haiti. De lá, os imigrantes vão para Equador, Peru e Bolívia, até chegar ao Acre. É operada por pessoas conhecidas como “coiotes”, participantes de uma quadrilha que os serviços policias e de inteligência do Brasil tentam desbaratar.
Na cidade amazonense de Tabatinga, tríplice fronteira com Peru e Colômbia, os haitianos também chegam em grandes grupos. Lá, não é o governo do estado que acolhe os imigrantes, mas a sociedade civil organizada, principalmente por meio do trabalho da Pastoral do Migrante, da Igreja Católica.
Levantamento feito pelas Nações Unidas aponta que, atualmente, 1,1 mil haitianos estão na cidade. Em 2010, a Polícia Federal recebeu 476 solicitações de refúgio. Em 2011, foram 1075. Todas elas foram negadas, mas os pleiteadores conseguiram um visto humanitário. Muitos se deslocaram para Manaus, em busca de emprego.
É justamente na capital do Amazonas que se concentra o maior número de haitianos: 3,2 mil, a maioria mantida também pelas igrejas e comerciantes locais. Também há haitianos vivendo em Rio Branco (AC), Porto Velho (RO) e São Paulo (SP). Em todo o país, 3.274 já requereram visto de permanência e 1,3 mil receberam.
Calamidade pública
A pobreza e a miséria que, historicamente, colocam o Haiti no último lugar do ranking de desenvolvimento da América Latina e Caribe dificultam a reconstrução do país, após o terremoto de 2010, que afetou a vida de 3 milhões de haitianos e matou, de imediato, 222 mil pessoas.
“O terremoto foi terrível, mas o país já era miserável antes dele. Outros países que passam por catástrofes naturais, como Chile, conseguem se recuperar. Mas o Haiti, não”, justifica o representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, Andrés Ramirez.
Segundo ele, hoje, passados quase dois anos, o Haiti continua sofrendo os efeitos da catástrofe. “Cerca de 300 mil casas foram destruídas. Mais de um milhão de pessoas continuam vivendo em acampamentos, em condições muito precárias. Por isso, o surto de cólera no país”, afirma.
Além disso, a violência vitima, principalmente, as mulheres. “A incidência de gravidez nos acampamentos aumentou de 4% para 12%, principalmente devido aos estupros que ocorrem durante à noite, em função das deficiências de iluminação”, denuncia.
Andrés Rmirez relata que a violência sexual e de gênero tem justificado, inclusive, que outros países aceitem receber os haitianos como refugiados. “Os números são modestos, mas já há 57 na Argentina, 146 no Peru e um no Chile”.
É neste contexto que os haitianos decidem deixar o país. As famílias mais abastados se organizam e enviam alguns membros pra os Estados Unidos. As de menor poder aquisitivo, agora, têm a alternativa de tentar o Brasil, que exige menos recursos e é mais seguro. Nos Estados Unidos, se descobertos, os ilegais são deportados para seus países de origem.
“A maior parte dos imigrantes ilegais haitianos é muito bem qualificada, justamente para conseguir emprego e ajudar a sustentar os que ficaram no Haiti”, diz o presidente do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), Luiz Paulo Teles Barreto, também secretário-executivo do Ministério de Justiça.
O Brasil é ume referência também por liderar, desde 2004, as forças de paz das Nações Unidas que atuam no Haiti. O ministério da Defesa diz que as tropas brasileiras vão deixar aquele país a partir de março de 2012.