A Síndrome de Déspota Néscio ou “Le Mandat C’est Moi!”
No artigo anterior, o último parágrafo deu conta de que ao sair das dependências da Receita Federal em Epitaciolândia e chegar ao passeio público divisei os agentes da Polícia Federal e desenvolveu-se o seguinte diálogo:
Agentes PF: O senhor é João Correia?
João Correia: Sim, sou eu.
Agentes PF: Queremos ter uma conversa com o senhor.
João Correia: Pois não!
Agentes PF: Mas a conversa é reservada, é particular, vamos ali atrás…
João Correia: A conversa é a propósito de quê?
Agentes PF: Isso nós vamos ver na própria conversa.
João Correia: Nesse caso, eu não tenho nada para conversar com vocês.
Agentes PF: Ah! Tem, sim!
João Correia: Não tenho, não!
Agentes PF: Acho melhor o senhor ir!
João Correia.: Eu não irei. Vocês têm um mandado? Uma notificação? Um documento qualquer, uma intimação?
Agentes PF.: Não é necessário, não precisa!
João Correia: Como não precisa? Qual foi o crime que eu cometi?
Agentes PF: (com o dedo em riste) Desacato à autoridade! E baixe o tom de voz! Baixe o tom de voz!
João Correia: Que autoridade? Que autoridade? E tire o dedo da minha cara! E se você quiser que eu baixe o tom de voz, baixe o seu!
Neste momento, boa parte da fila concentrou-se em torno da discussão; a Liz veio tentar interceder, muito aflita, enquanto um dos agentes ficava o tempo todo falando ao celular.
Agentes PF: Já que o senhor não quer conversar, o senhor vai nos acompanhar até a Delegacia.
João Correia: Não desacatei ninguém, não cometi nenhum crime. Vocês não têm nenhum documento e não vou acompanhá-los a lugar algum.
Agentes PF: Ah! O senhor vai, sim! Vai de um jeito ou de outro!
João Correia: De um jeito ou de outro? Então vocês vão me prender, me algemar e me arrastar?
Agentes PF: Vamos, sim!
João Correia: Eu sou um cidadão comum, mas já fui deputado estadual e federal e sei que a Constituição do Brasil só permite prisão em flagrante delito ou por mandado judicial. No primeiro caso, não há flagrante porque não há delito; no segundo caso, vocês não têm mandado judicial. Portanto, vocês não podem me prender.
Agentes PF: (largando o celular) Pois o senhor está preso! Fulano, pega as algemas; beltrano, traz o carro mais para perto.
João Correia: Então vocês têm um mandado.
Agentes PF: O mandado sou eu!
João Correia: Como é que é?!
Agentes PF: O mandado sou eu!
João Correia: Ah, não é não! Não é mesmo! Você ainda é uma criança, você ainda é um moleque; você está longe de ser um magistrado, um juiz…
Os agentes da Polícia Federal atiraram-se sobre mim feito cães raivosos, com invulgar violência; jogaram-me ao pó do chão; algemaram-me ; pisotearam meus óculos; arrastaram-me até o carro, já mais perto, e arremessaram-me ao banco de trás do veículo. A partir deste momento já não tenho mais testemunha ocular do que aconteceu. A verossimilhança repousará em minha palavra e na confiança que tenho na arapongagem da Polícia Federal que tudo grava, tudo filma, tudo grampeia, tudo espiona, como O Grande Irmão, e está desafiada a contestar-me.
O absurdo, o insólito da ação violenta e o esforço físico que fiz para proteger-me consumiram-me em vertigem o oxigênio que respirava; procurava ar e não o encontrava e provei pela primeira vez em minha vida a sensação do bafejo da morte. Como tínhamos ido cedo para a Bolívia, não tomara a medicação anti-hipertensiva que me acompanha há três anos. Perseguindo fragmentos de ar, reparei na fisionomia da Liz, aos prantos e em desespero, do lado de fora do carro. Com a boca e a garganta secas, balbuciei aos policiais que abrissem a janela traseira do veículo, para eu falar com ela e também garimpar um pouco de ar. Eles demoraram a entender, mas baixaram o vidro da janela. Pedi, então, à Liz que comprasse o meu remédio e o levasse à Delegacia da Polícia Federal.
O carro seguiu vagarosamente para a Delegacia da Polícia Federal em Epitaciolândia. Quando passou por uma farmácia, um dos agentes, sentado ao meu lado no carro, perguntou-me se eu queria comprar o remédio. Agradeci-lhe e declinei de sua oferta. Ainda ofegante, cheguei à Delegacia da PF e notei, admirado, a ausência de emissoras de TV, personagens obrigatórias nestes eventos espetaculares; fui conduzido diretamente à sala do delegado.
Um murro na mesa, um dedo no rosto e as algemas
Uma teatralidade burlesca caracterizou todos os movimentos do delegado, um jovem eurodescendente de trinta e poucos anos. Começou por reclamar da existência de uma ocorrência daquelas às cinco e meia da tarde, depois do expediente, hora de descanso, como se a insólita situação pudesse ser do meu agrado. Apontou-me uma cadeira, defronte à sua escrivaninha, na qual tomei assento, e ao lado direito postou-se um dos agentes protagonistas do episódio, guardando a porta de saída, como a reafirmar que eu tinha sido e continuava preso por sua plenipotenciária vontade.
A falta de oxigênio secava-me a boca e a garganta, quando o delegado perguntou-me o que tinha ocorrido. Consultei-lhe se iria prestar depoimento algemado e ele respondeu-me que dependia de mim. Em que? Retruquei-lhe. De você acalmar- se, disse-me, aparentando condescendente simpatia. Eu estou calmo, como é possível se estar numa situação dessas, insisti. Então o que aconteceu, afinal? Perguntou-me, sabendo, talvez por larga experiência, que eu não me furtaria a falar naquelas circunstâncias humilhantes. Forçoso é confessar o pejo de minha falta de discernimento; levarei tempo a perdoar-me, se conseguir; jamais o silêncio teria sido mais recomendável.
Comecei, com efeito, mesmo algemado, catingado e empoeirado, a reportar o que havia acontecido ao longo do dia. O delegado pareceu equilibrado e não interrompeu- me; fui discorrendo. Quando recordei-me da cena da criança chorando e gritando, machucada pelo trinco da porta do pardieiro da Receita Federal, referi-me ao local como uma pocilga. Pra quê! Para minha surpresa, o delegado desferiu um violentíssimo murro na mesa, levantou-se abruptamente, olhos possessos, esbugalhados, aos berros, com o fiel dedo em riste na minha cara, e vituperou, aos esturros: “aqui você não vai cantar de galo! Você vai ter que respeitar a minha Delegacia ; você está pensando que é o quê? Você está pensando que aqui é a casa da mãe Joana, seu…p?”.
Era a quinta ou sexta vez que eles enfiavam o dedo na minha cara em menos de uma hora. Tive vontade de afastá-lo do meu nariz, mas desisti ao pensar nas algemas. Essa nova brutalidade ocorreu em frações de segundo; pelo alto teor de violência nela contido, certifiquei-me que eles iriam espancar-me. Instintivamente levantei-me da cadeira para, pelo menos, apanhar com algum lampejo de dignidade. Sabia que estava sem os óculos e não corria risco fácil de cegueira. Disse-lhe, então, que “ não tinha um pingo de medo deles; que eles é que me deviam respeito; que retirasse esse dedo da minha cara, seu …m !!”. O espancamento não veio; o delegado saiu do recinto e voltou em seguida; pediu água e ofereceu-me. Com enorme xerostomia, aceitei, aliviado.
E nada de depoimento. As lacerações nos pulsos causadas pelas algemas, a sujeira de minha roupa, o pixé de suor azedo dos esforços e de contatos indesejados e a incerteza começaram a atormentar-me. Transcorreram várias minutos e perguntei novamente ao delegado se eu iria ficar preso e, no caso, se ficaria algemado. Novamente de saída da sala, ele respondeu-me, carregado de sarcasmo e inebriado com o poder da situação, que eu iria “ ficar algemado “até contar tudo bem direitinho e bem calminho”. Disse-lhe, então: “delegado, o senhor deve sentir muitas saudades dos tempos da ditadura em que a Polícia Federal prendia, torturava e assassinava cidadãos inocentes e indefesos”. Ele ouviu e saiu da sala.
Liz e Heitor adentraram o recinto com visível aflição. Heitor, médico, trazia remédio para hipertensão e pediu para ficar comigo dali por diante. Preferi preservá-lo de todo e qualquer contato com o atrabílis ali cometido e pedi-lhe que fosse com a Liz comprar bermudas, camisetas e material de higiene a fim de cumprir minha prisão; também pedi-lhe que cientificasse nossos familiares, com especial cuidado para minha mãe, octogenária, e meu sogro, nonagenário. Ele já havia providenciado os avisos e disse, também, que os advogados Erick Nascimento e Roberto Duarte, a caminho para a região, haviam retificado seus itinerários e dirigiam-se à Delegacia da Policia Federal de Epitaciolândia. Dali a poucos minutos, o delegado voltou mais uma vez à sala e ordenou a um dos agentes que me retirasse as algemas e comunicou-me de que eu não estava mais preso; de que eu deveria permanecer no prédio para as formalidades de autuação da prisão. Meu filho voltou a insistir para permanecer comigo e pela segunda vez na vida disse-lhe não no mesmo e fatídico dia.
Continua e será concluída a reprodução da publicação da Gazeta do Acre, na próxima quinta-feira.
João Correia escreve todas às quintas-feiras no ac24horas